Breve história econômica do Litoral Norte — SP.

Eduardo Ueda
TERRAMARES
Published in
11 min readMay 3, 2020

Antes da vinda de Martim Afonso de Souza ao Brasil para fundar a capitania de São Vicente, haviam apenas feitorias espalhadas pela costa brasileira para extração de madeira e outros recursos naturais com algumas fortificações de defesa contra os povos nativos. Em 1530 Martim Afonso de Souza funda a vila de São Vicente, no atual litoral sul do atual estado de São Paulo.

O litoral norte de São Paulo não foi integrado imediatamente ao projeto colonial português. Esta região era densamento habitada por povos originários, principalmente Tupinambás, que ofereceram forte resistência ao domínio português. Haviam apenas algumas trocas de mercadorias entre os navegantes portugueses e os Tupinambás. Dessa forma, para a implantação do projeto colonial português, era necessário o a expulsão ou extermínio da população nativa.

Foram anos de guerras travadas entre populações autóctones e estrangeiras que retardaram a colonização do atual litoral norte de São Paulo, cuja expressão mais simbólica foi aliança entre tupinambás e franceses contra os tupiniquins e portugueses, a chamada Confederação dos Tamoios.

Veja também: Colonização e Resistência Indígena no litoral paulista.

Após mais de 70 anos de resistência dos Tupinambás, o projeto de exploração colonial se impõe e o litoral norte é integrado à dinâmica de exportação de produtos para Portugal.

Assim, inicia-se o processo de concessão de sesmarias no litoral norte de São Paulo, sendo a primeira delas a da Ilha de São Sebastião (atual Ilhabela) concedida em 1603 para Diogo de Unhate, e instaura-se o ciclo da cana de açúcar. Os primeiros sesmeiros de São Sebastião (no continente) foram Diogo Dias, João de Abreu, Gonçalo Pedroso e Francisco de Escobar Ortiz, em 1636 foi fundada a vila de São Sebastião.

Ciclo do açúcar (1603–1787).

Um engenho de açúcar em Pernambuco Colonial do pintor Frans Post. Séc. XVII.

Neste período, além da força de trabalho de indígenas, implanta-se o regime de trabalho com africanos escravizados nas fazendas e engenhos de açúcar e aguardente do litoral norte. Alguns portugueses, sem origem fidalga ou nobre, também tiveram sua força de trabalho empregada no projeto colonial, com a diferença que estes o faziam com liberdade.

Com menor importância econômica, posseiros que ocupavam pequenas áreas de planícies e de encostas próximas as fazendas ou até mesmo em espaços não utilizados das fazendas, produziam gêneros alimentícios, principalmente a banana e a mandioca, além de fumo e anil, que abasteciam as fazendas de cana de açúcar.

A produção das fazendas visava a exportação para a metrópole, enquanto a pequena produção realizada próxima ou mesmo dentro das fazendas pelos trabalhadores escravizados, empregados ou posseiros visava suprir a demanda interna por alimentos.

Essa estrutura da produção alimentícia brasileira, que tem de um lado grandes fazendas monocultoras e de outro pequenos agricultores de alimentos, irá se manter mais ou menos estável até os dias de hoje. E o que essa estrutura revela é o que o economista Caio Prado Jr. chamou de o sentido da colonização, de acordo com ele:

“[…] a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu” — Caio Prado Jr. “Formação do Brasil Contemporâneo”, página 25, (1965).

Ou seja, o projeto de exploração econômica do litoral norte em específico, e do Brasil em geral, tem como fundamento suprir a demanda da metrópole por produtos coloniais, e atender as demandas da economia local apenas na medida do necessário para a continuidade da exploração colonial.

A produção do litoral norte era carregada até os portos de Ubatuba e São Sebastião onde eram embarcadas e transportadas até o porto do Rio de Janeiro ao invés do porto de Santos, de onde seguiriam para a Europa, pois no porto do Rio de Janeiro, os fazendeiros conseguiam preços mais vantajosos. Mas no fim do século XVIII, em 1787, o então presidente da Capitania de São Paulo Bernardo José Maria de Lorena e Silveira fez um decreto obrigando que toda a produção fosse escoada pelo porto de Santos, onde os preços eram significativamente inferiores aos do Rio de Janeiro.

Com isso houve um colapso na produção canavieira do litoral norte. São Sebastião e Ubatuba, que no seu ápice tinham 25 e 14 engenhos de açúcar respectivamente, no final do século XVIII tinham apenas seis em funcionamento em São Sebastião e cinco em Ubatuba. Há relatos de fazendeiros que destruíram suas plantações para não vendê-las no porto de Santos.

Esse decreto, que ficou conhecido com Édito de Lorena, só teve fim com a elevação do Brasil à condição de Reino Unido à Portugal e Algarves em 1808 e a abertura dos portos brasileiros às “nações amigas”.

O Ciclo do Ouro (1697–1760).

Do fim do século XVII até a primeira metade do século XVIII, a descoberta e exploração do ouro e da prata de Minas Gerais desempenhou um papel relevante na economia do litoral norte.

A produção de culturas alimentícias do litoral norte, principalmente a aguardente, a banana e a farinha de mandioca, foi elevada para suprir a demanda dos trabalhadores de Minas Gerais.

Parte dos minérios eram exportados para a Europa pelo porto de Ubatuba. Além disso, de acordo com a historiadora Glória Kok, as rotas da Serra do Mar, no litoral de São Paulo, serviam de rotas de contrabando para que buscava burlar a fiscalização.

Ciclo do Café (1830–1870).

Café de Candido Portinari. 1935.

A partir da abertura dos portos ao Reino Unido, o pacto colonial, que garantia a exclusividade do comércio com Portugal, acabou. Mas o sentido da colonização, apontado por Caio Prado, continuou a dar a direção da economia nacional, agora voltada à suprir a demanda do Reino Unido.

O ciclo do café no litoral norte teve por volta de 40 anos de intensa produtividade. Ubatuba foi um dos primeiros produtores de café de São Paulo, trazendo a cultura cafeeira do Rio de Janeiro. Com a expansão do cultivo para o Vale do Paraíba, o litoral se tornou também um importante polo exportador, já que a produção do vale era trazida até os portos de Ubatuba e São Sebastião.

Entre 1830 e 1860, a produção cafeeira do litoral norte paulista superava a da região de Lorena no Vale do Paraíba, configurando o litoral como importante polo produtor de café. Neste período Ubatuba chegou a ter a maior renda municipal do Estado. A construção da igreja matriz de Ubatuba, além de casarões para abrigar a elite local como o conhecido Sobradão do Porto, que atualmente abriga a Fundação de Arte e Cultura de Ubatuba, demarcam a opulência do período.

Em 1836, com aproximadamente 370 fazendas de café, o litoral norte era responsável pela produção de 84.134 arrobas de café, enquanto a região de Lorena (Silveiras, Piquete, Cruzeiro, Guaratinguetá, e outras localidades) produzia um total de 33.649 arrobas. Em 1886 temos acentuada queda na produção do litoral com 9.600 arrobas e Lorena com 50.000.

As plantações de cana de açúcar e os produtos derivados tiveram um ligeiro crescimento neste período com cerca 20 destilarias de aguardente e 17 engenhos de açúcar em todo o litoral norte.

A partir de 1860, inicia-se a decadência da produção cafeeira no litoral norte. Fatores como o esgotamento do solo do litoral, o crescimento da produção no Vale do Paraíba e oeste paulista, além da expansão da estrada de ferro Central do Brasil com o trecho Santos-Jundiaí, que passou a conectar o interior paulista diretamente ao porto de Santos, explicam essa acentuada decadência.

A queda na produção de café a partir de 1860 fez com que os fazendeiros abandonassem suas propriedades, buscando novos investimentos.

As populações que trabalhavam nas fazendas, em sua maioria africanos escravizados, e os pequenos posseiros retraíram as atividades econômicas ao que comumente é chamado de subsistência, ou seja, tendo como objetivo a reprodução do seu modo de vida e não a geração de excedente.

Já no fim do ciclo do café, o proprietário da Fazenda Getuba, Manoel José Vieira de Macedo prevendo o fim da escravidão, tentou substituir a força de trabalho escravizada pela força de trabalho livre de imigrantes. Em 1857 foram trazidas quatro famílias de suíços sob o contrato de parceria para trabalhar na lavoura de café da Fazenda Getuba. Os migrantes se revoltaram com as condições de trabalho, com a remuneração e com o clima, sendo demitidos e substituídos por trabalhadores portugueses. Mesmo assim, diante das dificuldades de manter a competitividade com as fazendas do interior paulista, a fazenda é vendida.

Rota do tráfico de povos escravizados (1850–1888).

A partir de 1850, com a promulgação da lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico intercontinental de escravos, isto é, que proibia que africanos fossem trazidos diretamente do continente africano, sob pena do navio ser afundado pela marinha britânica, mas não que impedia o tráfico interno de escravos, o litoral norte se tornou um importante ponto do contrabando ilegal de escravos.

Em todo litoral várias fazendas foram utilizadas de fachada para manter ativo o tráfico ilegal de africanos. Em Ilhabela os povos africanos eram receptados na baía de Castelhanos, em Ubatuba a receptação ocorria nas praias da Fazenda da Lagoa e em Caraguatatuba ocorria nas praias da Fazenda Mococa, os escravos eram então levados até Natividade da Serra de onde eram distribuídos nas fazendas de café do Vale do Paraíba.

Essas rotas do tráfico ilegal de escravos se mantém até 1888, quando a escravidão é legalmente abolida.

Algumas fazendas de Ubatuba, como a Fazenda da Lagoa e a Fazenda de Cambory, foram abandonadas com a decadência da produção de café no litoral, abrindo a possibilidade de que os trabalhadores escravizados alcançassem a liberdade reorganizando a produção da fazenda de acordo com as suas necessidades, essa foi a origem dos Quilombos da Caçandoca e do Cambory. Nesses casos, a abolição da escravidão deu existência jurídica à uma liberdade conquistada de fato pelo trabalho e capacidade de organização dessas populações.

Atualmente, Ubatuba tem quatro remanescentes de quilombo. Além dos dois já mencionados, existem o Quilombo Cazanga (sertão de Itamanbuca) e o Quilombo da Fazenda Picinguaba.

A era caiçara (1870–1970).

Barcos na praia, de Oda Gomes.

A retração econômica do litoral norte após o declínio da produção cafeeira obrigou as populações que permaneceram no território, entre eles: indígenas, quilombolas e caiçaras, a adaptarem suas atividades econômicas aquela nova realidade. É neste período que essas populações desenvolvem um modo de vida baseado na pequena produção vinculada aos ciclos da natureza. Trata-se da pequena produção familiar dos pescadores-lavradores.

As atividades econômicas do litoral norte de SP se restringiram a agricultura de coivara, uma herança indígena, ao artesanato (produção de balaios, panelas, tigelas, etc.) e à pesca sazonal, sendo que o excedente da produção local era comercializada no porto de Santos, onde as mercadorias que não eram produzidas no litoral norte eram conseguidas (como óleo, querosene, corda, tecido, etc.).

Os meios de transporte eram grandes canoas à remo chamadas de canoas de Voga, pois as embarcações à vapor, que antes buscavam a produção das fazendas, já não atracavam na região.

Esse período de decadência das atividades econômicas do litoral norte foi caracterizado na segunda metade do século XX como um período anterior ao desenvolvimento, um lugar onde o capitalismo não tinha chegado ainda, por isso predominavam atividades primitivas de povos tradicionais e, portanto, necessitava ser integrado ao projeto de desenvolvimento nacional. Obviamente é impossível ter uma visão mais equivocada do que essa.

Como viemos demonstrando, o litoral norte paulista foi integrado ao projeto colonial português desde o princípio do século XVII com a derrota dos Tupinambás.

Os diversos ciclos econômicos desenvolvidos no litoral norte se integram à economia nacional e internacional. Assim como a oferta de alimentos produzidas no litoral abastecia as fazendas monocultoras, também foi importante para suprir a demanda de alimentos dos mineiros no ciclo do ouro. Esses minérios, como sabemos, não ficaram no Brasil, embora o ônus da destruição ambiental, sim.

O tráfico de povos africanos escravizados, além de ter sido um comércio extremamente lucrativo e na mesma medida hediondo, também visava atender à demanda de força de trabalho nas fazendas monocultoras do litoral e do interior. As monoculturas da cana de açúcar e café do litoral, que exploraram populações originárias e forasteiras, visavam atender a demanda externa, primeiramente Portugal e em seguida a Inglaterra.

O litoral norte de São Paulo esteve integrado à economia brasileira, desempenhando papéis significativos em determinados momentos. E, evidentemente, integrado também à divisão internacional do trabalho. Portanto, não cabe apontar o período de estagnação econômica como um período anterior ao desenvolvimento, onde as forças produtivas se encontram em fase primitiva, é justamente o oposto disso. O período de estagnação econômica do litoral norte é o resultado do desenvolvimento de uma economia cuja produção visa atender necessidades externas, ou seja, é o fruto do desenvolvimento da estrutura econômica brasileira subordinada aos interesses de outro(s) país(es).

A ocupação do litoral norte não teve outra razão que não o lucro com o comércio exterior. Bastou esta região deixar de ser tão lucrativa em comparação com outras para que os empreendimentos fossem abandonados, marginalizando toda a população que vivia na região.

Por outro lado, esse isolamento relativo também permitiu que o trabalho e a vida dos povos da região pudesse se realizar livremente, limitadas apenas por suas capacidades criativas e pela natureza. Essa foi a era de ouro das comunidades tradicionais do litoral norte.

Casa caiçara, de Oda Gomes.

No entanto, a partir dos anos 1960, e mais profundamente depois dos 1970, inicia-se um novo ciclo econômico baseado na exploração turística do lugar.

Exploração Turística e desestruturação do modo de vida tradicional (1960 — )

Esse período abre a janela da proletarização das populações tradicionais. Ou seja, a desestruturação do modo de vida dessas populações, transformando-as novamente em força de trabalho para empreendimentos capitalistas.

A construção da Rodovia Rio-Santos (BR-101), iniciado na década de 1960, e a consequente especulação imobiliária, o crescente processo de urbanização voltada para a exploração turística, a criação de parques de preservação ambiental que não levavam em conta as relações históricas dos povos tradicionais com o meio ambiente, todos esses elementos levaram a efetiva diminuição do território caiçara. Sem terras e sem mares, como reproduzir um modo de vida baseado nos ciclos naturais desses elementos?

Esse processo inciado nos anos 1960 colocou em marcha a tendência a proletarização das comunidades tradicionais, e ainda não acabou. Ele marca a nova fase dos grandes empreendimentos econômicos que invisibilizam a história das pessoas comuns e nos tornam cada vez mais insensíveis as dificuldades e dores dessas pessoas. No entanto, nem a história não chegou ao fim, e nem a história é feita somente pelos grandes. As comunidades tradicionais vem se organizando e atuando na valorização da sua cultura, bem como reivindicando condições materiais para a reprodução do seu modo de vida, demonstrando que existir implica em lutar e fazer a história.

Veja também: Transformação do mundo caiçara.

Bibliografia.

ADAMS, Cristina. “Identidade Caiçara: exclusão histórica e sócio-ambiental”. In: Atualidades em Etnobiologia e Etnoecologia. Palestras Convidadas do IV Simpósio Brasileiro de Etnobiologia e Etnoecologia. Ulysses P. de Albuquerque (org.), Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia. p. 27 -43. Recife — 2002

______________ “As roças e o manejo da mata atlântica pelos caiçaras: uma revisão. In: Interciencia, vol. 25, nº 3. p. 143–150–2000

CALVENTE, Maria del Carmen Matilde Huertas. “No território do azul marinho: A busca do espaço caiçara”. Dissertação. USP. São Paulo — 1993.

CAMPOS, Jurandyr Ferraz de (org.). “Santo Antônio de Caraguatatuba: Memórias e Tradições de um povo”. FUNDACC, Caraguatatuba — 2000.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. “O mito moderno da natureza intocada. 6ª ed. ampliada. Editora Hucitec: Nupaub — USP/CEC. São Paulo, 2008.

____________ “Pescadores, Camponeses e Trabalhadores do Mar”. Editora Atica. São Paulo, 1984.

____________ “Pesca e Marginalização no Litoral Paulista”. Tese de mestrado. CEMAR — USP. São Paulo, 1973.

KOK, Glória. “O Litoral Norte em Dois Tempos: De Santos a Ubatuba (1915–2015)”. Editora Neotrópica. São Paulo, 2015.

PRADO, Caio Jr. “Formação do Brasil Contemporâneo” Editora Brasiliense, São Paulo, 1961.

--

--