Tailândia-Brasil #06: Eu sou um vulcão adormecido

Murillo Leal
Expresso Tailândia-Brasil
5 min readJun 26, 2020

Este texto faz parte de uma troca de correspondências entre os escritores Matheus de Souza e Murillo Leal. Durante a quarentena, toda sexta-feira, um dos autores escreve uma carta no Expresso Tailândia-Brasil.

Leia a carta anterior do Matheus aqui.

Matheus, seu insurgente de merda,

Sei que escrevo esta carta com duas semanas de atraso. Livro-me de dizer qualquer desculpa esfarrapada. Parto pra mais pura verdade fraternal: demorei muito para responder porque declaradamente não estou dando conta de mim.

Não posso mentir diante da estatueta fosca da nossa velha amizade, muito menos diante dos cinco ou seis leitores insistentes — sendo arrogantemente otimista — que batem os olhos e passeiam nestas cartas blasfêmicas.

Tenho que lhe confessar mais uma coisa: não tenho conseguido absorver o mundo inteiro nas minhas costas. São cinco continentes de pressão forçando minha desgastada lombar moral.

Faz mal demais a gente querer fazer contra-posição a um mundo completamente inundado em si. Se tem um flagrante ululante no meio desse contexto pandêmico é a perceptível epidemia de gente ególatra surgindo aos montes, todos eles, viciadamente disciplinados, imensamente produtivos, cerimonialmente concentrados. Tudo uma fraude bem montada para parecer inabalável.

Toda essa gente me fez lembrar de Fernando Pessoa, que na figura do seu heterônimo Álvaro de Campos, denunciou em Poema em Linha Reta: “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”.

Absolutamente despido diante das suas palavras, li sua carta anterior quase como se eu tivesse também gritando a mesma canção convocatória para a rebeldia pelas janelas da minha sacada. Preciso confessar para a minha consciência o meu lado adúltero. Sou um deturpador da ordem mental.

O escritor é sim um denunciador. Primeiramente de si, depois do outro e por fim, do mundo. Sinto uma tristeza profunda quando sou obrigado a concordar com você quando fala sobre como a nossa profissão tem sido subestimada a fazedores de post idiotas na internet. Olha a porra dessas cartas! Não estamos brincando de escrever.

Lamento as marionetes de SEO enrustidos nos algoritmos das linhas tortas da falsa importância. Nunca participei, e não vai ser agora, que vou me render a “X coisas que aprendi sobre qualquer merda que ninguém se importa”.

Meu objeto de escrita sempre foi gente. Ideias, sentimento e gente. Sempre foi o material mais bruto do ser humano. Você tá certo! Nelson teria morrido de fome com suas verdades absurdamente necessárias.

Há tantas coisas acontecendo em minha vida, cara. Sinto-me preso num roteiro de This is us — tá, talvez eu tenha exagerado na dramaticidade, mas não na realidade — e por causa dessa loucura toda, não tenho tido tempo para as coisas realmente importantes como responder amigos.

Mesmo entendendo a necessidade fundamental de ficar em casa, tenho tido dificuldade de cumprir com a droga do isolamento. Não, não estou passeando pelas avenidas, nem frequentando bares abarrotados, muito menos reunindo muitas pessoas para desfilar minha falta de empatia com os alvos mais frágeis da doença. Eu apenas tenho tido vontade sair desse enclausuramento redundante.

Apenas não tenho mais aguentado a sentença obrigatória do meu próprio isolamento. Ter que conviver comigo e assistir o mundo inteiro desprezar o óbvio por pura arrogância. Eu tenho tido raiva represada por me forçar a trancar-me. E você sabe como naturalmente me rebelo com a ideia de ser obrigado a qualquer coisa que seja.

Tenho enfrentado a quarentena como quem está em uma merda de uma cela celibatária de um monastério do quinze, passo o dia lendo, escrevendo, pensando na vida lá fora, mas o objeto de privação não é o sexo, é a liberdade. Pau no cu da Monja Cohen e toda aquela calmaria! Não há como ter sanidade quando se perde a liberdade, amigo.

Tenho me sentido profundamente chateado com todos. Com o porteiro mal-educado que me olha com desprezo cada vez que vou buscar o delivery, com os personagens grotescos das redes sociais e a sua estupidez notória da realidade.

Nada tem me tirado mais do sério do que ver aproveitadores de gente inocente que saem pelo esgoto do Linkedin prometendo soluções mentirosas de dinheiro fácil com historinhas fajutas e com toda gente que usa dessa situação para tentar tirar alguma vantagem. Nada me arranca mais do chão da sanidade do que o canalha.

No entanto, aprendi a ser um vulcão adormecido. Acredite, amigo, apesar disso, eu nunca explodo. Uso fraldas sociais o tempo inteiro. Descobri que não temos o direito de defecar raiva sobre alguém que não tem noção da sua ignorância, mesmo sabendo que depois de uma certa idade, todo mundo tem culpa da ignorância que tem.

Tenho detestado mais ainda as pequenas privações. Já não tenho mais desejo de aparecer pra milhares de pessoas. Cada dia mais me escondo no absurdo que sou, com medo de que as pessoas reconheçam a minha covardia de fingir não ser a mim mesmo.

Tenho fracassado nos pequenos detalhes. Tenho atrasado trabalhos, ligado menos pras pessoas, me importado pouco com atividade físicas. Tento fingir que essa merda de gripe não é algo grandioso e que a humanidade pode aprender alguma merda com isso, mas não consigo elaborar uma só razão para acreditar nisso.

Bem, essa morte sem velório que mata em massa não aconteceu de repente. Mesmo que de um dia para o outro todo mundo começou a morrer, antes as angustias eram choradas, as memórias eram veladas e o terreno vazio no meio do coração tinha um cheiro florido.

Aqui estamos. Humilhados, imóveis e inocentemente ofendidos, em uma fatalidade promiscua e descarada. Prometi não falar mais dessa droga, mas o Covid-19 deixará nos sobreviventes não o medo, não o espanto, não o ressentimento, mas o puro tédio da morte.

Quando o mundo sentiu mesmo que era uma peste, ninguém chorou mais, nem velou, nem floriu. O velório tornou-se um luxo insuportável para todos que ficam. Nesta morte não há melindres, nem pudores. Ninguém chorando ninguém.

Eu sei que prometi falar mais sobre a minha vida amorosa nesta tempestade da pandemia , mas a verdade é que tenho tanta coisa acumulada e as demais coisas do mundo tem tomado uma proporção tão gigante, que precisaríamos mesmo de uma nova série de textos para me fazer falar. Estou farto.

Murillo

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Murillo Leal
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