Tailândia-Brasil #05: Memórias prévias da superfície lunar

Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil
5 min readJun 6, 2020
Stanley Kubrick durante as gravações de "2001: Uma Odisseia no Espaço" (1968).

Este texto faz parte de uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta no Expresso Tailândia-Brasil.

Leia a carta anterior do Murillo aqui.

Murillo, seu puto,

Fico feliz que as cordialidades convencionais, enfim, tenham sido quebradas. Convenhamos que não as escrevemos para nós; escrevemos com o receio de que os três, talvez quatro, curiosos que leem as cartas deste nosso presunçoso projeto descubram que, no final das contas, não passamos de impostores. Uma troca de mensagens real da nossa parte, fora dos holofotes digitais, certamente começaria com algo como "E aí, seu filho de uma porca prenha? Comeu alguém hoje?".

Há algo no início da tua última carta que merece uma nota antes que eu entre em algum papo narcisista-masturbatório onde passo mais tempo falando de mim mesmo do que me propondo ao que, de fato, é o objetivo de uma troca de cartas. Quando escrevestes (minha concordância está cada vez melhor) que um mês se passou desde a minha primeira carta, meu primeiro pensamento foi: como assim, mano?

A sensação deste lado do globo é que, fuso-horário à parte, o espaço-tempo se tornou um conceito obsoleto –– do ponto de vista literário, é bom reforçar, antes que algum aspirante a Einstein apareça por aqui.

A ausência da gravidade que explica astronautas flutuando sem peso em suas aeronaves da SpaceX parece ter chego numa Terra –– que obviamente não é plana –– infectada por COVID-19. Durante este mês que ficou para trás, meus quase 70kg quarentenados levitaram por um apartamento apertado tentando romper as barreiras deste novo mundo de ruído incessante. O tal mundo citado por ti, Murillo, seu filho de uma porca prenha, quando escrevestes sobre as mensagens instantâneas.

Instantâneas, mas nem tanto. Pelo menos para um brasileiro na Tailândia. E é aí que o fuso-horário joga a meu favor. Como o amigo bem sabe, tenho 10 horas de vantagem para o Brasil. 10 horas que nomeei a meu bel-prazer como 10 horas sem ninguém me enchendo o saco.

"Matheus, você pode ler meu texto?"

"Matheus, te enviei um e-mail, você leu?"

"Matheus, te enviei 8 áudios com 5 minutos cada, você ouviu?"

"Matheus, nunca mais te envio nudes!"

"Matheus, tenho uma oportunidade incrível para você ganhar uma renda extra, podemos marcar uma call?”

"Matheus podemos marcar uma call?"

"Matheus, podemos…?"

A vantagem de gravitar no espaço-tempo tailandês pandêmico é que as mensagens antes instantâneas se tornaram algo como "responde no teu tempo". Me reservo ao direito de estar dormindo –– ou, na maioria dos casos, de saco cheio –– quando alguém me cobra sobre qualquer coisa que eu não queira lidar no momento. E isso vale tanto para trampo quanto para nudes.

Mas, Murillo, seu puto, não existe a menor possibilidade de eu te escrever algo neste 05 de junho de 2020 sem mencionar George Floyd, sem mencionar o menino João Pedro, sem mencionar os constantes ataques aos jornalistas brasileiros, sem mencionar Jair Bolsonaro e os lunáticos neonazistas dos 300 do Brazil –– com "z" mesmo, porque eles adoram lamber as bolas de qualquer estadunidense tosco que use coturno.

Queria ter forças, te juro, para discorrer sobre toda essa merda que está acontecendo no mundo, mas me reservarei ao direito de um protesto silencioso, deixando o parágrafo abaixo sem nada escrito para que tenhamos alguns segundos de reflexão.

Voltemos.

Uma empresa alemã me pagou uma bolada por um artigo com duas mil palavras. Em pouco mais de três horas na frente do computador ganhei mais do que muito redator em começo de carreira recebe num mês. E, pra ser sincero, esse texto me deu mais dinheiro do que os direitos autorais do meu livro até agora –– que está vendendo pra cacete, bom deixar claro, mas a editora detém exatos 94% da obra.

Como bem sabemos, Murillo, o escritor brasileiro em 2020 vive de cursos online. E, refletindo sobre isso, percebi que Nelson Rodrigues hoje certamente trabalharia com marketing de conteúdo. Pensa comigo: os escritores de outrora faziam jornalismo para pagar as contas. Se tivessem sorte, emplacavam uma coluna num jornal de grande circulação onde escreviam crônicas. Os escritores de hoje estão tentando enganar o Google com palavras-chaves e os caralho. Não escrevem mais para pessoas; escrevem para algoritmos. Isso talvez explique essa escrita robotizada dos nossos tempos.

E que tempos estranhos, não é mesmo, Murillo? Elon Musk enviou dois astronautas pro espaço no último final de semana. Lembrei de 2018. Estava eu em Roma me empanturrando de spaghetti com minha bela ex-esposa quando os Arctic Monkeys lançaram Tranquility Base Hotel & Casino, um álbum esquisito para quem estava acostumado com os trabalhos anteriores dos caras, mas que parece ter sido escrito para 2020.

A Base da Tranquilidade, que em português soa como nome de igreja evangélica, é o nome do local de pouso da Apollo 11, missão espacial que levou os primeiros homens pra Lua em 1969. A mesma galera que acha que a Terra é plana tem uma teoria da conspiração muito boa que diz que tudo isso foi encenado e filmado por Stanley Kubrick.

Alex Turner, o frontman dos Arctic Monkeys, contou numa entrevista que compôs todo o álbum no seu quarto em Los Angeles, que nomeou de superfície lunar, imaginando um futuro distópico onde a Terra sofreu um processo de gentrificação e o homem decidiu povoar a Lua. O personagem do álbum é um crooner à la Nick Cave, membro da fictícia The Martini Police, banda residente de um hotel cassino no melhor estilo Las Vegas.

Aqui no meu quarto tailândes pago com o dinheiro dos alemães, no conforto da minha Base da Tranquilidade, escrevo estas palavras pensando que, mais do que caderninhos cheios de anotações, estamos registrando uma parte importante das nossas memórias.

Consigo me imaginar já idoso relendo estas cartas, quem sabe num hotel cassino lunar, sobre esses tempos que parecem estar sendo dirigidos por Stanley Kubrick com trilha sonora dos Arctic Monkeys.

E aí, comeu alguém hoje?

Um abraço nostálgico,

Matheus

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Matheus de Souza
Expresso Tailândia-Brasil

Escritor, educador e palestrante. Autor de “Nômade Digital”, livro finalista do Prêmio Jabuti.