Tailândia-Brasil #02: A pior crise é a nossa mesmo

Murillo Leal
Expresso Tailândia-Brasil
4 min readMay 15, 2020

Tem início neste texto uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta.

Leia a carta anterior de Matheus aqui

Meu amigo,

Antes de tudo, fico feliz em saber que está bem. É sempre bom receber boas notícias em tempos funestos. Me preocupo com sua saúde. Lembro que, da última vez, tínhamos conversado muito sobre tentar ser mais zeloso com ela. Como sabe, acabo de completar 30 anos. É a idade de dar conta dos hábitos.

Não posso imaginar o que está realmente acontecendo por este lado do mundo. A cultura oriental é uma das coisas mais lindas. Mas, o tradicionalismo pode deixar as coisas bem radicais. Não confie em política. Não confie na imprensa. Confie somente em si, meu bruxo. Como sempre fez.

A verdade é que está tudo um caos. Na verdade, tudo sempre foi uma baderna, mas é que apenas agora estamos tendo tempo para prestar atenção. É como fazer um faxina pra receber alguém em casa e surpreender-se ao deparar-se com sua própria bagunça.

Pra mim, sempre foi evidente que não temos controle nenhum sobre a existência. Este momento é mais um grito da vida. Este pode ser um daqueles momentos de fazer uma prece mesmo sem ter religião. De torcer pro mundo melhorar, mesmo desconfiando disso.

Não posso deixar de expressar meu espanto frente a essa loucura chamada Covid-19! Realmente confesso que não temo tanto pelas mudanças que certamente virão nos hábitos, apenas fico com receio pelas almas angustiadas que o confinamento produz.

Por aqui, vejo pessoas com aquele amargor sem explicação no meio do peito. Trancadas consigo mesmo. A mente está completamente confusa e a realidade cheia de carências. Por sorte, ainda tenho como me sustentar. Muita gente não tem. Meu medo é que isso tudo danifique a minha sanidade. Sempre temi a falta dela.

Tenho ocupado meu tempo ouvindo os velhos discos. Nas manhãs, trato de colocar o Greta Van Fleet ou Tame Impala. (Aliás, sempre lembro quando estávamos em São Paulo e fomos até aquele festival de cervejas que tocava aquela banda que não sei o nome, mas que faziam um som bastante parecido como eles, se recorda? Dia épico, ébrio e memorável.)

No meio da tarde, passo um tempo todo escrevendo e descobrindo novos artistas. (Ontem, descobri uma banda chamada Terno Rei. Penso que vai gostar. Especialmente “Yoko” e “Dia lindo”.) Gosto de ser o Pedro Alvares Cabral da arte. Meu Spotify é orgulhosamente uma coletânea de ilustre desconhecidos.

A noite a coisa da crise é sempre pior. Acabo ficando na companhia de Chet Baker — e você sabe do meu fascínio pelo cara — ou até mesmo de um filme. De preferência, repetido. Os clássicos do Woody me encantam. Que diálogo! Que premissas! Que enredos! Já reparou como não se fazem mais Allen’s?

Todo filme de agora mergulha num tédio aventureiro ou num clichê programado. Será que só ando insatisfeito com isso? Espero que esteja nessa comigo. Talvez seja o efeito Netflix de querer sempre agradar todos com a arte.

Tenho certeza que deve estar com saudade do Brasil. Ou melhor, do salutar convívio brazuca. Este país é sempre aquele ébrio vacilante. Acredito que o que te seduz mais no estilo de vida que tem é justamente a infinita possibilidade de conhecer. Coisas, pessoas, lugares. O mundo é assustadoramente enorme e confortavelmente minúsculo no fim né?

A verdade é que andar pelo mundo é bom, mas não são todos os lugares que tem o old fashioned do Bar da Dona Onça, a coleção de blasfêmias contra a vida que lançamos na embriaguez conjunta, não tem os inúmeros planos de projetos que nunca tiramos do papel. E, principalmente, não tem a gaúcha da voz doce e com feição de paz que mencionou.

Lamento que a tela do celular tenha que ser uma realidade para quem vive como você. A tela é fria. Sei que te digo isso com frequência, mas, para essas horas, aqui tem um amigo para favoritar suas loucuras. Me mande mais fotos das insanidades cometidas.

Quando penso em tudo que me aconteceu nos últimos quatro anos, fico com um mix de sentimento. É louco como os roteiristas das nossas vidas, de maneira diferente, acabaram escrevendo histórias bem parecidas. Lembra dos filmes clichês que mencionei acima? Pois é, as nossas vidas não são nada banais. Ao menos, tive a sorte de sobrar um pouco de sanidade para desperdiçar em sua companhia, meu amigo.

É, meu caro, a pior crise que podemos ter neste período é a nossa mesmo. O Covid vai passar, o que sobrar depois dele é que mudará para sempre as nossas vidas. Unir-se em tempo integral, afastou muita gente. De si, do outro e do mundo. É preciso continuar tentando ser gente de verdade.

Ah, por falar em resistir nas amizades, o pessoal comentou muito sobre o texto que escrevi sobre nossa amizade. Acho que é inveja. Das boas, claro. São muitas histórias que o já nem consigo contabilizar com muita precisão. Assim que isso tudo acabar, espero revê-lo em breve.

Cuidado com as ruas e as pessoas. Beba o suficiente. Coma coisas saudáveis, se possível. Encontre as esquisitinhas ideais. Faça todas as merdas que possam render mais um bom livro. Mantenha a mente limpa.

As namoradinhas? Ah, essas eu te conto numa próxima. Juro.

Saudades brasileiras.

Um abraço, Murillo

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Murillo Leal
Expresso Tailândia-Brasil

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