Lenta caminhada para o abismo — D B Frattini

Revista Tamarina - Redação
Revista Tamarina
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12 min readJun 6, 2022

Drama em um ato escrito por DB Frattini para o ator e diretor Paulo Yutaka. A peça foi encenada em 1987 e reestruturada para o grupo Boi de Mamão no ano de 1995. Composto em doze cenas, a peça será publicada na Tamarina em três partes.

Leia as cenas 1- 4 AQUI!

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QUINTA CENA

(Breno e a mulher continuam abraçados sobre a cama. O homem, sem o jaleco, entra em cena e fica espantado com o que vê.)

HOMEM — Quem é essa aí?

BRENO (surpreso) — Você?!? […] Voltou tão cedo. Aconteceu alguma coisa?

HOMEM (irritado) — Quem é essa aí?

BRENO — Uma amiga.

HOMEM — Você fica agarrado com suas amigas na minha cama quando eu saio?!? […] Fica?!?

MULHER (sonolenta) — O que houve? (olha para o homem) Quem é?

BRENO (acanhado para a mulher) — Espera um pouquinho.

HOMEM — Que situação miserável!

MULHER — Como?

BRENO — Deixa, Gigi.

HOMEM — Gigi?

MULHER — É meu apelido.

HOMEM (para Breno) — Como você é filho da puta!

MULHER — Breno, o que é que há?

BRENO — Nada.

HOMEM (irônico) — Diz pra Gigi quem sou eu. Fala logo!

BRENO — Por favor.

HOMEM — Não vai falar? Então eu falo: sou o homem que mora com ele. (olha para os lados) Achamos esse apartamento pequeno, estamos comprando uma casa juntos, somos muito ligados; muitíssimo ligados, se é que me entende?!?

MULHER (chocada) — Ah, mas eu não sabia…

BRENO — Não é nada disso.

MULHER (sai da cama, ofendida) — Breno, você devia ter me contado. Que coisa chata, você podia ter evitado essa situação constrangedora. Que tristeza.

BRENO — Espera.

HOMEM — Também acho uma tristeza! Você está muito certa: ele devia ter contado; agora não importa; agora você sabe o puto que ele é!

MULHER (para o homem) — Não importa mesmo, moço. (para Breno) Não esperava isso de você. Você devia ter me contado que é veado, não ligo para isso, mas detesto mentira.

BRENO — Não fala assim, Gigi, com você é diferente.

HOMEM — Ridículo!

BRENO (irritado com o homem) — Para! Não começa!

HOMEM (segura Breno pelo colarinho) — Esqueceu que o corno aqui sou eu?!? Eu devia arrebentar a sua cara!

MULHER (tira uma bolsa debaixo do colchão e se prepara para sair) — Que tristeza.

HOMEM (empurra Breno para o lado) — Moça, por favor, vai embora!

MULHER — É claro que vou embora! (para Breno) Vê se não me procura mais. Que história…

HOMEM (interrompe berrando) — Gigi, vai embora! Não fala mais nada, Gigi! Some daqui!

MULHER — Breno, será que você é louco?

HOMEM — Cala essa boca, mulher! Vai embora! Será possível?!?

BRENO — Ah, Gigi, me desculpa.

HOMEM (tenta acertar uma bofetada em Breno) — Seu bosta! Ainda te arrebento!

BRENO — Vai, Gigi, depois a gente conversa.

MULHER (enérgica para o homem) — Não bate nele, não!

HOMEM (irônico) — A vagabunda está te defendendo?!? É muito engraçado! Você e ela até que combinam.

MULHER — Não vou aturar insultos! Não conheço esse homem. Chamo a polícia!

HOMEM — Pode chamar! Chame quem quiser, maldita! Também quer entrar no couro?

MULHER — Que isso!?!

HOMEM — É isso aí! Quer fazer escândalo? Não me custa nada começar!

MULHER — Breno, cuidado com esse maluco! (apressada, sai de cena)

BRENO — Gigi, me perdoa.

SEXTA CENA

(Breno e o homem, muito alterados, acompanham a saída da mulher. O homem, abatido, se senta na cama e procura se acalmar, esfrega a cabeça com as mãos .)

BRENO — Você vive fazendo isso comigo […]. Nunca prometi nada.

HOMEM — Estou tão cansado.

BRENO — Temos que resolver esse negócio.

HOMEM — Não estou apenas cansado, isso não é uma simples canseira. É um esgotamento: corro, corro feito um cão danado; procuro um sentido e não encontro nada; nem um motivo; nem um cisco. Preciso parar, não posso morrer extenuado no meio dessa maratona sem fim. Parece que cheguei a um ponto derradeiro. Não, não é o fundo do poço, não é isso. Fui além do fundo, passei pelo fundo, me enfiei pelo fundo, fui além do fundo do fim.

BRENO — Isso não existe.

HOMEM — Existe! Pode acreditar, existe sim!

BRENO — Tolice.

HOMEM (se levanta da cama) — Olha para mim; está vendo?!? […] É a minha cara do desfecho. (aponta o próprio rosto) A cara do defunto, do concluído, do rematado, daquele que chegou aonde ninguém devia chegar. Você levou o cego até o fim e eu continuei. Fui além.

BRENO — Tudo isso por causa da Gigi?

HOMEM — Vou lá dentro arrumar as minhas coisas.

BRENO — Não quer mais conversar comigo?

HOMEM (espantado) — Você é perigoso. Você é bem capaz de provocar uma desgraça. […] Conversar? O que vou falar com você? Não sei quem você é. Já não sei onde estou. Não sei como cheguei até aqui. Não tenho mais motivos.

BRENO — Um dia você falou que amava minha complicação.

HOMEM — Como?

BRENO — Ficou todo chateado por causa da Gigi. Coitada da Gigi.

HOMEM — O quê?

BRENO — A verdade é que você não tem paciência!

HOMEM — Deus?!? (num crescente de raiva) Não posso ser educado com você. Você precisa de grosseria. Preciso ser estúpido com você. Você não aceita uma conversa civilizada. […] Estou de saco cheio! Então, não tenho paciência? Devia ter um revólver aqui na minha mão; devia te assassinar; seu infeliz! Quem sabe com a sua morte eu consigo um pouco de paz? […] Aguentei muita coisa. Esperei demais! O que você quer? Quer que eu fique parado? Quer que eu apodreça assistindo as suas putarias? Você é imundo! Você gosta de gente ordinária! Aposto que pega todas essas vagabundas por trás, seu sujo! E os homens? O que você faz com os homens? Não consigo imaginar o que você faz com os homens! Tosco! Porco! Nojento! É um cu atrás do outro, uma fila imensa de bundas arregaçadas […]. Ah, meu Deus. (volta a sentar sobre o leito e esfrega a cabeça com as mãos) As coisas que você me obriga a dizer. (encara Breno) Um dia você falou que me amava, lembra? Pois é, chegou o dia e vou dizer que não ligo. Abra bem os ouvidos e escute: não sinto mais nada; não consigo sequer te odiar; não ligo mais; já não me importo com você.

BRENO — Não fala assim.

HOMEM (se levanta) — Já falei.

BRENO (cobre a cabeça com o travesseiro) — Vai […]. Pode ir. Vai embora.

HOMEM (aliviado) — Vou. (sai de cena)

SÉTIMA CENA

(Breno contorce o corpo sobre a cama, as luzes descem em resistência [apenas o leito fica visível]. No meio do transe, Breno não para de murmurar a palavra ‘alta’.

As luzes sobem [sempre em resistência]. A mulher entra em cena, vestindo um blazer azul. Breno salta da cama e corre até a mulher.)

BRENO (animado) — A senhora vai ver: vou melhorar.

MULHER — Agora não dá mais. Não podemos mais aceitar você aqui.

BRENO — Me dá uma chance. Juro que a senhora não vai se arrepender.

MULHER — Infelizmente a situação fugiu do meu controle.

BRENO (interrompe, alegre) — Hoje. Foi hoje que resolvi […]. Acordei cedo e falei para o espelho: vou mudar minha vida; vou trabalhar; vou me divertir; vou voltar a produzir.

MULHER — É ótimo. Fico muito feliz, mas você terá que procurar um outro lugar para voltar a produzir.

BRENO (eufórico) — A senhora não pode dizer uma coisa dessas: hoje resolvi que vou arranjar um novo amor; serei uma pessoa feliz; chega dessa tristeza; serei o funcionário mais operante que existe! […] Hoje! Decidi hoje.

MULHER — Sinto muito, não será possível. (impaciente) Seu discurso é muito bonito. É mais um discurso, o mesmo discurso. Percebe?

BRENO — Juro! Acredite dessa vez as coisas mudam.

MULHER (aborrecida) — Ontem reprisaram um filme antigo na televisão, por acaso você assistiu?

BRENO — Não.

MULHER — É uma pena […]. Breno, você não é a Scarllet O’Hara; isso aqui é uma empresa séria, não estamos no meio de “E O Vento Levou”.

BRENO — Qual o problema? Estou falando que mudei […]. Sei que a empresa é séria. Trabalhei durante dez anos aqui, dez anos não são dez meses, nem dez dias. Fiquei doente. Vou ser punido por causa da minha doença? Estou melhor. Todo mundo…

MULHER (interrompe) — Você é muito complicado, sempre foi! Durante esses dez anos enfrentei uma série de problemas para manter você aqui. Agora não dá mais.

BRENO — A senhora não pode me demitir por causa da minha doença. É um absurdo!

MULHER — Já demiti.

BRENO — Uma coisa dessas não pode acontecer!

MULHER — Tanto pode que já aconteceu e não adianta ficar ainda mais alterado.

BRENO — Alterado? Quem é que está alterado?

MULHER (muito calma) — Você […]. Não adianta vir com essa história de doença, você já entrou aqui doente. (tira uma folha de papel do bolso do blazer) Tenho aqui um relatório completo: todos os nossos funcionários são muito bem estudados. (passa os olhos pelo papel) Sua ficha hospitalar é invejável. (entrega o papel para Breno) Nos primeiros três meses em que trabalhou sem contrato fixo, aqueles habituais três meses de avaliação, você teve a coragem de pedir licença para fazer um procedimento […]. Um negócio que estava na moda, lembra?

BRENO — Lembro.

MULHER — Pois é. Não sei onde eu estava com a cabeça? Não queriam mais contratar você, mas acabei convencendo o pessoal e, desde então, venho me esforçando para mantê-lo no quadro. Se você soubesse como fui pressionada… são dez anos de pressão, Breno! Também tenho direito de cansar […]. Sempre achei você muito talentoso, acho que suportei essa situação por causa disso, percebe? Mas, de uns tempos para cá, você não tem funcionado […]. Somos profissionais…

BRENO — Parei de funcionar?

MULHER — SIM. É verdade.

BRENO — Estou tentando me recuperar e, quando mais preciso de apoio, vocês me empurram num precipício?

MULHER — Breno, pare com isso. Você sabe muito bem do que estou falando: Não dá mais. Você é doente, quer dizer, é doente de uma outra maneira, não é bem uma doença do corpo, sua doença é de espírito, de cabeça […]. Sei lá? […] Vai ver que você é doente de tanta alma? Não entendo dessas coisas. Sei que a sua enfermidade até que apresentava bons resultados, você sabia lidar com isso: sempre que voltava de alguma licença médica; seu trabalho parecia renovado. O pessoal achava divertido: todo mundo ficava se perguntando; todo mundo queria saber das novidades que você iria aprontar […]. Não sei o que aconteceu: há muito tempo você não apresenta nada que preste; nem a doença te ajuda mais. Você tem que entender que os negócios não podem esperar, manter uma fonte esgotada só provoca prejuízo.

BRENO — Então a fonte secou? Os remédios queimaram meus neurônios e preciso ser descartado? Já arranjaram um outro louco para o meu lugar? Espero que seja um maluco mais fresco do que eu.

MULHER (impassível) — Seja realista e saia como entrou: de cabeça erguida. Vá até o Departamento Pessoal e receba todos os seus direitos.

BRENO — Posso esperar por uma mudança nessa resolução?

MULHER — Não. (tira o papel das mãos de Breno e sai de cena)

OITAVA CENA

(Breno volta a se deitar sobre a cama e as luzes [sempre em resistência] concentram-se sobre o leito. O homem trajando roupas brancas entra em cena e caminha lentamente até a cama.)

HOMEM — Vim o mais rápido que pude, nem troquei de roupa. (sorri) Vou encher seu quarto de micróbios. (grave) O que deu em você?

BRENO — Não quero falar.

HOMEM — Pensei que fosse seu amigo? Pode contar comigo. Estarei sempre do seu lado.

BRENO — Você sabe.

HOMEM — Eu? Mas não sei de nada, não sou adivinho […]. Ninguém me avisou que você pretendia cometer um desatino. O que houve?

BRENO — Veio fazer o que aqui? […] Veio vasculhar o lixo?

HOMEM — Você devia ter me procurado […]. A gente podia conversar.

BRENO — É, eu devia, eu podia, o pretérito imperfeito não faria muita diferença por aqui.

HOMEM (se senta na cama) — Conta?

BRENO (seco) — Queria morrer, só isso. Não sei qual a finalidade desse drama? É tudo muito simples: tentei morrer e não consegui. De tão simples que é a coisa toda, chega a comprometer.

HOMEM — Besteira.

BRENO — Mas é verdade! […] Você não imagina a vergonha que passei? Vou ter que engolir essa merda pelo resto dos meus dias! […] O sujeito pensa que é inteligente. Planeja tudo com muito cuidado. O suicídio não é fácil: o projeto não pode ter falhas; não tem nada nesse mundo que necessite de tanta premeditação […]. Fui extremamente meticuloso e olha o tamanho do meu fracasso?

HOMEM — Você está vivo. É isso que importa.

BRENO (com raiva) — O quê? […] É melhor você começar a cuidar dessas palavras. Fracassei na minha morte, mas posso ter êxito na sua. (passa as mãos pela cabeça) Não vamos mais falar sobre isso. Não é você que tem que passar pelo que passo.

HOMEM — E o que é que você passa? Sua vida é ótima: tem um bom emprego; o dinheiro não te falta; é solteiro; é jovem; tem saúde […]. Que história é essa? […] Você é um privilegiado. Suas tolices deixam qualquer um indignado, sabia? A única pessoa que eu conheço que tem liberdade para fazer o que bem entender é você.

BRENO — Foi justamente o que eu fiz […]. O problema é que não deu certo.

HOMEM — Pelo amor de Deus, o que é que te falta?

BRENO — Tudo.

HOMEM — […] Estou falando sério.

BRENO (segura o braço do amigo) — A sua preocupação me comove. Pode acreditar. Você sempre foi um amigo carinhoso, o melhor amigo que alguém pode ter. (abraça o homem) Estou muito agradecido. (se desvencilha do amigo) Agora vai cuidar dos seus pacientes. Não perca seu tempo comigo, isso aqui não vale a pena. Pode ir.

HOMEM — Quer que eu telefone para aquele médico? Ajudou algumas vezes. Ele pode receitar um bom remédio. Existem novos antidepressivos que são muito eficientes.

BRENO — Ainda não inventaram uma droga que sirva para combater minha doença.

HOMEM — Breno, você está sofrendo de depressão […]. É uma doença terrível, eu sei, mas tem tratamento. É só querer.

BRENO — Depressão? […] Até que eu iria gostar.

HOMEM — Então qual é a sua doença?

BRENO — L.C.P.A..

HOMEM — Como?

BRENO — L.C.P.A. é a sigla para Lenta Caminhada Para o Abismo.

HOMEM — Está brincando?

BRENO — Absolutamente!

HOMEM (irritado) — Conta logo? O que está se passando nessa cabeça?

BRENO (cobre a cabeça com o travesseiro) — Me deixa em paz.

HOMEM (aflito, se levanta e começa a andar em volta da cama) — Conheço você muito bem! Convivo com você já faz mais de trinta anos, sua mãe era amiga da minha mãe. Crescemos pelas mesmas casas. Fazíamos tudo juntos: escolas; passeios; cinema; pipoca; basquete e o resto; o trem inteiro. (arranca o travesseiro de Breno e obriga o amigo a encará-lo) Sei que você não mudou tanto assim. (joga o travesseiro no chão e pula em cima de Breno) Sei que todo mundo muda. A gente cresce e é obrigado a aceitar a tristeza. A gente vai se transformando, a vida é assim: antes de engolir a mudança dos outros precisamos digerir nossos próprios horrores. Eu mudei, você mudou, o mundo mudou! Dane-se! Continuo seu amigo. Com você sou sempre o mesmo. Você, também, (aperta a cabeça de Breno contra o peito) aqui dentro, vai continuar o mesmo. Não adianta tentar me descartar, a coisa é mais complicada do que você pensa […]. A gente operou a fimose no mesmo dia. Quer mais do que isso? (solta o amigo e sai da cama) Você não pode fazer uma coisa dessas comigo. (pega o travesseiro no chão e o atira em Breno) No dia da sua morte uma boa parte do que sou vai morrer com você. […] Isso é justo? É?

BRENO (com raiva) — Vai cuidar da sua vida! Me deixa em paz! (berra para o homem) Podia te convidar para morrer comigo. Não recebeu o convite e ficou aborrecido? O que você acha? Eu podia te matar e depois acabar com a minha própria vida; desse jeito a sua história da carochinha ficava completa. É ou não é? O problema é que eu não conseguiria morrer. Sou fracassado demais para isso.

HOMEM — Você é um idiota! (começa a sair de cena)

BRENO — Ah, meu amigo, jamais conseguiremos morrer juntos. A gente não pode nem pensar em ir para uma guerra. Se houvesse uma guerra, não iriam querer a gente por lá: estamos velhos demais para as trincheiras […]. Restou o suicídio.

HOMEM (sério) — Preciso ir. […] Te ligo mais tarde. (sai de cena)

[continua…]

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