ENQUANTO HOUVER CHOPE & KASSLER, HÁ ESPERANÇA.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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4 min readSep 10, 2019
Eu não apenas frequento o Bar Luiz; minha primeira guitarra elétrica foi comprada na Guitarra de Prata, ex-vizinha de porta na Rua da Carioca

Tenho pensado seriamente em abrir um bar. Um lugarzinho pequeno, apenas um balcão, algumas mesas e — essencial — um espaço para uma pista de dança, para promover festas com entrada franca. Talvez uma bancadinha para vender vinis? Não sei onde seria, não sei quanto eu gastaria com o empreendimento, não sei qual seria o nome; só sei que tenho essa vontade, motivada sem dúvida pela total desesperança diante das perspectivas profissionais da carreira que escolhi. Ventilei minha ideia nas redes sociais e vários amigos se alarmaram, lembrando da altíssima taxa de mortalidade dos negócios do segmento, agravada pelo miserê econômico sem fim no qual a cidade e o estado do Rio de Janeiro se encontram. Se o Bar Luiz, centenária instituição da boêmia carioca, está prestes a fechar as portas, que esperança teria eu como botequineiro?

O fim do Rio de Janeiro está consumado, e a morte dos Restaurantes Tradicionais Cariocas™ é parte do processo. Uma cidade e um estado não acabam de repente, nem por uma única razão; é preciso que ocorra uma confluência de fatores políticos, sociais, econômicos e psicológicos, gestada durante um longo tempo, para desembocar na merda em que os fluminenses se encontram hoje. Os Restaurantes Tradicionais Cariocas™ (RTCs, para abreviar) pertencem a um Rio que não existe mais. O Capela, o Bar Brasil, a Casa Vilarino, o Cosmopolita, o Rio Minho, o Lamas, a Colombo, a Paladino, a Toca do Baiacu, o Itahy, o Cedro do Líbano, o Escondidinho, o Opus, o Mosteiro, o Sentaí, o Esquimó, a Casa Urich e outros tantos no eixo Cidade Nova-Centro-Lapa são anacronismos, palimpsestos teimosos que registram a existência pregressa de uma cidade, e de uma sociedade, que já se foram. Mas quando esses lugares se vão, também não é por uma única causa mortis.

Bares e restaurantes são negócios eternamente sujeitos à mudança de humores da freguesia. Mudam as modas, flutuam os interesses do público. Num momento, os bares temáticos bombam; noutro, os food trucks roubam o protagonismo; depois de amanhã, é a vez da coquetelaria autoral. O sushi de ontem é o hambúrguer de hoje e o gim tônica de amanhã. Quem não se liga nessas transformações, ou quem as recusa peremptoriamente (caso dos RTCs), está sempre sujeito a perder público de uma hora para a outra. Ainda assim, a reputação, a qualidade do serviço e da comida e o ambiente tradicional podem ser capazes de compensar a impermeabilidade às mudanças e atrair novos públicos — porque se um RTC vive apenas de sua clientela amiga, vai fechar as portas assim que o último freguês ancião fenecer.

Para além da natural disputa pelos consumidores, os RTCs sofreram com a gentrificação e o aumento do custo de vida na cidade, processos iniciados com os anúncios da Copa do Mundo de 2014 e da Olimpíada de 2016. O Rio nunca foi barato para se viver e/ou empreender, e a situação piorou muito nos últimos 10 anos. A disparada enlouquecida dos preços no mercado imobiliário foi acompanhada por previsões igualmente tresloucadas de aumento no movimento do segmento de serviços. Provando de forma literal que não existe o almoço grátis, os RTCs acompanharam a tendência generalizada de inflação em seus cardápios, afugentando boa parte dos clientes de sempre. Ir ao Bar Brasil, um dos meus lugares favoritos (lugares, note bem, e não restaurantes) na face da Terra, virou uma ocasião especial (com preços à altura) — e não mais uma simples visita cotidiana a um boteco querido.

No front financeiro, essas casas foram atingidas em cheio pela destrambelhação nos alugueis no Centro da cidade e pelo descaso do poder público em relação à região. Outro fator negativo intrínseco à realidade carioca é a violência, que efetivamente obrigou vários estabelecimentos a reduzirem seus horários de funcionamento, deixando na mão os notívagos mais renitentes. Para completar a desgraceira, o estado quebrou, o desemprego anda em alta, as pessoas andam sem dinheiro para comer. O que dirá para comer fora.

Como jornalista e frequentador de RTCs desde a primeira metade da década de 1990, testemunho que esses bares e restaurantes sempre tiveram dois atrativos fundamentais: um custo/benefício razoável e o fato de ficarem abertos até o fim da madrugada. Hoje, um jornalista carioca que deixe a redação lá pelas 2h A.M. não vai mais ao Lamas ou ao Capela porque a) ficou caro demais comer nessas casas e b) eles estão fechando mais cedo. [Pode-se argumentar que c) já não existem mais redações no Rio, mas esse papo fica para outro post.] Outro trauma pessoal foi quando o Luiz abandonou o chope Brahma e aderiu à marca Sol, uma ruptura que chacoalhou as estruturas da comunidade dipsomaníaca carioca.

Anacrônicos em um mar de Belmontes genéricos, praticando preços incompatíveis com a experiência oferecida, incapazes de renovar sua clientela e, por definição, de modernizar sua imagem, os RTCs parecem fadados à extinção. Mas a reconstrução do Rio de Janeiro pós-holocausto poderia muito bem passar por eles, por sua manutenção e revalorização. Bares como o Luiz resumem muito do que há de positivo na carioquice: o ambiente histórico mas informal, a intimidade sem forçar a barra, a boemia como estilo de vida, a democracia social, o convívio junto e misturado entre ricos & pobres, progressistas & reaças, intelectuais & iletrados. Tudo isso é necessário para que nós, os sobreviventes do Rio de Janeiro destruído, possamos reerguê-lo quando a maré melhorar. É por isso que, quando um RTC morre, o pouco da cidade que ainda resta morre junto. O Rio da praia, do Maracanã e do Carnaval também é o Rio do Bar Luiz.

E pode ser o do meu bar, também. Quem sabe?

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)