Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 1

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
5 min readJun 14, 2022

O ruído urbano do centro de uma cidade pequena, funcionava como acompanhamento quase musical ao motor da Brasilia verde que estacionava à porta de um hotel três estrelas.

Despertado pela parada, mal deu tempo de desgrudar a cara amassada pregada à janela, quando vi do outro lado da rua um sebo que chamou atenção pelas peças antigas expostas ao topo da prateleira maior e bem centralizada naquele recinto.

Havia ali, duas enceradeiras, três toca-discos e uma tevê de tubo, branca no centro e vermelha nas bordas.

Nem bem desci do carro, tomei rumo oposto ao dos parceiros que seguiam para fazer seu check-in e antes que atravessasse a rua Fabiano me interpela:

-Onde ‘cê vai doido?

Apontando pra loja, respondo em tom de mais alta obviedade:

-Sebo?!

Tomo como resposta no mais alto tom de desdém:

- Só deve ter porcaria. Vou fazer meu check-in e dormir.

Retrucando o desdém por minha escolha, respondo:

-Se é por falta de tchau…

Sigo adiante, atravesso a rua e me vejo cercado por discos de vinil, instrumentos musicais e todo manjado cenário e cheiro que tradicionalmente povoam no inconsciente coletivo sobre um ambiente como aquele.

Meu foco ali era um daqueles toca-discos, tão bem posicionado na tal prateleira central da loja.

Me aproximando do balcão vazio, paro o passo quando ouço dois homens ao fundo discutindo a negociação de um produto da loja.

Um baixo e franzino ( mais que eu inclusive) de bigode amarelado e voz aguda aveludada pelo tabaco, questiona ao que acredito ser o dono da loja:

- Não faz nem um mês, levei um lote de calculadora científica e mais aquelas duas hp matriciais. Agora você quer me negar desconto nessa enceradeira, que duvido que saia em menos de um ano!

O dono da loja, que parecia não querer esticar o assunto com o cliente chorão, se vira em minha direção perguntando o que desejava, enquanto lhe respondo que tava dando uma olhada e sou interrompido pelo chorão da enceradeira que se joga na frente do dono da loja, e que agora se via obrigado a parar e atende-lo.

Sigo para mais perto dos toca-discos, enquanto ao fundo a discussão pela negociação segue acirrada e quase chegando em frente a meu destino…

Acordo, corro pro banheiro num frio absurdo e me segurando para não molhar as calças.

Não tenho uma suite, mas a casa é pequena, o que não vejo justificativa para demorar tanto chegar à privada e finalmente me sentar para o alivio de não me molhar.

Passado o aperto, tive a sensação de não gostar de ter meu delírio onírico interrompido pela necessidade fisiológica. Embora não tivesse acontecendo nada espetacular nessa minha ingressão ao sono, o clima tava engraçado, e particularmente eu gosto bastante da fragrância latente nos sebos de antiguidades.

Sei lá se é por identificação ou por procurar em ambientes como esse, fulga de uma atualidade tão pratica e rasa.

Mas, enfim fecho a tampa da privada, dou descarga apago a luz abro e fecho a porta do banheiro e retorno ao quarto, ainda é muito de madrugada e o sono também vigora.

Quem sabe eu não consigo voltar para onde eu parei no sono?

Me deito, ajeito embrulhando-me bem para não passar sequer um fio de vento por entre o edredom, apago o abajur e:

-Ei!

O dono do sebo, do sono, do cliente chorão. Sim, tá aqui no meu quarto!

- Cara, que Cê tá fazendo aqui?

Ele:

- Onde é aqui?

Eu:

-É onde você jamais deveria estar, meu quarto, minha casa, meu mundo real e que não sei como, até porque não é problema meu.

Mas, você vai vazar daqui A-GO-RA!

- Como, amigo? Como? Eu só estava na minha loja, cuidando do meu cotidiano e… pumba!

Caí aqui, onde nem sei onde é!

Tentando equilibrar meu medo ( o “coração” não passava sinal de Wi-Fi) com a falta de paciência e sono; o cérebro trava.

Nem era hora dele ‘tá funcionando no modo racional, e a essas horas, como lidaria com isso?

Resolvi aceitar, já que o cara começava entrar no tom de voz de desespero- o que poderia acordar minhas cachorras que impressionantemente ainda não tinham acordado com a presença daquele estranho ali em nosso quarto- parti para tentar acalma-lo e fazer com que ele ficasse de boa para que ao menos me deixasse continuar em sono com o resto da madrugada.

E no mais, vai que eu só tivesse continuado dormindo e isso era parte do sonho?

O que era mais provável, Rachel e Jade não perdoam um pernilongo intruso no quarto, quem dirá um estranho brotado do nada lá dentro?

Assim sendo, já que era sonho e o cenário da vez era meu habitat natural…

- Tá bom, calma cara! Qual seu nome?

-Estones!

-Oi?

Respondi enquanto ele já ia se sentando na lateral da cama, repetindo após um suspiro precedente a choro tímido:

-Isso amigo, Estones!

Pronto… agora meu sono foi pra cucuia, não ia levantar porque a preguiça também vigorava, mas a reação a um nome como esse, convenhamos, é no mínimo de curiosidade.

Aí, levanto só o pescoço, e pergunto já querendo limitar um pouco o papo e segurando o riso:

-Estones de Stones? Rolling Stones?

Ao que Estones se entregando à sua emoção, desaba:

-Sim… porquê acha que eu tava em seu subconsciente como proprietário de um sebo de antiguidades?

Eu já não segurando riso com sono, ou riso de sono:

-Não, mas… aí já é demais.

Eu durmo, sonho que tô num sebo com dois maluco’ tretando por conta de uma enceradeira- a que me retiro com uma vontade súbita de ir ao banheiro, como que salvo por meu instinto de auto-preservação.

E quando volto do banheiro… um dos cara’ da treta tá dentro do MEU QUARTO real…ou sei lá também… Mas, aí o cara ainda se chama:

ES TO NES?

Não… não dá!

Será que se fechar os olhos no sonho e tentar dormir, eu acordo?

Pausa, som dos grilos, alguns passarinhos madrugadores ao fundo e Rachel roncando… passam-se de cinco segundos, interrompo:

-Tem um quarto aqui em frente assim que você abrir a porta. Tá vazio e tem um beliche, pega um cobertor no armário e fique a vontade, porque EU vou dormir inclusive no sonho pra vê se acordo dessa locura!

Me viro pro lado, e ouço o hóspede abrindo a porta e saindo.

Continuará…(?)

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Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!