Enxertos
[desculpa, esse é um resumo público do que eu quero dizer para a analista, mas que ficou tão bonito que decidi enfeitar]
Já estou repetitiva, mas preciso retomar a essa questão até que em algum ponto (espero) ela se esgote em mim. Em abril deste ano escrevi um texto chamado “A mulher desejante”. Naquele momento, eu dizia:
Por que insistem em dizer que o amor só chega se você não falar nele? Isso é mesmo verdade ou nos enfiaram goela abaixo que a gente não pode falar disso? Que não se pode dizer que se quer sim, mais do que o sexo casual, mais do que a foda com hora marcada (que também não estamos aqui para demonizar, reclamar, inclusive, queremos marcar hora sim), que sim, sente falta de um programa de casal (saudades, inclusive) — isso é coisa de gente carente, de gente que tem cheiro de desespero, como eu.
Porque eu não estou falando só de sexo, estou falando é do desejo de amar e ser amada, do clássico psicanalítico, da não repressão desses desejos pois acabamos nos afastando de nós mesmas, dando ao outro o lugar de ativos em nossas próprias vidas — que, afinal, não é contra isso que a gente quer falar?
Não somos difíceis de amar, nossa liberdade e independência não significam que não precisamos ou simplesmente queremos ser amadas e desejadas. Nossos desejos não são atestados de fracasso, mas sim lembretes de vida que ainda temos, não fazem mal, não são errados, não nos tornam menos donas de nossas próprias vidas. Essa ferida que deixa o sangue jorrar não vai se fechar sozinha se não cuidarmos. E sim, não tem importância nenhuma em ficar um tempo sozinha e aprender a se amar (tô aqui desde 2016 contando meu processo), mas não tem problema nenhum também querer.
E que a gente não morra de desejo sufocado.
Eu admiti o desejo. E nada mudou, apenas admiti a existência dele. Mas isso não foi suficiente. Depois de alguns meses essa “falta” começou a me incomodar muito mais do que eu queria, muito mais do que eu podia controlar. E sempre existem os lembretes para fazer você reviver cada pedacinho de dor. Então eu, a mesma pessoa que não queria morrer de desejo sufocado, tomei uma decisão brusca de acolher a solidão e aprender, de uma vez por todas e sem muitas lamentações, a conviver com ela. Eu fiz (e estou fazendo) isso avidamente.
Outro dia ouvi uma música de uma cantora da nova diáspora baiana chamada Josyara, eu ouvia enquanto escrevia, com aquela atenção flutuante… Então, veio o refrão:
Há solidão pra todo lado
Em cada gesto civilizado
É se perder do outro quando esse alguém de você foge
É achar a si próprio
Essa é a solidão que eu gosto, a que eu busco. É a que eu quero experimentar. Uma solidão civilizada (*o título da música*). Uma solidão escolhida, cuidada, regada, com propósito e também preparatória, para o caso de ela deixar de ser uma experiência necessária e temporária para ser um fato dado nas circunstâncias da vida (o que é perfeitamente possível).
Por um tempo, funcionou e me senti bem assim. Foquei na literatura sobre o assunto, tomei decisões que julgo terem sido acertadas. Mas, em algum momento, na ânsia de acolher a solidão, sufoquei o meu desejo. Li por esses dias mais um capítulo da bell hooks (o feminismo é para todo mundo), que dizia:
“[…] Na ocasião, ninguém falava da realidade de que mulheres arriscariam endurecer o coração e acabar sendo tão fechadas emocionalmente quanto os homens patriarcais ou as mulheres machonas [ não sei o que ela quis dizer com esse termo] que rejeitávamos em nome da rebelião feminista. E, na maior parte dos casos, foi exatamente isso o que aconteceu. Em vez de repensar o amor e insistir em sua importância e valor, o discurso feminista sobre o amor simplesmente cessou.” (p. 148)
E depois de algum tempo, eu tive mais uma das minhas crises: simplesmente perdi o ânimo pra fazer várias das coisas que eu gosto, entrei em um sensação de desespero, criei raiva das pessoas, engordei, chorava todo dia e várias vezes ao dia. Me tranquei em casa.
Estou na bolha de novo. E nada vai me salvar.
Não há um verso perfeito que nasça daqui.
Sou uma mulher oca. Choro porque os amigos
estão tristes. Não entendo. Nem há remédio que
me fará entender.
[…]
Reconheço os que me amam e os que me odeiam:
tudo o mesmíssimo nada. Sensível, mas distante.
Não quero mais ficar de pé. Não vou correr,
não vou às compras. Não acredito em mim.
Não quero beijos. Na bolha, é assim:
o que vier de bom é sono, mesmo que
com esses sonhos de passado, quando a exclusão
bate na minha porta outra vez
e outra vez e outra vez. *
Na prática, me recolhi, parei de sair; como de costume, me ausentei de redes sociais da internet e de algumas outras da vida; busquei me fortalecer tentando cultivar uma espiritualidade, rotina, filmes, músicas, leituras. Na minha cabeça uma única verdade aparecia: “eu preciso me conformar com a solidão que vem me consumindo”. E continuo nesse processo, que tem sido muito doloroso e agora descobri que anda de mãos dadas com o desejo que já foi assumido. Eu me tranquei em casa, num silêncio colossal comigo mesma.
Sou tão sozinha. Nestas tardes. Tão sozinha.
Chorando.
Não tem como mostrar com palavras a dor de minhas
lágrimas sozinhas,
silenciosas, mesmo que, de vez em quando, soluçantes.
Ninguém me escuta.
Ninguém me vê.
Tenho uma grande sensação
de que há um grito em minha garganta.
[…]
E sem palavras para descrever minha dor,
desisto de tentar. *
Tentei silenciar minha cabeça. Foi quando comecei a escrever a série “terapia verborrágica” e, conversando comigo mesma, me dei conta que estou no mesmo lugar há muito tempo: o da falta. Há quase um mês, em um dos texto de lá, desabafei:
Porém cansa, sabe? E na estrofe seguinte a canção diz: No, I don’t wanna waste a lifetime/Keeping it all inside/It will come when I least expect it/So I’m giving up. Eu também não quero perder uma vida mantendo tudo isso aqui dentro, essa vontade, esse desejo e a vida se esvaindo porque eu quero tanto isso e não tenho… Então já que vem quando a gente menos espera, I’m giving up on love. Eu estou desistindo do amor. E soa como um mantra: eu estou desistindo, eu estou desistindo, eu estou desistindo do amor… E é só a partir disso que na próxima estrofe é possível cantar: I’m staring out across the sea/Expanding out before me. É só a partir da desistência que é possível olhar para o outro lado do mar e vê-lo expandido-se na sua frente, e dedicar-se a si mesma, sabe? Pra em algum momento, se o amor voltar a te chamar, você dar tudo de si. Como você sabe que dará. Porque eu sempre dou. Então será chegada de destrancar esse coração.
Depois de me privar de muita coisa, senti alguma melhora e finalmente decidi buscar ajuda profissional (estamos aqui tentando manter as contas e a sanidade mental em dias).
Escrevi um outro texto (o amor do outro é o que eu quero), onde começo comentando o quanto estudos já comprovam que o amor, o afeto, fazem bem ao desenvolvimento psicológico de crianças, que em breve serão adultas e precisam já ter de antemão essa reserva extra de amor pra poderem lidar com menos problemas com todas as rejeições e frustrações que certamente terão. E finalizo com uma questão:
[…] E, agora, depois de grande, adulta, toda fudida, cheia de trauma, contas e quilogramas para perder, como tentar suprir essa falta de amor com o bendito amor-próprio? Como continuar vivendo com a possibilidade da ausência do amor? Como continuar estudando, lendo, me esforçando pra compreender a vida solitária como uma autêntica e possível forma de viver bem se… tudo o que a gente quer, como diria Freud, é ser amado pelo Outro? Como?
Percebi que me encontro em uma situação sem resposta: como conviver bem com a solidão juntamente com o desejo presente pelo amor do outro? São pensamentos, necessidades e sentimentos completamente distintos. Que me tiram dar dor e me levam de volta a ela rapidamente. Sem parar. O tempo todo. Então, não pensem que isso me ajudou, meu humor tem sofrido alterações drásticas e meus comportamentos têm se tornado mais compulsivos que nunca, a ansiedade tem me trazido dores antes desconhecidas e a melancolia agora é uma visita constante, que sempre chega de surpresa e é inconveniente.
Ainda não sinto muita vontade de sair de casa e estou completamente amedrontada com a possibilidade de qualquer amor pra mim, mesmo que eu nem vislumbre isso acontecendo agora. Eu, que tanto quero, não sei como receber, porque já não sei lidar com a perda e já acho que perdi antes mesmo de existir.
Não sei se de fato é isso que realmente mexe tanto comigo, mas é o que eu estou conseguindo enxergar agora. E isso tudo eu vou precisar resumir na sessão de análise mais tarde… Minha cabeça está por um triz.
Mas de noite, na hora
de dormir, e de manhã,
assim que acorda, ela
reza — às vezes ainda
chora — implorando
ao caos que dela
desista.
Boa sorte!, pequena
garotinha, a sua mãe
é você mesma. *
Os trechos de poesia em negrito são todos de Fernanda Young, do livro “Dores do amor romântico”.