PARA OS REACIONÁRIOS, A TERRA SEMPRE FOI PLANA.

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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7 min readFeb 27, 2020

“Os movimentos políticos polarizadores na Europa do século 21 demandam muito menos de seus seguidores. Não requerem a crença em uma ideologia completa (…), não forçam as pessoas a acreditarem que preto é branco, guerra é paz ou que as fazendas estatais superaram em 1.000% a produção prevista. A maioria deles não divulga propaganda que contrarie a realidade cotidiana. E ainda assim, todos esses movimentos (…) encorajam seus seguidores a acreditarem, ao menos parte do tempo, em uma realidade alternativa. Às vezes, essa realidade alternativa se desenvolve de forma orgânica; mais frequentemente, ela é formulada de modo cuidadoso, com a ajuda de modernas técnicas de marketing, segmentação de públicos e campanhas de mídias sociais.” — Anne Applebaum, em “A Warning From Europe: The Worst Is Yet to Come(The Atlantic, outubro de 2018).

Não vai fazer diferença. Não posso vencê-los. Só o que tenho a meu favor são fatos e ciência, e as pessoas odeiam fatos e ciência.” — Leslie Knope, em “Fluoride” (episódio 8 da sexta temporada de Parks and Recreations).

Em 23 de novembro último, foi realizada em São Paulo a Flat CON Brasil, o “primeiro evento nacional que discutiu o formato da Terra.” De acordo com os relatos na página oficial do encontro no Facebook, a convenção reuniu 400 pessoas e “já pode ser considerada uma das maiores do mundo, atrás apenas da edição americana.” A primeira Flat CON nativa mereceu farta cobertura da imprensa local, tanto durante a preparação do evento quanto depois de sua realização.

Confesso que eu também mordi a isca: cheguei a enviar dois e-mails para a organização do convescote, pedindo para entrevistar algum representante do evento, mas fui ignorado. Eu já tinha visto o documentário do Netflix sobre o terraplanismo e lido materiais variados a respeito do movimento. Boa parte dos textos usava um tom cético, quando não abertamente sarcástico, para abordar as crenças e os métodos científicos dos flatearthers. Eu planejava fazer um texto no mínimo mais isento, numa tentativa honesta de entender o raciocínio e o modus operandi dos caras. Então fui conferir um pouco do conteúdo de alguns dos influenciadores que se apresentariam na convenção.

Quanta classe.

Como youtubers, os 12 palestrantes anunciados como atrações da Flat CON reúnem um público total que ultrapassa 1 milhão de assinantes. Seus vídeos tratam, claro, de evidências (nem sempre) científicas do formato achatado de nosso planeta. Mas não só. Há debates a respeito de todo tipo de tramas secretas, profecias ancestrais, mensagens subliminares, supostas fraudes históricas. Um tema comum a praticamente todos: a noção de que os livros de história, a mídia, os governos e outras instituições propagandeiam uma realidade 100% falsa. A terra plana é apenas uma porta de entrada para desmantelar toda essa estrutura fake.

Enquanto repassava as leituras, os vídeos assistidos e os depoimentos coletados em A Terra É Plana, algo ficou claro: o terraplanismo é a teoria da conspiração que veio para acabar com todas as teorias da conspiração. Os caras chegam ao ponto de duvidar de um pressuposto tão (literalmente) universal quanto o formato da Terra e seu movimento de rotação. E creditam tudo a um plano (com trocadilho) mantido durante séculos por uma confluência de forças ocultas. Quando falo em tudo, é TUDO mesmo: tudo o que foi pesquisado e postulado em astronomia, física, história, geografia desde Galileu, ou seja, 99% do que chamamos “ciência”, basicamente é mistificação.

Quando se parte deste ponto inicial, admitamos, torna-se impossível acreditar em qualquer tentativa de explicar a realidade, ou mesmo na realidade em si; tudo, até mesmo os mais basais aspectos da natureza e da vida em sociedade, passa a ser uma fachada, uma manipulação. A cor do céu. O nascer e o pôr do sol. A gravidade. Como, então, crer na validade de conceitos ainda mais abstratos e fluidos — pois dependentes de circunstâncias históricas, sociais, políticas, econômicas — como direitos humanos, democracia ou mudanças climáticas? É a inversão da famosa frase de Wellington: quem não acredita que a Terra seja redonda, simplesmente não pode acreditar mais em coisa alguma.

Há um aspecto, ou mais de um aspecto, de terraplanismo nos discursos das forças que hoje comandam a política nos EUA, na Polônia, na Hungria e no Brasil. O ódio à ciência, aos cientistas e à academia em geral é apenas o traço em comum mais evidente. Numa trajetória que espelha a do populismo reaça, o terraplanismo ganhou enorme tração nos últimos anos graças às mídias sociais (Facebook e YouTube principalmente).

Pior é que o cara deve ter escrito isso e pensado: “Porra, sou um gênio!”

A ideia da luta permanente contra um inimigo inexistente (e portanto, imbatível, daí a luta infindável) é fundamental a ambos. Os terraplanistas lutam contra a ciência mainstream para fazer valer seu ponto de vista, e (provavelmente?) nunca vencerão. A justificativa para a derrota anunciada é que as forças que “inventaram” a Terra redonda trabalham incansavelmente para sufocar a “verdade”. Os reacionários lutam contra uma miríade de oponentes — a esquerda, os movimentos sociais, os imigrantes, qualquer tipo de comportamento ou crença que lhes desagrade — que, em sua visão, impede os cidadãos-de-bem de terem vidas plenas e satisfatórias. A “terra plana” do populismo reaça é a ideia de que já houve um tempo em que a sociedade, livre de todos esses (supostos) oponentes, era um lugar melhor para se viver. Assim como a terra plana, esse tempo nunca existiu.

E assim como os terraplanistas duvidam das conclusões científicas referendadas pela academia, os reacionários duvidam da eficácia das instituições democráticas. Eis o cerne da crucial ideia da contraposição ao “sistema”. Para os terraplanistas, o “sistema” é a conspiração que criou todas as evidências de que o planeta é redondo (mais exatamente, esferoide), para manter a humanidade no “escuro”. Os reacionários se enxergam como inimigos naturais de um “sistema” que inclui, a depender das circunstâncias, a mídia, os poderes judiciário e legislativo, os partidos de oposição, países “inimigos", o empresariado, as ONGs, os sindicatos, etc.

Não importa que nessa definição de “sistema”, muitas vezes sejam agrupadas (na visão reacionária) forças e agendas completamente opostas. Na luta contra o “sistema”, as contradições são o de menos. Um bilionário astro da TV pode se apresentar como outsider e defensor dos descamisados, um político com quase 30 anos de presença (abaixo do medíocre) no Legislativo pode se credenciar como “fora do sistema”.

Trechos do artigo da The Atlantic (uma reportagem sobre a consolidação da extrema direita populista na Polônia e suas conexões com regimes semelhantes ) citado no início deste post voltam à baila. Se “acreditar em uma realidade alternativa” é um pressuposto fundamental para os adeptos das ideologias reacionárias populistas dos nossos dias, então os terraplanistas são a massa de manobra ideal para essas ideologias. Não há realidade mais alternativa do que uma realidade na qual a Terra não é redonda.

Então.

Não é difícil enxergar a potencial intersecção entre os adeptos do terraplanismo e os seguidores da nova direita populista global. A sinergia entre a alt-right e os flatearthers já foi explorada em artigos como este aqui e este outro aqui, que enxergam um fio em comum nos dois movimentos: uma descrença inata em qualquer indivíduo ou instituição que se apresente como “especialista” (como cientistas) ou “autoridades” (como políticos). A diferença é que enquanto os terraplanistas elevam sua descrença a um nível cósmico/metafísico, os direitistas rebaixam esse approach quase niilista ao nível da realpolitik: semeiam e estimulam o descrédito nas instituições (imprensa e establishment político/judiciário, em especial) e o usam como arma para desestabilizar o cenário sociopolítico.

A maior parte dos terraplanistas brasileiros — ao menos, os que participaram da Flat CON — não aborda questões partidárias diretamente. Mas três dos convidados do evento não escondem sua preferência ideológica pela direita. (Número de esquerdistas declarados: zero.) Um deles (não por acaso, o com maior número de seguidores) passou, nos últimos meses, a postar apenas vídeos de apoio ao atual governo (e de ataques à oposição). Reunidos, os três terraplanistas de direita contabilizam mais de 600 mil seguidores no YouTube. E todos sabemos do potencial que o YouTube tem para amplificar vozes de extremistas e alastrar mensagens radicais.

Duvidar é importante. Questionar dogmas, ensinamentos, teorias sempre fez parte da evolução da humanidade. Se não questionássemos a natureza que nos cerca, não haveria ciência. Mas é preciso haver confiança em algum parâmetro mínimo para se poder evoluir. O que os terraplanistas exigem é mais que um salto no escuro, é a própria escuridão: negar completamente séculos de pensamento científico e traçar um novo sistema, regido por normas sobre as quais nem os próprios terraplanistas conseguiram chegar a um consenso ainda. Enquanto esses ~pequenos detalhes~ não se resolvem, eu prefiro ficar com a boa e velha ciência de sempre, se me permitem.

Ainda assim, é mais palatável acreditar na terra plana do que em Kaczynski, Orbán, Salvini, Le Pen, Trump, Bolsonaro. Os correntes movimentos reacionários globais — o paralelo do terraplanismo na política — também exigem a negação das instituições e um salto no escuro. Mas prometem que lá do outro lado vai haver um líder forte e decidido para nos amparar e nos proteger do “sistema”. Quem acredita nisso, acredita em qualquer coisa.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)