ESG: MENOS MÃO INVISÍVEL, MAIS MANGAS ARREGAÇADAS

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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5 min readFeb 2, 2021

ESG não é caviar. Ainda assim, muita gente por aí nunca viu, nem comeu, mas tá ouvindo falar (a respeito), e cada vez mais. Em 2020, o interesse pelo termo atingiu um pico sem precedentes, e foi parar em manchetes de jornais e revistas, discursos de CEOs e de coaches e na agenda de organizações não governamentais. E não, não me refiro à Escola Superior de Guerra; refirmo à sigla (em inglês) que denota os aspectos ambientais (environmental), sociais e de governança envolvidos nas atividades das empresas.

Não é de hoje que há uma preocupação crescente com os impactos socioambientais causados pelas corporações, especialmente as grandes e as gigantes. É cada vez mais consolidada a percepção de que a perenidade e a sustentabilidade de um negócio passam pelo equilíbrio entre resultados financeiros e a criação de valor compartilhado com a sociedade. Daí a preocupação com o ESG: redução de impactos ambientais (E), projetos de cunho social (S) e a adoção de boas práticas de governança corporativa (G) dão concretude à essa percepção.

Quando eu comecei a trabalhar com sustentabilidade corporativa, há quase dez anos, os especialistas na área já previam que esse momento chegaria e já debatiam como mensurar o valor econômico dos aspectos ESG — pois era óbvio que as empresas só se interessariam pelo tema se ele demonstrasse potencial de gerar lucros.

A novidade em torno do tema é que, nos últimos anos, afinal, os avanços das empresas na agenda ESG passaram a ser vistos pelo(s) mercado(s) como diferenciais competitivos e elementos de criação de valor financeiro (que, sejamos francos, sempre foi o único interesse mesmo). Era inevitável que as três letrinhas também passassem a ser vendidas como vitamina para desempenhos financeiros combalidos/marketing para empresas com imagens públicas queimadas/companhias com histórico de péssimas práticas sociais e ambientais.

Por isso eu fiquei com os dois pés atrás ao ver pendurada na banca a edição de janeiro da revista VC S/A, que fazia referência à ~mão invisível do ESG~. Sinal amarelo acesão.

Em relação à gestão de ESG, não cabe o paralelo com a metáfora pensada por Adam Smith para resumir a (suposta) capacidade do capitalismo de se autorregular, sem a necessidade de interferências “artificiais” como regulações e protecionismos. A mão invisível é, na real, guiada por um punhado de pares de mãos bem visíveis, que entram em ação sempre que há alguma ameaça ao objetivo final do capitalismo: a acumulação de lucros. (Note bem que os porta-vozes da “mão invisível” não veem problema algum em aprovar a intervenção estatal, desde que seja aplicada em seu benefício.)

A gestão de ESG na verdade “briga” com a mão invisível de Smith, ao obrigá-la — nem sempre com sucesso — a reduzir margens e dispensar parte dos lucros, em nome da sustentabilidade e da perenidade do negócio. Pensar em ESG como um investimento que gere retorno concreto em curto prazo é contrariar a própria ideia da criação de valor compartilhado entre as empresas e a sociedade. Os resultados são incrementais, de difícil mensuração em termos monetários e às vezes mesmo intangíveis do ponto de vista financeiro. Mas a lógica é a seguinte: se as empresas não se mexerem para tornar o mundo um lugar menos pior, em breve não haverá mundo no qual elas possam vender produtos e serviços.

O foco nas questões ESG pode até ser uma das ferramentas usadas por essas mãos visíveis em busca de seu objetivo. Mas o lucro advindo do investimento socioambiental e em governança deve ser sempre uma consequência do real interesse das empresas pelas questões ESG, e não uma artimanha (exclusivamente) criada de olho nos resultados trimestrais.

É um clichê que a gente (consultores em sustentabilidade corporativa) não cansa de repetir aos clientes: o rabo não pode balançar o cachorro. Primeiro a empresa precisa ter uma real gestão de ESG, com estratégia, metas, projetos e métricas; depois é que vai capitaliza-la, dando visibilidade aos resultados atingidos. Não adianta inverter a lógica e botar o rabo (o marketing) para balançar o cachorro (o que a empresa efetivamente faz em ESG).

Manchetes como a da VC S/A vão na contramão dessa lógica e atribuem um caráter “mágico” ao debate, que na verdade não tem nada de magia. Uma boa reputação em ESG é resultado de planejamento, investimento, engajamento interno e externo e muito trabalho. Depois disso tudo, aí sim vêm, ou podem vir, os lucros.

A reportagem contribui para a confusão ao mencionar repetidas vezes um tal “selo ESG" que seria conferido às companhias que se destacam na gestão social, ambiental e de governança. O termo “condecoração” (?) também é usado. Sim, não faltam consultorias e especialistas por aí vendendo “certificações ESG” — ou melhor, ensinando o caminho das pedras para as empresas serem inseridas nos índices ESG do mercado de capitais. Entretanto, não existe um “selo ESG”.

(A certo ponto do texto, ressalta-se que “não existe uma única entidade responsável por fazer um check-list e atribuir um selo, tipo o Inmetro ou a ISO.” Só que aí a confusão já está feita.)

O resto da reportagem reflete um trabalho até razoável de explicação das mudanças no cenário da sustentabilidade corporativa nos últimos anos. Tudo meio resumidão, com um tom um tanto blasé e cínico, mas eficaz. Se você e/ou sua empresa são completamente analfabetos em ESG, podem usar a matéria como um cartilhinha bê-a-bá (é-esse-gê) sobre o tema. Só não vá cair na esparrela da “mão invísvel” nem no conto do “selo ESG”, por favor.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)