Tem Um Cara Aqui Em Casa- Parte 2

Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa
5 min readJun 24, 2022

Seis e meia, o sol de outono vai nascer em dez minutos e o frio paralisante deixa até Rachel e Jade sem a menor vontade de sair das caminhas delas posicionadas aos pés da minha, mas muitíssimo bem acolchoadas com cobertores, edredons e afins.

Me levanto de supetão, assim na base da coragem mesmo.
Tiro o pijama, visto seis camadas de roupas, dobro as roupas de cama, ponho no armário à minha direita no quarto.
Pego o celular, baixo um episódio de podcast qualquer, ponho meus fones de ouvidos e, por cima uma touca peruana que depois cubro com o capuz do moletom, é… tá bem frio por aqui.
E enfim, parto para um dia comum depois de mais uma noite de sonhos bizarros.

Como de costume, atendendo aos mandos das duas cãs que me deixam morar com elas e o dia começa com uma caminhada aqui pela zona rural do condado de Sorocaba. O pedacinho que vivemos- carinhosamente apelidamos de Fenda do Biquíni- é parte de uma fazenda que hoje aporta milhares de pés de eucalipto onde há décadas atrás, centenas de milhares de bois, vacas e bezerros da ‘marca’ Jersey, saltitavam e ruminavam trazendo aos proprietários desse imóvel um amontoado de medalhas e troféus do país inteiro.

Quando me pronuncio no plural é que a menos de cinco metros da minha casa, na casa dele GRAÇAS A ENGENHARIA- mora meu parceiro de banda Alexsandro Silveira Sanchez (Kuky).
Que geralmente, nesse horário 'tá partindo para “noite” de sono dele, após ter feito vários nadas durante a noite toda.

No bonde da caminhada matinal, seguem comigo Rachel, Jade, Ringo e Tina… filhos caninos do carinha dos vários nadas noturno.

E lá vamos nós, a cachorrada sai no desespero para seus alívios fisiológicos e a cheirar os três quilômetros que faremos livres de guias e coleiras.

Ringo o único macho entre os caninos, representando um pouco dessa nossa espécie, toma rumo oposto de todo o restante afim de tirar satisfações com Aristeu- um pato que mora no lago e que por sua vez se vê na incumbência de tomar conta da segurança local, dando um presta atenção em Ringo em um sobrevoo acompanhado de uma bicada e um sonoro:
“GraaaaAAAAAAAAAAPPPP”

Ringo entende o recado, e após recolher seu ânus que ficou pelo caminho, agora seguimos nosso roteiro de praxe.

Tudo em paz e repetidamente igual.

Jade volta encharcada de orvalho e picão- o que me faz toda vez pensar num trocadilho infame com sua homônima digital-reality-influencer; Jade Picão.

Rachel limpa, cansada e com fome dispara sempre na frente nos últimos metros restantes de retorno para me pressionar por seu café da manhã que é posto imediatamente junto ao da irmã.

Superiores alimentadas, minha vez de me alimentar.

Preparo o café, apanho um pãozinho recém esquentado na chapa e me caminho para a varanda ainda ouvindo o restinho do episódio de podcast do dia que acaba junto com pão.
Tiro meus fones, ouço o ranger da porta do quarto de visitas se abrindo…

O sangue pára…
…a respiração também.

Se eu fosse um gato listrado, nessa hora minhas listras teriam saltado do corpo, assim como Jade salta sobre minhas pernas derrubando a xícara e o prato vazio que estavam na improvisada mesinha de centro apertada na varanda.

Colo minhas costas à cadeira de vime surrada, e me rendo as aparências com vontade de soltar um berro, mas falta ar. Enquanto Rachel e Jade fazem:
O estardalhaço…

-Bom dia!

Olho pra porta, ali do meu lado, sim é ele:

ES-TO-NES

Tomado da certeza de que não posso à essa altura do campeonato voltar aos tarjas pretas e terapia intensiva, engulo o que quer que seja o sentimento vigente, e cumprimento o hóspede vindo da terra de Morfeu.

-Bom dia…Cara… e aí mano?

-Tem mais café?

Pede o já de casa: Estones.

-Tem mais uma xícara passando lá na pia, sempre faço suficiente pra duas. Pega lá!

Enquanto o cara se vira para ir à cozinha, só tive forças para dar um peteleco em um pernilongo fora de época que pousou em meu braço esquerdo.

Era real mesmo?

Era eu comigo mesmo questionando qual nível de minha sanidade mental.

Mas…e as cachorras?

Sim elas latiram e saíram atrás dele, Rachel sempre na esperança de algo para comer e Jade… porque é a Jade e tá sempre em movimento.

Mas, é isso… aparentemente o cara tá aqui mesmo.

Será que eu chamo o Sanchez?
Pouts… até acordar… esquece!
E também, quando acordar, e se ele não vir o cara ou e se vir e virarem Best Friends?
Vai chamar pra mostrar sua coleção de Star Wars, contar que fez comercial de cerveja com a Sandy, mostrar seu passaporte espanhol…
Vish… e se o cara também acreditar no "comunismo" do FHC e começarem um diálogo sobre influência disso no plano real?

Ah não!

E se… carai…Será que eu fiz a passagem?

Não vejo seres humanos de fato há mais de três dias.
Bom, se for isso ao menos não fui pro infer…é… as coisas não andam beeeemmm aqueeeele paraíso por aqui também.

Cleck! Pausa em minhas conjecturas

-Tá frio né? Pergunta o hóspede

-Outono no meio do mato e em frente a um lago…

-Não, eu digo o café!

-Cara, eu moro sozinho e reduzi meu café há uns anos pra dar uma segurada na insônia. Mas, pelo visto… acho que faço mal em dormir. Duraram pouco minhas milhas com o pessoal da sua dimensão né?

-Como assim “milhas com o pessoal de minha dimensão”?
Do jeito que você coloca as coisas, pareço um invasor. Que apareci aqui com propósito e por vontade própria.

-‘Cê vai me desculpar fera, mas não é como eu coloco as coisas, é só como elas são. Se fosse ao contrário, eu persistisse em meu turismo por sua Prudentópolis…

-Ratanabá! Respeito com minha terra,
Por favor!

-Ahhhh tá explicado, achei o fio então. Tenho que parar com o consumo de notícias sobre notícias falsas antes de dormir.

-O que é falso? Minha terra? A sua é real então. Um monte de gente que encontrou a falsa expressão de vida perfeita em uma caixinha luminosa que não diz metade do que ela é de verdade.

-É… sou obrigado a concordar em partes contigo.
Mas, isso a gente pode discutir depois, fato é que precisamos descobrir uma maneira de te mandar de volta ou de me despertar, caso isso ainda seja um sonho.
Não aconteceu NADA, nada diferente esses dias em sua terra?
Sei lá, tempestade , eclipse, um Delorean voador com um moleque playba trajando um salva vidas dirigindo…

-Bom, precisarei ser sincero contigo. Resta saber se vai ao menos considerar o que vou te contar aqui.
Pelo pouco que pude observar sua casa, não há nada que indique seja alguém religioso.
O que de certa forma me deixa à vontade, mas também inibe, caso seja ateu praticante ou agnóstico, inclusive quando o assunto transcende o espiritual.

Minha cara não poderia esconder a expressão de:

“Ih, será que meu sonho foi invadido por um mórmon, testemunha de Jeová ou terra planista?”

Agora sim,

Continua…

Leia a parte 3:
https://medium.com/tem-um-cara-aqui-em-casa/tem-um-cara-aqui-em-casa-parte-2-7cf031235d07

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Xico Mendes
Tem um Cara Aqui em Casa

Musico prático desde o milênio passado e amante da arte de contar potoca!