Quando foi que “CIDADÃO” passou a ser ofensa?

Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro
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5 min readDec 7, 2020

Virou meme. Na verdade, memes: mais de um.

O embate entre um casal de classe média e um fiscal da Prefeitura do Rio de Janeiro que tentava verificar o cumprimento de normas de isolamento social em um bar na Barra da Tijuca virou notícia nacional. Deu no Fantástico, viralizou geral, custou à madama autora da frase seu emprego. O tom da repercussão nas redes foi de repúdio à arrogância do discurso e à atitude de descaso ante à ameaça da Covid-19. Atitude, aliás, nada surpreendente vinda de um casal autodefinido (antes de desaparecer das redes sociais) como “Direita, anti-PT, anti-PSOL, anti-PC do B, anti extrema imprensa”.

E não é que, cerca de cinco meses depois do ocorrido no Rio, a história se repetiu em Belo Horizonte — não como farsa, mas a sério mesmo?

Roteiro seguido à risca: fiscal chega para interditar estabelecimento aberto de modo irregular. Frequentador aborda a caravana municipal, com discurso no tom “você-é-meu-empregado-por-ser-funcionário-público”. E, como punchline, a mesma indignação ao ser tratado como “cidadão” pelo fiscal. Para não incorrer em um acusação de plágio, o protagonista só trocou o “…engenheiro civil” por “…servidor público federal”.

Mas por que ser chamado de “cidadão” tira o brasileiro do sério? Talvez se essa galera conhecesse a etimologia original do termo, não se sentisse tão injuriada. Afinal, na polis da Grécia antiga, os πολίτης eram respeitados e tinham voz ativa na política das cidades. Cidadania era coisa exclusiva para homens ricos e nativos da polis; mulheres, escravos e estrangeiros não eram considerados cidadãos.

No mundo pós-iluminismo, o conceito de cidadania mudou bastante. Para além das questões do nacionalismo, ser um cidadão significa se reconhecer em uma estrutura social na qual há um relacionamento contínuo entre o povo e os agentes do estado, baseado em leis e na premissa da igualdade. Representatividade política, acesso aos serviços públicos, liberdade de expressão, banimento de qualquer tipo de discriminação: tudo isso é cidadania. Em essência, trata-se de reconhecer que todo indivíduo tem o mesmo status perante a lei, e os mesmos direitos e deveres diante do estado e dos demais indivíduos.

Quem conhece um pouquinho da história do Brasil sabe que temos feito, desde 1500, um péssimo trabalho na disseminação desses valores. Ninguém, no Brasil, na Noruega ou na Somália, nasce sabendo como ser cidadão. É um aprendizado, não diferente de uma linguagem ou o uso correto do vaso sanitário. Mas o brasileiro não pode contar com o estado para ensinar. Pelo contrário: desde sempre, nossos representantes nos três poderes fazem questão de ignorar essa coisa de “todos-iguais-perante-a-lei”. Cronicamente demofóbico desde as capitanias hereditárias, o estado brasileiro funciona muito bem para uns poucos e muito mal para uma enorme parcela da população. O recado é claro: a igualdade só vale no papel. Na prática, é cada um por si e quem pode mais, chora menos.

Aliás, a própria ideia da promoção da universalidade de direitos políticos e sociais por parte do estado — sob o reconhecimento da lei — é algo relativamente novo em nossas bandas. Lembremos que a abolição da escravatura ocorreu há meros 132 anos; que quando a República foi proclamada, os direitos políticos ainda eram sujeitos a critérios de renda e de gênero (isto é, apenas para homens ricos); e que mulheres só passaram a votar em 1932. Ou seja, até pouquíssimo tempo, a cidadania no Brasil não era muito diferente daquela praticada na Grécia do tempo de Platão.

Na outra ponta, a população demonstra que entende direitinho a mensagem. O jeitinho brasileiro, visto não raro como traço da nossa simpática e atávica informalidade, é a negação da cidadania. Um país onde todos são tratados de forma igual não precisa dessas subversões cotidianas das normas. Diante da desigualdade no tratamento dado justamente por quem deveria promover a igualdade, o jeitinho é a forma com a qual o povo busca se desviar das cascas de banana sociais e econômicas em seu caminho. Mas também é a origem do “sabe-com-quem-está-falando?”, do despachante, do QI (“quem indica”), das firmas reconhecidas, do “fala-com-a-Márcia”. A disposição do brasileiro em burlar as regras vira um potencial tiro pela culatra. Hoje eu furo a fila, amanhã é você a passar na minha frente. No fim, todo mundo se fode junto.

Nesse contexto, assumir-se “cidadão” — ou seja, presumir que a lei é igual para todos e que o meu direito não se sobrepõe ao seu — é uma ofensa. Uma certidão de otário. É a mesma cultura que produziu a aberração chamada “cidadão-de-bem”, resumo semântico da situação: existem cidadãos e CIDADÃOS, uns melhores que outros, merecedores de mais respeito, para os quais as leis devem ser mais flexíveis. Imaginar-se igual a qualquer outra pessoa, com os mesmos direitos e as mesmas obrigações, é o pesadelo do cidadão-de-bem.

Pergunta lá no sul dos EUA o que eles acham da expressão “cidadão-de-bem”.

Na entrevista dada depois do imbroglio na Barra, o casal bolsonarista confirmou o sentimento de ultraje. A incompreensão acerca da função coletiva do serviço público (“Eu posso questionar qualquer servidor público ou quem está nos atendendo. Ele estava trabalhando para a gente e temos o direito de questioná-lo”), a arrogância (“Não tem por que pedir desculpas”), a certeza de estar acima do alcance das normas (“Usar máscara para a gente não se tornou hábito, porque sempre trabalhamos de casa na pandemia. Se a gente fosse caixa de supermercado e trabalhasse com aquilo o dia inteiro talvez a gente tivesse hábito”) e, claro, a ofensa por terem sido confundidos com simples cidadãos (“Volto a dizer: o termo cidadão foi ofensivo”). Tá tudo lá, Cidadão-de-Bem 101.

Enquanto digito este texto, ainda não haviam identificado o servidor público federal de BH (mas é só questão de tempo). Quando o identificarem, também será questão de tempo para que ele ganhe espaço na mídia para se justificar. Será que o mineiro seguirá a linha argumentativa do casal carioca, ou vai jogar a cartinha dos problemas psicológicos?

Como pode progredir um país no qual o termo “cidadão” é uma ofensa? Vai dar trabalho. Exige educação (e não falo de “educação moral & cívica”, aquela empulhação legada pela ditadura). Exige que o estado aceite sua responsabilidade na construção da cidadania e trate a todos de forma igual. E exige do povo a compreensão de que sem respeito ao outro e à lei, não existe sociedade. Menos Grécia antiga, mais Rousseau.

Vai dar trabalho.

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Marco Antonio Barbosa
Telhado de Vidro

Dono do medium.com/telhado-de-vidro. Escrevo coisas que ninguém lê, desde 1996 (Jornal do Brasil, Extra, Rock Press, Cliquemusic, Gula, Scream & Yell, Veja Rio)