BANDAS DE ROCK SÃO FEITAS PARA ACABAR.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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6 min readNov 4, 2019
O RPM já sem Paulo Ricardo (substituído por Dioy Pallone, primeiro à esquerda) e ainda com P.A.Pagni (terceiro à esquerda, falecido em 2019). É a sexta reunião na história da banda

Olhando o estado atual da nossa música pop, cheguei a uma consideração inédita — uma ideia que, até agora, ninguém parece ter tido: o mal do rock nacional é que os grupos simplesmente não acabam. Parece uma idiotice, olhando assim de cara (e eu não falei que não era), mas pensem bem. (…) Se os Raimundos, Skanks e Titãs continuarem tocando para sempre, quando é que vai haver espaço para os novos Raimundos, Skanks e Titãs?” — Trecho da coluna Telhado de Vidro nº 24, publicada na revista Rock Press em janeiro de 2000.

(…) Várias bandas já morreram, mas nem sabem disso e continuam existindo (…) Eu poderia ser linchado pelos outros integrantes, mas se o Dinho (Capital Inicial) e o Rogério (Jota Quest) estivessem na minha frente, eu sugeriria também para eles um voo solitário” — Samuel Rosa, em entrevista à Folha de S.Paulo na qual anunciou a separação do Skank, 3/11/2019.

Uma lenda urbana persistente na música brasileira reza que o grupo Renato & Seus Blue Caps, fundado em 1959, figura no Guinness Book of Records como a banda que está há mais tempo em atividade ininterrupta na história do rock. Na verdade, de acordo com o próprio frontman do grupo, Renato Barros, R&SBC aventaram a possibilidade de pleitear uma citação no livro dos recordes, só que a ideia não progrediu. Aos 60 anos de carreira, a banda segue se apresentando, não muito firme nem muito forte, mas segue.

O caso dos Blue Caps é apenas o exemplo mais extremo de uma tendência histórica no rock nacional: a relutância das bandas em se separar. Há quase 20 anos, em um texto para a finada revista Rock Press (citado na abertura deste post), eu já discutia o fenômeno. “Aqui (no Brasil), os grupos não acabam: no máximo, tiram férias, entram em recesso, ou então vivem em intermináveis comebacks”, escrevi na RP. Um rápido retrospecto do panorama com algumas das bandas de maior repercussão desde o começo do dito BRock (1982) mostra o seguinte placar:

A carreira padrão de uma banda brasileira que atinge o mainstream só tem dois desfechos possíveis: 1) os integrantes se separam mas deixam o grupo em “recesso”, com a porta sempre aberta para um retorno ou 2) não há desfecho e os caras seguem tocando até o limiar do apocalipse. Inúmeros acidentes de percurso puseram a prova a resiliência dessas bandas, incluindo mortes de membros (Legião, Titãs, Nação Zumbi), múltiplas trocas de integrantes cruciais (Raimundos, Cidade Negra, Barão, Sepultura, Capital Inicial, Titãs), traumas físicos que minaram de forma irreparável a estabilidade dos grupos (Paralamas, O Rappa), quebra-paus homéricos (RPM, Raimundos, Sepultura) e quedas abissais na popularidade (praticamente todas, em um momento ou outro). Ainda assim, elas prosseguiram suas carreiras ou voltaram a se reunir, algumas mais de uma vez, outras irreconhecivelmente descaracterizadas, umas com mais dignidade e outras com menos. Mas todas parecem dispostas a desafiar o “recorde” extraoficial de Renato & Seus Blue Caps.

O problema — um dos problemas — do rock brasileiro é justamente essa tendência de transformar as bandas em instituições sólidas, confiáveis e profissionais. Isso tudo é a antítese do rock, e mais ainda: é a antítese das tensões criativas e dos conflitos humanos que tornam uma banda relevante.

Qualquer banda que não seja um projeto solo disfarçado de banda (exemplos: Smashing Pumpkins, Engenheiros do Hawaii) se nutre dos choques — literais e figurados — entre os talentos e as personalidades dos seus integrantes. São esses choques que fazem um grupo ser, como reza o clichê, algo maior que a mera soma de seus elementos. Entretanto, quanto maiores forem os talentos e personalidades reunidos, maior é a possibilidade de que esses choques, um dia, provoquem uma ruptura irreversível na união da banda. Por isso, toda grande banda vive em uma corda bamba, equilibrando opiniões, egos e discordâncias até onde possível — desde que o resultado final valha a pena, artisticamente. Esse equilíbrio é o que faz com que as bandas, em geral, atinjam picos de inspiração mais altos que os registrados pelos artistas solo (que, em compensação, costumam ter carreiras mais longas e consistentes).

Quando ocorre a ruptura, é preciso escolher entre:

a) acabar com a banda (arquétipo: Beatles);

b) acabar com a democracia interna na banda, em geral expulsando o membro mais recalcitrante, e assumir o risco de perder elementos criativos importantes (arquétipo: Beach Boys);

c) decidir que a amizade e/ou o dinheiro envolvidos são mais importantes que a música; neste caso, taca-se um esparadrapo em cima da ruptura e a banda prossegue do jeito que der (arquétipo: Rolling Stones).

Todas as bandas que construíram uma carreira longeva (digamos, 15 anos ou mais ) já passaram por esse momento de ruptura. Nove entre 10 das bandas que optaram pelas alternativas b) ou c) também se tornaram progressivamente menos relevantes e inspiradas. Em resumo: banda boa é feita para durar (relativamente) pouco tempo, e o aplainar das lombadas criativas é o que traz a acomodação e a desimportância. Faça o teste. Você consegue se lembrar do título do último single dos Raimundos? Pode citar ao menos uma canção que o RPM lançou nesta década? Toni Garrido continua no Cidade Negra, ou já largou o grupo de novo? Quem se importa?!

Mas não vou jogar essa teoria toda sem apresentar dados. Como referência canônica, peguei a lista dos 100 maiores artistas de todos os tempos da Rolling Stone e, como amostra, selecionei as 20 bandas mais bem colocadas no ranking. Depois, usando outra lista da RS — a dos 500 melhores álbuns da história — procurei fazer uma relação entre o tempo total de carreira das bandas X o tempo que elas permaneceram em atividade depois de terem atingido seu pico criativo.

*Considerando anos de atuação ininterrupta a partir da formação original. **Disco ‘mais importante’ no escopo deste levantamento: o álbum mais bem posicionado na lista de 500 maiores álbuns da Rolling Stone

Claro que se trata de um levantamento nada científico, do qual muita gente pode discordar por razões pessoais. Mas os números apontam tendências mais ou menos incontestáveis. Os Beatles só ficaram juntos três anos depois de lançar seu disco mais consagrado, Sgt. Peppers. Já os Stones, que segundo o senso comum chegaram ao pico em 1972 (Exile on Main Street) ainda estão por aí, 47 anos depois (e é difícil discordar que eles nunca mais chegaram perto daquele nível de inspiração). Há casos extremos para os dois lados. Os Sex Pistols duraram três anos, fizeram um único disco e se foram. O Queen chegou ao auge em 1975 (A Night at the Opera), perdeu um frontman insubstituível em 1991 e mesmo assim não desistiu, convertendo-se em uma espécie de parque temático em forma de banda.

Quanto maior o tempo em que uma banda permanece em atividade, maior é o risco de acomodação e de irrelevância. Existem exceções. O R.E.M. durou 31 anos e manteve uma produção invejavelmente digna e consistente durante todo esse tempo, mesmo sobrevivendo à perda do baterista Bill Berry em 1997. O U2, que esteve perto de se separar depois do megasucesso de The Joshua Tree/Rattle and Hum, usou a crise interna para se reinventar durante a década de 1990. O Radiohead, cuja união original remonta a 1985, recusa o status de dinossauro por meio de experimentalismos e projetos paralelos. No Brasil, os exemplos são mais raros. Os Paralamas do Sucesso se encaminham para os 40 anos de carreira com uma dignidade muito maior que a dos seus contemporâneos, ainda que a produção pós-2001 (ano do acidente de Herbert) não chegue perto do nível anterior. O próprio Skank preservou sua integridade o quanto pôde — mas nos últimos 11 anos lançou apenas dois discos de estúdio.

Vejam bem, não se trata de baixar um emenda constitucional estipulando aposentadoria compulsória para grupos com “X” ou mais anos de trajetória. Enquanto houver público aplaudindo, por que não continuar? Só quem tem o direito de resolver sobre isso é a própria banda. Mas chega um momento na vida de qualquer artista em que ele se olha no espelho e se pergunta: ainda vale a pena? Samuel Rosa chegou a este momento, aparentemente. Antes tarde do que nunca. Aposto que ele concordaria comigo.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)