A distribuição do espaço urbano e a bicicleta na disputa pela cidade

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15 min readMar 6, 2023

Por Luis Fernando Villaça Meyer, Diretor de Operações do Instituto Cordial[1]

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Foto: Tembici (2022)

A ideia de cidade e o espaço em disputa

Como é a cidade que queremos viver? E como queremos nos locomover nela? Estas são perguntas recorrentes nas vozes não apenas de urbanistas, engenheiros e tomadores de decisão que trabalham com políticas urbanas e de mobilidade, mas de qualquer cidadão. Por mais que o crescimento demográfico e a urbanização tenham sido muito acelerados no século XX no Brasil, dando a impressão de falta de planejamento e de um desenvolvimento caótico, é preciso reconhecer que alguns paradigmas não apenas foram incorporados e reforçados ao longo do tempo, como são permanentemente visíveis em nossas cidades, especialmente em uma do porte e da relevância de São Paulo.

Esse desenvolvimento das cidades brasileiras sempre buscou acomodar um elemento em específico: o automóvel, símbolo antigo de velocidade, status e tecnologia, e ícone de um futuro supostamente melhor, onde as pessoas poderiam acessar mais lugares, em menos tempo e com menos esforço. Mas o automóvel precisa de um recurso específico para prosperar: espaço. E foi isso que o desenvolvimento urbano lhe entregou, por décadas, de forma muito bem sucedida e, diga-se, planejada. O que não parece faltar em nossas cidades é asfalto para automóveis — mesmo que nem sempre nas melhores condições. Os automóveis e as indústrias que os fortalecem foram (e em grande medida ainda são) tão bem sucedidos na disputa pelo espaço urbano que os olhos do cidadão percebem como natural o predomínio do automóvel nestes espaços. A cultura incorporou e normalizou essa entrega como um dado de realidade, como se a cidade fosse naturalmente assim. Vemos o espaço dos carros, mas não o enxergamos.

Mas a reprodução dessa cidade tem limites. O trânsito, a poluição, a falta de vegetação urbana, as calçadas estreitas, o tempo e a distância de deslocamento entre a residência e trabalho e a falta de segurança no trânsito parecem indicar que há algo fora do lugar. Cada vez mais essa discussão é levantada na sociedade e gradualmente o paradigma urbano é colocado em cheque, a começar pelo questionamento do automóvel particular como ideal de “vida bem sucedida”, como era antigamente. As novas gerações não lhe dão tamanho crédito e importância, valorizando mais o acesso e a facilidade de deslocamento do que a propriedade de um automóvel.

A saturação da cidade do carro vem fortalecendo a disputa pelo espaço que antes lhe era cativo e são diversos os modos de transporte, sistemas de mobilidade e usos do espaço público que entram nesta disputa. O transporte público coletivo e suas infraestruturas dedicadas devem ser reforçadas e ampliadas. Ao mesmo tempo, os pedestres, ciclistas e a mobilidade ativa deve ser priorizada, atentando-se especialmente àqueles mais vulneráveis como crianças, idosos e pessoas com mobilidade reduzida. É preciso espaço para melhores e mais largas calçadas, infraestrutura e locais de permanência. Também, a frota de motocicletas vem crescendo vigorosamente ao longo da última década, trazendo um grande desafio de segurança viária, com novos conflitos entre veículos e agravamento de fatores de risco. Além de tantos outros novos e inovadores modos de transporte e mobilidade individuais, coletivos e compartilhados que a tecnologia vem viabilizando.

A bicicleta na disputa pelo espaço

A bicicleta é um dos modos de transporte mais promissores para contribuir com essa mudança de paradigma de cidade e de mobilidade por uma série de motivos. Ela já é amplamente conhecida pela sociedade; demanda proporcionalmente baixo investimento público em infraestrutura; é versátil nos percursos, especialmente de distâncias curtas a médias, incentivando o adensamento da cidade; é uma alternativa saudável de deslocamento, contribuindo para a saúde individual e coletiva; ela colabora para combater a emergência climática global, não gerando emissões de gases; o cidadão pode lhe ter acesso com baixo custo ou por meio de sistemas cada vez mais abrangentes de compartilhamento; dentre tantos benefícios observados em diversas cidades do mundo.

Mas, assim como todos os outros modos de transporte, a bicicleta também precisa de espaço. De acordo com o Código de Trânsito Brasileiro, “a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores”[2]. Ou seja, bicicletas e automóveis devem compartilhar a mesma via quando não houver vias exclusivas. Desta maneira, o ciclista coloca seu corpo no embate pelo espaço já que a disponibilidade de infraestrutura cicloviária no Brasil ainda está muito aquém de acomodá-lo com mais segurança.

De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde, mais de 1,35 milhão de pessoas perdem a vida no trânsito por ano em todo o globo, sendo a maior causa de morte de jovens entre 5 a 29 anos (OMS, 2018)[3]. No Brasil, foram quase 400 mil pessoas que perderam suas vidas no trânsito entre 2010 e 2019, segundo dados do Ministério da Saúde. Diferente do que tradicionalmente se entendia, hoje sabemos que a responsabilidade pela segurança viária não está somente nas mãos dos usuários, sejam eles ciclistas, motociclistas, motoristas ou pedestres. Trata-se de uma responsabilidade compartilhada, onde fiscalização, sinalização, engenharia e desenho viário, dentre outros fatores ligados à política pública e a ação do Estado, também têm papel fundamental[4].

Diversas pesquisas destacam a relação entre a característica da infraestrutura viária e a segurança de ciclistas[5]. Por mais que em alguns contextos — como em vias menores, de pouco tráfego e de baixas velocidades — o compartilhamento da via entre carros e bikes não implique em um aumento significativo de sinistros e mortes, vias maiores e cruzamentos sem circulação segregada de bicicletas podem agravar o risco. Não à toa, quanto maior a sensação de insegurança, menos ciclistas vemos nas ruas. Ao mesmo tempo, quanto mais infraestrutura disponível, mais seguras as pessoas se sentem para pedalar, podendo buscar na bicicleta sua alternativa de deslocamento cotidiano.

Foto: Tembici (2022)

Uma trilogia de estudos

A disputa pelo espaço e por um novo paradigma urbano está, portanto, não apenas relacionada ao direito à cidade, ao direito à mobilidade e à busca por cidades e ruas para pessoas, mas também na busca por uma vida urbana mais saudável, segura e sustentável. Mas, para que isso possa ser efetivamente levado a cabo em medidas práticas e melhores políticas urbanas, é essencial entender o espaço em disputa, analisando com dados e evidências as suposições e narrativas consolidadas no senso comum, permitindo entender o que hoje se vê, mas não se enxerga.

Afinal, há espaço urbano disponível para que todas as atividades realizadas nas cidades e todos os meios de transporte coexistam de forma harmônica? É preciso estudar e questionar como, para quê e para quem vamos, socialmente, (re)destinar estas superfícies. Foi a partir de questões como estas que o Instituto Cordial realizou entre 2021 e 2022 uma trilogia de estudos em parceria com o Movimento Inovação Digital — MID, buscando ampliar e aprofundar a compreensão sobre a distribuição de espaços públicos, a forma da infraestrutura viária e as dinâmicas de mobilidade na cidade de São Paulo, contribuindo para qualificar debates sobre políticas públicas, ações e intervenções voltadas à mobilidade e segurança viária.

Os objetos dos três estudos são complementares e articulados. Versam sobre todos os modos de transporte, analisando dados urbanos e de sinistros de trânsito da cidade de São Paulo em anos recentes. Metodologicamente, partem de revisão bibliográfica não exaustiva, concentrando-se especialmente no levantamento, processamento e pareamento de dados geográficos, desenvolvimento de indicadores, cartografias e análises estatísticas. Os relatórios podem ser baixados gratuitamente na página do Painel Brasileiro da Mobilidade no site do Instituto Cordial e no site da MID.

O estudo “Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo: uma análise da infraestrutura, viagens e segurança viária na cidade” abre a série, seguido de dois estudos sobre o potencial de ampliação do espaço público para as pessoas: um relativo à “análise do leito carroçável excedente na cidade de São Paulo” e outro com uma “análise do estacionamento em meio-fio na cidade de São Paulo”. Os três estudos abrem possibilidades para novos debates, análises e pesquisas.

Distribuição do espaço e deslocamentos em São Paulo

O estudo buscou analisar e comparar as distribuições de infraestrutura, viagens e segurança viária entre os 96 distritos da cidade de São Paulo, partindo de indicadores da ONU-Habitat. De acordo com a organização, a distribuição dos espaços e a conectividade de ruas são fatores que ajudam a explicar a prosperidade de uma cidade. Diz que sistemas de vias mais densos e conectados estão entre as características de cidades mais prósperas, comparando diversos exemplos do mundo pelo seu Índice de Conectividade de Ruas.

Analisando, de forma inédita, os distritos da cidade de São Paulo com este índice, o estudo demonstrou que, mesmo que as ruas dos distritos centrais sejam habitualmente mais largas, o indicador Terra Alocada para Ruas (LAS[6]), que calcula a proporção da superfície pública da cidade ocupada pelas ruas, possui patamares médios a altos também em distritos de fora do centro, onde as ruas são mais estreitas. O indicador pode levar a supor que há espaço disponível para o adequado compartilhamento da via por ciclistas com outros veículos ou, ainda, para acomodar intervenções como infraestrutura dedicada e redesenho para segurança viária, mas este indicador em si não diz tudo sobre as oportunidades de intervenção nestes locais.

Figura 1. Exemplo de rua típica com pista e calçada estreita em distrito de fora do centro da cidade. Fonte: Google Street View.

O estudo também demonstrou que o indicador “Densidade de Interseções” (SID[7]) é mais alto em distritos periféricos, especialmente na Zona Leste da cidade, características que podem ser explicadas por seus históricos de urbanização e perfis de loteamento, resultando em grande densidade de vias e cruzamentos, mas com predomínio de ruas estreitas que desembocam em grandes vias arteriais com infraestrutura de transporte coletivo, como a Radial Leste.

Entretanto, enquanto pode parecer que não falta espaço e que há boa conectividade de acordo com os indicadores, em boa parte dos distritos isso não necessariamente se reverte em uma cidade com melhores condições e com distribuições de espaço mais adequadas e justas. Em outras palavras, não é apenas o espaço em si e a quantidade de cruzamentos que importam, mas outras características das ruas, como sua largura, seus usos e a alocação deste espaço, também são relevantes.

Figura 2. Densidade de interseções (SID) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 3. Terra alocada para ruas (LAS) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.
Figura 4. Largura mediana da calçada por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 5. Largura mediana do leito carroçável (pista) por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.

Outra questão urbana que sempre vai estar relacionada com a distribuição dos espaços da cidade é a segurança viária. Enquanto a maior parte dos empregos e deslocamentos se concentram nos distritos centrais, onde há ruas mais largas, seria razoável supor que neles também se concentram mais sinistros de trânsito. Ainda mais quando se observa que a distribuição de sinistros não é homogênea na cidade: dos mais de 124 mil sinistros ocorridos entre 2013 e 2019, há distritos que agregam mais de 3 mil sinistros enquanto outros não passam de 40.

Entretanto, a partir de simulações realizadas com os dados da Pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo para estimar a quantidade de viagens que passam por cada distrito, o estudo apresenta que há menor concentração de sinistros nos distritos do centro expandido do que fora dele. Enquanto nos distritos centrais a concentração varia de 6 a 20 sinistros para cada 100 mil viagens, no restante da cidade o indicador varia de 9 a 38. Essa relação é especialmente notável entre automóveis e motocicletas, mas não tão clara em sinistros envolvendo ciclistas, por mais que os distritos com resultados mais críticos também estejam fora do centro expandido.

Figura 6. Motocicletas envolvidas em sinistros por milhão de viagens, por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021. / Figura 7. Bicicletas envolvidas em sinistros por milhão de viagens, por distrito. Fonte: Instituto Cordial, 2021.

Ruas e calçadas estreitas, grande densidade de vias e de cruzamentos e concentrações consideráveis de sinistros para cada 100 mil viagens deixam claro como os desafios de mobilidade urbana e segurança viária são distintos entre os distritos de São Paulo. As soluções do passado — mesmo aquelas bem sucedidas em áreas centrais — não vão resolver os novos desafios que se apresentam em outras regiões. A disputa da bicicleta e de outros modos de transporte pelo espaço urbano, na luta por um novo paradigma de cidade, carrega especificidades de lugar para lugar.

Em boa parte da cidade com ruas estreitas, há um grande desafio em implantar infraestruturas como ciclovias, ciclofaixas, paraciclos e mobiliário urbano de suporte a ciclistas sem que se altere o desenho viário de forma mais expressiva. Em parte da cidade com estas características, é necessário encontrar soluções inovadoras e repensar o espaço urbano de outra forma. Para se caminhar nesse sentido de forma embasada, é preciso aprofundar a análise de potencial de ampliação do espaço público para pessoas através de indicadores que considerem a largura da via e não apenas índices e indicadores espaciais.

Potencial de ampliação do espaço público para as pessoas

Análise do leito carroçável excedente na cidade de São Paulo

O segundo estudo da trilogia buscou aproximar as análises das características específicas das ruas e tinha como objetivo estimar o potencial de ampliação do espaço público urbano por meio da identificação do leito carroçável[8] excedente. Foram calculadas as variáveis de largura do leito carroçável, largura da calçada e número de faixas de tráfego em cada um dos meios-de-quadra[9] da cidade. Também foram considerados os parâmetros-chave de largura mínima de faixa de ônibus (3,2 metros), faixa de tráfego geral (3,0 metros), infraestrutura cicloviária (2,0 metros) e largura mínima calçada aceitável (2,0 metros).

Partindo destas variáveis, dos parâmetros estabelecidos e dos resultados do estudo anterior, buscou-se estimar quanto espaço estaria disponível para outros usos na via caso as faixas de rolamento fossem adequadas aos parâmetros mínimos definidos na legislação e em manuais, resultando em um espaço “excedente” de leito carroçável. As imagens abaixo ilustram o raciocínio:

Figura 8. Corte teórico de uma via com a indicação de largura de cada faixa de rolamento. Elaboração: Instituto Cordial utilizando o StreetMix.
Figura 9. Corte teórico de uma via com a indicação de largura de cada faixa de rolamento caso fossem ajustadas aos parâmetros mínimos e espaço excedente em hachurado. Elaboração: Instituto Cordial utilizando o StreetMix.

Os resultados iniciais mostraram que ao menos ⅓ da extensão dos meios-de-quadra no município tem leito carroçável excedente. A prevalência da distribuição dos meios de quadra nesta situação é heterogênea na cidade, sendo que na região central 44% dos meios de quadra têm esta característica, enquanto na região norte são apenas 27% dos casos. Importante ressaltar que não foram consideradas as demandas de carregamento nesta estimativa, uma vez que calculou-se apenas a readequação de larguras das faixas de rolamento, mantendo inalterada a quantidade de faixas destinada aos veículos.

Em área total, o espaço excedente nas vias da cidade de São Paulo soma ao menos 2.3 milhões de metros quadrados (227 hectares, ou seja, 20 vezes a área do parque Jardim da Luz, na região central) que poderiam ser destinados a outros usos. Em diversas regiões, este espaço poderia ser utilizado para receber novas infraestruturas cicloviárias, entre ciclovias e ciclofaixas, dependendo do caso, incentivando o uso da bicicleta de forma segura. Em casos de excedentes viários generosos, também podem ser realizados alargamentos do passeio público para acolher de forma adequada equipamentos e serviços ao ciclista, como paraciclos, bicicletários e pontos de apoio e descanso.

Os resultados demonstram que há espaço disponível em diversas partes da cidade, mesmo sem reduzir o número de faixas de rolamento destinadas aos veículos, ou seja, sem mudar o paradigma de mobilidade vigente. Mesmo assim, os impactos da adequação de uso destes espaços podem ser muito significativos e transformadores para uma mobilidade mais sustentável, incentivando o uso da bicicleta. Os resultados também dão bons indícios de que há ainda mais espaço excedente caso faixas de rolamento tenham efetivamente seu uso alterado e destinado a outras finalidades relacionadas com a mobilidade — como a implantação de paraciclos ou criação de áreas verdes.

Análise do estacionamento em meio-fio na cidade de São Paulo

A partir dos resultados obtidos no estudo anterior, e desdobrando sua análise, o terceiro estudo buscou estimar o potencial de ampliação do espaço público urbano por meio da identificação do estacionamento em via pública considerado excedente. Quanto à oferta de espaço, estimou-se a variável de vagas existentes de estacionamento no meio-fio por meio-de-quadra e utilizou-se o parâmetro chave de dimensão de vaga de estacionamento de 2,5m por 6m, numa medida conservadora de acordo com a literatura[10]. Para estimar a demanda de vagas, calculou-se a quantidade de viagens de automóvel com estacionamento em meio-fio e sua duração a partir de dados da pesquisa Origem e Destino do Metrô de São Paulo de 2017.

Os resultados indicam que há maior disponibilidade de vagas nos distritos de fora da área central, com uma média de 79 vagas por quilômetro de via, chegando a mais de 100 em distritos como Butantã (Zona Oeste) e Vila Matilde (Zona Leste) e a menos de 60 em distritos como a República (Centro). É interessante relembrar que a área central de São Paulo possui características muito distintas das áreas periféricas, com maior disponibilidade de empregos e maior volume de tráfego, mas também maior oferta de transporte coletivo, entre ônibus, trens e metrôs, o que ameniza a demanda por estacionamento no meio-fio.

O modelo estatístico de comparação da estimativa de oferta de vagas com a demanda de estacionamento em meio-fio indicou um total de mais de 84 mil vagas excedentes na cidade, somando aproximadamente 1,3 milhão de metros quadrados de espaço (comparável ao tamanho do Parque Ibirapuera) que pode ser destinado a outras finalidades. Há distritos com até 45% de vagas excedentes, como é o caso do Campo Limpo e do Jardim São Luís, ambos na Zona Sul.

Figura 10. Gráfico de distribuição de área (em hectares) e extensão (em quilômetros) de vagas excedentes por região municipal. Fonte: Instituto Cordial, 2022.

Novamente, o estudo partiu de uma abordagem conservadora e não considerou substituições modais, apenas uma distribuição mais eficiente do espaço público de acordo com a demanda atual de vagas em meio-fio. Ao mesmo tempo, também não está sendo problematizado o estacionamento gratuito de veículos privados no espaço público sem contrapartida. Os resultados das estimativas podem ser ainda muito maiores de acordo com a abordagem assumida na análise.

Na perspectiva das cidades para pessoas — priorizando espaços para mobilidade ativa e encontro social, fomentando outras formas de deslocamento, substituições modais e outras localidades para estacionamento de veículos privados –, pode-se supor que a quantidade de vagas excedentes seria muito maior. Este espaço tem grande valor social, podendo ser melhor utilizado e distribuído. Há um grande debate sobre a substituição de vagas para automóveis por outros usos, como parklets, alargamentos locais de calçada para incorporar mobiliário, vegetação urbana e estações de bicicletas compartilhadas, dentre outras.

Uma outra cidade é possível

Os dois estudos encontraram ao menos 3,6 milhões de metros quadrados de espaço de leito carroçável que podem ser melhor aproveitados na cidade de São Paulo e destinados a outros usos, o equivalente a 2,5 vezes o Parque do Ibirapuera. O espaço disponível será ainda maior se buscarmos cada vez mais mudar o paradigma de desenvolvimento urbano e de distribuição do espaço público, priorizando as pessoas. Para além disso, é preciso saber e considerar que os diferentes históricos de urbanização dos distritos da cidade colocam desafios específicos em cada um deles nessa mudança de paradigma.

As cidades se desenvolveram carregando prioridades invertidas e vícios de origem, mas é necessário e justo redistribuir o espaço urbano. É preciso seguir alterando convicções e supostas verdades estabelecidas, compreendendo melhor a realidade para melhor intervir. A Prefeitura de São Paulo vem gradualmente realizando intervenções desta natureza já há vários anos, por exemplo, ampliando a oferta de infraestrutura cicloviária, e a rede de bicicletas compartilhadas, implementando seu plano de segurança viária com base na abordagem dos Sistemas Seguros, reduzindo as velocidades máximas permitidas nas vias arteriais, dentre outras medidas. Mas a cidade ainda precisa de outras ações.

É preciso inovar e agir de forma coordenada, compartilhando responsabilidades com base em políticas públicas bem embasadas em dados e evidências, conhecendo e considerando as realidades e desafios locais. Não é possível pensar a cidade do futuro sem conhecer profundamente a cidade do presente. Novos elementos de infraestrutura, inovações em segurança viária e serviços urbanos devem levar em conta estes desafios. Para o sucesso da bicicleta e de outros modos ativos na disputa pelo espaço urbano, é preciso que se pense a cidade de uma nova forma, com novas referências e novos paradigmas, para que nossas cidades se desenvolvam para serem mais justas, seguras e sustentáveis.

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[1] O Instituto Cordial é um think and do tank independente que trabalha com ciência de dados, inteligência territorial e articulação intersetorial para fortalecer redes e basear tomadas de decisão públicas e privadas em dados e evidências. http://institutocordial.com.br/ & @institutocordial & @painelmobilidade.

[2] CTB, Art. 58. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9503compilado.htm

[3] Disponível em: https://www.who.int/publications/i/item/9789241565684

[4] Ver mais sobre a abordagem dos Sistemas Seguros de Mobilidade e sobre a Visão Zero em “Sustentável e Seguro: Visão e Diretrizes para Zerar as Mortes no Trânsito”, elaborado pelo WRI Ross Center. Disponível em: https://www.wribrasil.org.br/sites/default/files/Sustentavel_Seguro.pdf

[5] REYNOLDS, C. C. et al. The impact of transportation infrastructure on bicycling injuries and crashes: a review of the literature. Environmental Health, v. 8, n. 1, p. 47, dez. 2009.

[6] “Land Allocated to Street” (LAS).

[7] “Street Intersection Density” (SID). Interseções por km2.

[8] Entende-se “leito carroçável” como o espaço da pista, conceitualizada no CTB como a “parte da via normalmente utilizada para a circulação de veículos, identificada por elementos separadores ou por diferença de nível em relação às calçadas, ilhas ou aos canteiros centrais” (CTB, Anexo I).

[9] Segundo metodologia desenvolvida pelo Instituto Cordial, o meio-de-quadra é o espaço do sistema viário em que não está localizada na área de influência de um cruzamento. Ou seja, corresponde às ruas e avenidas, porém, sem considerar as áreas de cruzamento entre 2 ou mais vias.

[10] Na ausência de uma base de dados municipal sobre disponibilidade de vagas, foram realizadas estimativas de acordo com características de cada meio-de-quadra, como largura, hierarquia viária, presença de infraestrutura de transporte coletivo, etc.

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