Locadoras, Sega Saturn e preservação digital

Uma conversa com Fábio Santana, ícone do jornalismo de games brasileiro

Ives Aguiar
Telejogo
10 min readApr 10, 2017

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Street Figther Zero 3

Revista Gamers, Nintendo World, EGM Brasil, Super Dicas Playstation, NGAMER, Revista Oficial do Xbox, Game Master, EDGE e Revista Oficial do PlayStation.

Caso tenha prestado atenção nos autores de tais publicações, certeza absoluta que o nome Fábio “Fabão” Santana pode trazer algumas lembranças.

Além de possuir currículo invejável e ser um monstro sagrado do jornalismo de games brasileiro, Fabão acidentalmente virou uma enciclopédia sobre essa indústria vital que tanto amamos.

Aqueles que já tiveram a oportunidade de conversar com ele sabem muito disso e aproveitando-se dessa noção, resolvi chamá-lo para bater um papo descontraído. Claro que queria absorver o máximo de informação possível por ser um interessado na área, mas existe algo em específico em suas atividades recentes que merecem ser discutidas abertamente.

Digamos que minha conversa de três horas foi uma mistura de biografia, excertos sobre a indústria de games, aulão sobre resolução de pixels e preservação digital.

O paulista de 38 anos começou ajudando, juntamente com seu irmão, no acervo de games na locadora de fita VHS na qual seu pai era dono. Devido a sua função, sempre visitava a sede da Pro Games, maior rede de locadoras do Brasil na década de 90. Como fã de games, alugava bastante material mas o motivo principal das constantes visitas era a aquisição de novos títulos para o acervo da locadora.

Sua primeira lembrança com videogames foi jogando Atari na casa do primo e em fliperamas nos bares na região aonde mora até hoje. A verdadeira iniciação neste universo começou quando ganhou um Phantom System, clone do Nintendo Entertainment System, dando início a uma grande peregrinação pelas locadoras mais próximas em busca de jogos.

Como muitos jogadores daquela época, Fábio prestava atenção nas capas dos jogos. A falta de conhecimento de inglês, reduzia a escolha em qual ilustração era mais interessante.

Ele cita que um clássico que vive na sua mente, o Power Blade mas muda de assunto logo em seguida ao lembrar o primeiro contato que teve com Mega Man 2.

“Foi com o Turbo Game da CCE, se chamava ‘Rock Man 2'. Tinha um cara com um jaco que tava de costas, ele fica de frente para um monstro que parecia ser feito de metal líquido. O cara estava se preparando para dar um soco, como se fosse brigar”, comenta o jornalista.

“Não faço ideia por quê saiu desse jeito. Vai que o artista que recebeu o briefing achando que era algo relacionado ao Rocky, o lutador.

A CCE (Comércio de Componentes Eletrônicos) foi uma empresa de fabricação de eletrônicos relativamente famosa, que acabou sendo adquirida pela Lenovo em 2012.

Em 1989 ela lançou no mercado o Top Game mais um clone do NES, com um diferencial: aceitava cartuchos americanos e japoneses. Como nadava no mar da ilegalidade, seus cartuchos possuíam artes próprias contendo diversas pérolas seja a arte nonsense de Rock Man 2 ou uma colagem safada de Castlevania.

É com essa naturalidade que Fabão solta uma pequena trívia sobre uma prática da indústria nacional de games desconhecida por mim até então. Parece que sua experiência como jornalista somada a sua curiosidade natural pelo assunto, dão algum tipo de poder mágico.

Para comprovar isso, basta acompanhar o seu Instagram. É como se fosse uma pequena newssletter com diversos causos, trívias, novas aquisições para sua coleção ou dicas quentes sobre um chip de 3DO.

Não sei vocês, mas toda a informação fornecida até o momento aqui é incrível para mim. Sou fascinado por essas pequenas anedotas, parece que aprendo cada vez mais sobre esse universo que não é tão registrado se comparamos com outros campos criativos.

Como a história por trás de The Portopia Serial Murder Case (1983), o primeiro visual novel japonês desenvolvido pelo criador do Dragon Quest. Nunca foi lançado no ocidente e serviu de inspiração para que Hideo Kojima, designer de Metal Gear, entrasse na indústria.

O compartilhamento por parte de Fábio desses pequenos contos não foi o principal motivo de eu ter ido atrás de sua sabedoria milenar. Sua vasta coleção de jogos antigos, principalmente o acervo peculiar de Sega Saturn, foi o que me atraíram.

De maneira casual, o jornalista já vinha coletando peças relativamente importantes em seu acervo desde da época que fazia críticas. Ele destaca as versões japonesas de Final Fantasy 7, Lunar: Silver Star Story Complete com o Movie Card para Sega Saturn e a versão japonesa do port de Castlevania: Symphony of the Night, também para Saturn.

Foi em meados de 2008 que começou investir, quando pesquisou alguns leilões de lotes de jogos japoneses. A melhor maneira de conseguir títulos raros é importando diretamente do Japão, especialmente se quer ter todos os jogos nipônicos lançados pela Capcom para Sega Saturn.

Frente e verso da versão japonesa de Street Figther Zero 3 para Sega Saturn/Fonte: TheOldComputer

Essa pesquisa resultou no pacotão do console com diversos jogos, incluído uma pérola: Street Figther Zero 3. Olhando mais a fundo, o título em questão custa em média U$350 dólares e o lote saiu por singelos U$60.

Fabão usou uma técnica que veio a desenvolver com o tempo:

“Na maioria das vezes eles não listam o conteúdo. Seja na descrição ou no título do leilão em si, para saber os jogos inclusos e o estado [dos jogos e consoles] fica ao cargo das fotos.”

A partir deste momento, ficaram faltando apenas três títulos para completar a coleção de jogos lançados pela Capcom: Rockman 8 ~Metal Heroes, Dungeons And Dragons Collection e Final Fight Revenge.

Observando esse apreço ao Saturn, queria entender por que o console não fez tanto sucesso. Fabão me explica que o lançamento de Final Fantasy 7 em 1997 ajudo foi de extrema importância em apagar o brilho da máquina da Sega.

Na época, a Sony já era uma empresa renomada de eletrônicos e sua entrada na indústria foi um pouco inusitada. Até então, a Square estava em fase de produção do próximo Final Fantasy para qualquer plataforma que a Nintendo desenvolvesse.

O Nintendo 64 estava ainda na fase de protótipos mas já era de conhecimento de diversas empresas que usaria cartuchos. Não foi uma boa para a Square, já que queria apostar em gráficos tridimensionais que não caberiam dentro de um cartucho.

Mesmo assim, eles estavam dispostos em arranjar uma solução para colocar o jogo no console. A Sony foi muito aberta, mostrou o que estavam desenvolvendo e perguntaram se existia o interesse, independente da relação da Square com a Nintendo.

O PlayStation se mostrou perfeito para renderizar os gráficos propostos e Final Fantasy 7 nasceu. Além disso, a Sony também conseguiu emplacar diversos títulos para sua plataforma, se demonstrando mais amigável nas negociações.

Foi um grande risco na época por colocar em cheque a relação da Nintendo e Square, causando uma enorme desconforto entre as duas. O próprio Fábio escreveu um pouco sobre isso quando explicou a importância de Cloud no Smash Bros. do Nintendo Wii U. A matéria especial do Polygon sobre os vinte anos de Final Fantasy 7 explica com mais detalhes como se deu o inicio do desenvolvimento.

A Sega dormiu no ponto, o que é bem engraçado se prestarmos atenção. O Dreamcast, que também não fez tanto sucesso, gerou diversas experiências bizarras e criativas como Sega Gaga, Jet Set Radio, Space Channel 5, Seaman, Crazy Taxi, Shenmue e ChuChu Rocket.

Propaganda americana para o Sega Saturn (1995)

Quando chegou o console sucessor, apenas Panzer Dragoon e Nights into the dreams geraram burburinho e o resto dos títulos vivem desconhecidos por parte do público ocidental já que a grande maioria nunca foi traduzido do japonês.

Enquanto o PlayStation demonstrava um conceito mais moderno, com alta performance na renderização de gráficos em 3D, o Saturn era basicamente uma máquina de arcade ligeiramente potente. Embora também gerasse imagens tridimensionais, seu foco estava na reprodução fiel de gráficos em duas dimensões. Por isso boa parte de seu catalogo é recheado de jogos de luta.

“O Saturn tem um charme que merece ser conhecido por mais gente, então eu tenho prazer de ajudar a espalhar a palavra”. Comenta Fábio e adiciona o fato do console ter uma grande gama de jogos de luta e RPG, parte de seus gêneros favoritos.

Com uma coleção considerável em mãos, começou a pesquisar como fazer com que consoles antigos rodarem de maneira exemplar em máquinas modernas. Foi assim que quis cair de cabeça nesse novo universo.

“Se você gosta e está satisfeito com a maneira na qual joga no momento, continue assim. Tentar reproduzir esse jogos antigos em alta definição é um poço sem fundo”, comenta o jornalista.

É um dica crucial, o resultado é impressionante mas para chegar até lá é uma árdua jornada.

O caldo engrossa quando percebe-se que a maioria dos aparelhos televisores modernos não conseguem transmitir de maneira fiel a resolução baixa de 240p. Você pode simplesmente acabar com esse problema conectando um console antigo, como o NES, em uma televisão de tubo.

Daí é criado outro problema: a maioria das televisões antigas não possuem mais suporte técnico disponível e mantê-las funcionando por um tempo prolongado não vale tanto a pena.

Quando colocamos um console antigo em uma televisão moderna, temos o famoso “upscaling”. Ele aumenta a resolução de 240p para 1080p e em cada aparelho será diferente devido ao algoritmo interno de cada marca. Via de regra, a técnica utilizada é feita para filmes e não funciona tão bem quando falamos de video games.

“A necessidade de upscale para filme é diferente, ele se beneficia mais de um upscale que deixa a imagem embaçada. No caso de um jogo, principalmente 2D, se passar por esse mesma técnica não tem o mesmo resultado, estragando a imagem.”

Exemplo do que o Framemeister pode fazer

O mais famoso e utilizado, é o Framemaister. Ele aceita todas as conexões utilizadas por consoles antigos e o que realmente vai decidir a qualidade final é o cabo utilizado. Se entrarmos mais a fundo fica bastante complicado, também não conseguiria explicar da melhor maneira possível.

Isso por que cada console é um bicho de sete cabeças, cada um com sua particularidade. Um rápido exemplo é o fato do NES não conseguir transmitir em RGB nativamente, tendo que recorrer a uma placa customizada para que isso aconteça.

Também existe o fato das televisões modernas não suportarem qualidade abaixo de 480i, resolução comum que aparelhos de DVD usam. A maioria desses consoles operam com 240p, o que dificulta aquilo que já não estava tão fácil.

O que aparelhos de upscalling fazem, como o Framemeister, é entregar o conteúdo mastigado para a TV. Eles que realizam o trabalho pesado, pegando a imagem original e passar para o sinal digital sem distorções graves, preservando cada pixel possível.

“Você consegue reparar que as imagens estão mais embaçadas”, comenta Fábio acerca da comparação que fez sobre Final Fight 2 de Super Nintendo. “Nessa conexão direta, o algoritmo da TV faz uma média dos pixels adjacentes. Ela não tem o compromisso de reproduzir com fidelidade a resolução original, gerando novos pixels. Eles se constroem como se fossem um degradê, entre a transição os pixels fica uma transição mais suave, gerando esse embaçamento.”

Já nas imagens de baixo, nota-se a melhor qualidade. Neste caso, quem realiza o upscale é o Framemeister, preservando a pureza de cada pixel. Aqui, a transição de cor entre os pixels adjacentes são os mais nítidos possíveis.”

Infelizmente, a Micomsoft descontinuou o Framemeister em 2016, com o último lote saindo em Fevereiro deste ano.

Ainda existem outros produtores similares no mercado e a probabilidade de surgir um sucessor existe. Mas o que resta para o futuro da preservação digital, em manter jogos digitais vivos e jogáveis?

“O que me deixa bastante feliz, além do avanço na emulação, é o desenvolvimento na simulação de hardware através de FPGA.”

Não esperava que fosse surpreendido com uma nova informação até mesmo perto do final da conversa. E logo fui brevemente introduzido ao que pode ser o futuro da preservação digital.

“Os FPGA ( Field Programmable Gate Array,) são processadores que podem ser programados para agir como qualquer outro processador” explica Fábio, “eles simulam o hardware original, com o compromisso de reproduzir a maneira em como processavam questões de timing, frequência e etc.”

Traduzindo para o português, as plataformas em FPGA podem ser os substitutos de consoles antigos quando eles eventualmente pararem de funcionar.

O AVS da RetroUSB e o Analogue NT Mini, são basicamente nintendinhos construídos com ferramentas modernas. Ou seja, podem reproduzir jogos em alta definição diretamente do console, possuem controles sem fio, têm saída USB e menu customizado para diferentes resoluções.

Enquanto o AVS é o mais acessível, o NT Mini é um artigo luxo. Além de custar 400 dólares, é compatível com toda a biblioteca do NES e do Famicom, contando também com todos os acessórios, até mesmo o Famicom Disk System.

Foram apenas três horas de conversa e sinto que acabei de sair de um intensivo sobre um pedaço não tão explorado sobre aqueles que falam sobre games.

“É um esforço muito necessário. Como jornalista, sempre me importei com a preservação da informação em si. Qualquer forma de conhecimento que se produz é necessário para memória.”

O futuro é promissor, felizmente já existem pessoas e grupos que se importam com essa questão, construindo algo interessante.

No momento, temos duas grandes organizações sem fins lucrativos que estão se preocupando com a preservação da cultura dos jogos digitais.

A The Video Game History Foundation, é uma biblioteca digital de arquivos com o objetivo de final de criar um acervo totalmente organizado de diversos materiais da indústria. Querem disponibilizar para pesquisadores, historiadores e como um recurso de educação para o público.

Já a Game Preservation Society, quer incentivar a pesquisa de métodos de preservação de jogos eletrônicos. Na série Inside Lens da NHK, é mostrado com mais detalhes o funcionamento da organização. Vemos por exemplo, o processo de restauração do DECO Cassette System para rodar The Tower (1981), que por sua vez foi levado para ser digitalizado e arquivado.

É assunto denso mas não menos importante, talvez seja o mais importante se olharmos para os aspecto cultural dessa indústria. Saber a luta que é rodar com fidelidade consoles antigos e descobrir o mundo dos sistemas em FPGA, me deixa animado em tentar fazer parte disso.

Que este pequeno passeio que tivermos seja de algum proveito para despertar interesse nos assuntos abordados.

Enquanto isso, vou ali tentar a sorte em leilões japoneses.

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