MEU ARTISTA FAVORITO É UM ESCROTO. O QUE FAZER?

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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6 min readDec 4, 2017
Conseguem identificar um padrão aqui?

Morrissey falou merda. De novo.

Vocês devem ter ouvido falar da entrevista do ex-vocalista dos Smiths na qual ele relativizou as acusações de assédio sexual levantadas contra Kevin Spacey e Harvey Weinstein, passou pano nas transas que David Bowie teve com menores de idade nos anos 70 (“Era absolutamente normal naquela época”) e afirmou que Berlim converteu-se na “capital do estupro” com o aumento na concessão de abrigo para refugiados e imigrantes. Eu, como fã de longa do cantor, lamentei suas declarações, mas meio que dei de ombros porque, afinal, não era a primeira vez que ele falava merda. E tenho certeza de que falará de novo.

Eu ia deixar o assunto morrer, até que Meu Amigo Troll Reaça™ veio me pelar o saco. Enviou um link para a entrevista devidamente acompanhado de um “Hahahaha” e esperou que eu mordesse a isca. Segue a reprodução do diálogo:

A reaçada faz a festa.

É oficial: vivemos em um mundo em que não basta ser fã. Precisamos nos posicionar também. Ainda mais se somos pessoas que defendemos bandeiras progressistas. Caso contrário, dá nisso aí que ilustrei na imagem acima: seremos cobrados e trollados pela falta de coerência. É possível acreditar em feminismo, direitos humanos, diversidade, igualdade, multiculturalismo, tolerância etc. e, ao mesmo tempo, admirar um artista que, eventualmente, bate de frente (em atos ou em palavras) com um ou mais desses valores?

2017 entrará na história da indústria cultural como o ano do levante contra o machismo, o assédio sexual e o abuso de poder de homens sobre mulheres. Na retrospectiva do ano nos EUA (e, por tabela, em todo o mundo ocidental), o grande destaque não será um filme, um livro, uma peça de teatro, um disco ou uma série de TV — e sim os sucessivos abalos sísmicos sentidos a cada denúncia de comportamento impróprio de atores, diretores, produtores, músicos, comediantes, escritores, apresentadores. Os causos diferem nas circunstâncias e métodos usados: há desde o tiozão dos abracinhos apertados e inconvenientes até o produtor que usava artimanhas dignas dum supervilão de filme do 007 para acobertar seus abusos. Como resultado direto das revelações, vimos séries de sucesso sendo canceladas, catálogos deletados de plataformas online, montagens teatrais abortadas, estúdios de cinema indo à falência, magnatas do mercado fonográfico afastados. Como resultado indireto, podreiras antigas a respeito de outros artistas acabaram por voltar à baila. Tudo convergindo para um mesmo imperativo: o comportamento imoral desses caras todos é indissociável de suas obras e não se pode mais admira-los diante dessa pesadíssima bagagem.

Aqui, antes mesmo dos escândalos que abalaram Hollywood, tivemos nosso terremotinho particular. Uma das bandas mais queridas do cenário indie suspendeu suas atividades depois da revelação de que um dos membros tratava sua companheira de forma particularmente abominável. Nas intermináveis discussões sobre o tema nas social networks, o dilema em pauta era: a banda deveria ser prejudicada em razão da vida íntima de um de seus membros? Seria certo pedir um boicote aos shows e discos do grupo? Muitos fãs se sentiram traídos de forma quase pessoal, fazendo a si mesmos a mesma provocação que Meu Amigo Troll Reaça™ lançou a mim: “Renego os caras ou não? Como EU, uma pessoa legal, posso gostar de uma banda enrolada com essa merda toda?!”

Pode, sim. Deixe-me tentar explicar.

Quando olho minhas estantes de discos, livros e filmes, reconheço vários dos nomes envolvidos nos escândalos supracitados — e em outros mais. Woody Allen é um dos meus cineastas favoritos e mais, uma importante referência intelectual para mim, desde moleque. R.Kelly é um gênio do r’n’b contemporâneo. A filmografia do Polanski dispensa comentários. (Diabos, eu até gostei do disco do Apanhador Só!). Se estendermos a análise para outras eras, veremos um rosário de flores-que-não-se-cheiram: Tim Maia e sua irascibilidade, Hitchcock e suas bem documentadas avançadas de sinal, as escrotices do líder do Ultraje a Rigor, Orson Welles tratando a família como lixo, todos casos exemplares de homens talentosos que, de uma forma ou de outra, aproveitaram-se de sua fama e prestígio para cometer atos inaceitáveis.

O dever de todos nós, fãs dos artistas envolvidos ou não, é repudiar esses atos e fazer de tudo para reformar as estruturas que possibilitaram a esses artistas cometerem tais atos. É uma reforma que não pode se limitar à indústria do entretenimento. É preciso estabelecer uma sociedade na qual o sexo não seja moeda de troca para a ascensão profissional; na qual os relatos de estupro, abuso sexual e assédio sejam levados a sério; na qual procure-se entender a história toda antes de buscar relativizações automáticas; na qual não se invertam os papeis de vítima e do agressor. O preço dessa reforma pode ser a decretação do fim do futuro profissional de alguns dos envolvidos. É um preço alto demais? Difícil dizer agora. Acredito que passamos por um momento de transição no tratamento público de todas essas questões, que lições serão aprendidas e que determinados padrões de comportamento passarão a ser inaceitáveis — nem que seja por instinto de autopreservação. Até o fim dessa transição, veremos medidas que para alguns podem parecer excessivas. Mas não dá pra parar agora.

O que dá pra parar agora é a ideia de que devemos rejeitar o legado desses artistas. Não se trata de apelar para o clichê da separação inabalável entre criador e obra (clichê invocado até por gente mais inteligente que eu, tipo Camille Paglia). Não acredito nisso. O talento não existe num vácuo, separado da vida e das experiências pessoais. Qual porcentagem da personalidade manipuladora e agressiva de Frank Underwood vinha do comportamento de Kevin Spacey? Quando Louis CK falava de masturbação, estava fazendo piadas ou confessando suas fixações? Se Bob Dylan fosse um marido bacana, teria tido a inspiração para um de seus melhores discos? Mas há outro clichê aplicável aqui, cunhado por um sujeito que também não escapou de ser questionado por suas escolhas questionáveis: “De perto, ninguém é normal”. Nossos amados artistas não estão acima de nós, pelo menos quando se trata de seu caráter humano, demasiadamente humano. A biografia falha pode manchar a pessoa, mas se deixarmos que lance sombras também sobre sua obra, não sobrará obra alguma a ser admirada.

O dilema do progressista nesse caso é o desalinho entre a paixão pessoal e a(s) bandeira(s) social(is). Pois eu digo: você se define como progressista? Então vai na tua e deixe os outros irem na deles. A decisão pessoal de renegar a obra de um artista por conta do que ele, artista, fez ou disse é 100% válida. Mas compete apenas a quem a tomou. Se o que o cara fez te deixou revoltado o suficiente, vá em frente: arranhe os discos, rasgue os livros, saia da cidade no dia do show. O que você não deve fazer é exigir que os outros façam a mesma coisa. Ou bater boca online com quem ainda admira o artista. Ou desfazer amizades com pessoas que ainda o prestigiam. O inverso também vale. Nunca joguei fora um livro por causa do caráter do escritor. Minha caixa Back to Mono vai continuar no mesmo lugar de sempre, a despeito do comportamento sociopático do homem responsável por suas músicas. Não deixarei de ver o filme novo do Allen e espero que ainda venham muitos outros por aí. Mas também não considero que minha postura seja a correta. Muito menos a recomendo a quem quer que seja. EU sei que a admiração por uma obra não representa perdão incondicional para as cagadas de seu autor. Mas isso serve pra MIM. Se não serve pra você, beleza, sigamos em frente. Progressismo (também) é isso.

Rejeitar um artista não é tão simples quanto boicotar a Friboi ou desinstalar o Uber do celular. Uma obra toca pessoas diferentes de formas absolutamente diferentes. Livros, discos, filmes, pinturas, HQs, peças de teatro salvam vidas, fazem companhia, ensinam lições, moldam o caráter. Enfim, não são apenas pedaços de papel ou de vinil ou gigabytes num HD. São pedaços de nossas próprias vidas. Esses pedaços sim existem num vácuo, selados na alma de cada pessoa que foi tocada por essas obras, alheios a qualquer coisa que o autor tenha feito com qualquer outra pessoa. Ninguém tem o direito de questionar a reação alheia diante de uma denúncia envolvendo um artista a quem se ama.

Que as vítimas de todos esses casos hediondos recebam a reparação, o conforto e a justiça devida a elas. Que os criminosos, os abusadores, os estupradores, os assediadores paguem pelo que fizeram. Que se transformem as relações de poder que permitiram a eles cometerem seus crimes. Mas que as minhas, as suas, as nossas relações com suas obras possam sobreviver. Apesar das decepções eternas com seus autores.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)