Transformação do mundo caiçara.

Eduardo Ueda
TERRAMARES
Published in
5 min readApr 1, 2020
Arte: Deocir Gomes.

A partir de 1960 grandes transformações ocorreram no modo de vida das populações caiçaras. Falaremos especificamente sobre os caiçaras, mas o processo socioeconômico foi o mesmo para indígenas e quilombolas que historicamente habitam o litoral sul-sudeste brasileiro.

Veja também: Origem étnica das populações caiçaras.

O modo de vida dos caiçaras, antes dos fenômenos que desestruturaram suas relações, era baseado em um complexo calendário de agricultura e de pesca, por isso são chamados pescadores-lavradores. Suas atividades eram a agricultura de coivara — técnica de plantio itinerante baseada na derrubada e queima da mata nativa para acelerar o processo de decomposição de matéria orgânica — a pesca sazonal, o artesanato, a caça e a coleta.

Na segunda metade do século XX, durante a Ditadura cívico-militar, uma confluência de fatores levaram à perda do território tradicional dos caiçaras do litoral norte de São Paulo, levando à uma transformação drástica modo de vida das populações. Entre esses fatores destacam-se a construção da rodovia Rio-Santos (BR-101) iniciada na década de 60, o início da urbanização voltada para a exploração turística do litoral, a criação de parques de preservação ambiental.

A perda do território caiçara.

A partir da construção da rodovia Rio-Santos, e antes mesmo dela ser terminada, houve uma rápida investida de grileiros que, com o emprego de truculentos jagunços, aterrorizavam a vida das populações que historicamente ocuparam o território.

A jornalista Priscila Siqueira denuncia a corrupção e informação privilegiada sobre o trajeto da rodovia oferecida pelos responsáveis da obra à especuladores imobiliários, entre eles, Carlos Lacerda, então governador do Rio de Janeiro e ex-jornalista pró-golpe de 1964. De acordo com Priscila Siqueira, o trajeto da rodovia:

“…havia sido um ‘segredo de Estado’, a fim de que fosse evitada a especulação imobiliária nesta área litorânea. Um segredo de polichinelo, porque quando foi inaugurado o primeiro e único trecho da estrada, entre Ubatuba e Rio, em 1974, os títulos das terras por onde a estrada passava já eram, na sua grande maioria, de propriedade do senhor Carlos Lacerda, ex-governador do Rio e ‘revolucionário’ de primeira hora” — Priscila Siqueira, O Genocídio dos Caiçaras, 1984, página 16.

A Rodovia Rio-Santos é a obra de infraestrutura que vai permitir ao estado brasileiro organizar um projeto de desenvolvimento para o Litoral Norte. É claro que esse projeto não levou em conta as populações locais.

Com o processo desencadeado pela especulação imobiliária na região, as terras próximas às praias — local tradicional de moradia, festividades e encontro da cultura caiçara — foram extremamente valorizadas por projetos de exploração turística (condomínios horizontais, hotéis, casas de veraneio, etc.). Muitos desses empreendimentos turísticos ofereceram valores irrisórios pelas posses caiçaras e/ou coagiram fisicamente a população local a abandonar suas terras.

Reprodução/ Apartheid ambiental no litoral paulista.

Por outro lado, as terras do sertão, onde predomina a vegetação da Mata Atlântica, historicamente utilizadas para a agricultura e extrativismo dos caiçaras, se tornaram parques de reserva ambiental. O parque estadual da Serra do Mar, criado em 1977, ocupa uma área que vai desde o Rio de Janeiro até o litoral sul de São Paulo. Este parque representa a maior porção contínua preservada de Mata Atlântica no Brasil.

Quando foi criado, o parque proibia as populações tradicionais de manejar o território: nem plantar, nem caçar, nem pescar . As populações caiçaras se viram espremidas entre condomínios de luxo e “matas intocadas”. Era o fim do modo de vida dos pescadores-lavradores.

O segundo episódio do projeto audiovisual de curta-metragem “Treboada” conta um divertido causo de um conflito entre um fiscal do Ibama e um caiçara. Clique aqui para ver o curta.

Mais de vinte anos após a fundação do parque, em 1998 foi permitido o uso do território e de seus recursos por comunidades tradicionais do litoral norte de São Paulo.

Tendência à proletarização — Trabalhadores urbanos, trabalhadores do mar.

Com a contínua expropriação das terras dos caiçaras, surge a tendência dessas populações se proletarizarem, seja no meio urbano em desenvolvimento ou no meio marítimo, como trabalhadores de empresas de pesca ou pescadores artesanais. As famílias caiçaras que venderam suas posses próximas à praia foram, em sua maioria, viver nas periferias urbanas em crescimento.

No contexto do litoral norte paulista, uma parcela dessas pessoas se tornaram trabalhadores urbanos empregando-se na industria de construção civil, ajudando a erguer hotéis e condomínios onde antes era sua terra, ou no setor de serviços prestando serviços domésticos aos forasteiros endinheirados, ou ainda no comércio formal e informal da temporada.

Reprodução/ Trabalhadores de empresas de pesca.

Outra parcela dessa população tornou-se trabalhadora marítima. Empresas de pesca contratavam caiçaras que tinham experiência no mar e na pesca para trabalhar nas grandes embarcações pesqueiras, passando de semanas à meses embarcado em alto mar, longe de sua terra, de sua família e amigos. Sem fiscalização e com a ainda débil sindicalização dos pescadores embarcados, as condições de vida e de trabalho dessas pessoas era provavelmente pior do que a dos trabalhadores industriais. Tanto é assim que muitos desses trabalhadores buscavam emprego nas empresas de pesca apenas como estratégia para conseguir juntar uma quantia suficiente para comprar uma canoa motorizada e ser um pescador autônomo, isto é um pescador artesanal.

O pescador artesanal pode ser encarado como uma adaptação do modo de vida dos pescadores-lavradores à nova realidade social. Diferente dos pescadores-lavradores, a produção dos pescadores artesanais destina-se, em sua maior parte, ao mercado. E diferente também dos pescadores embarcados, os artesanais ainda preservam o controle do processo de trabalho e o seu saber-fazer tradicional. Mesmo assim, evidencia-se a condição de insegurança a que os pescadores artesanais estão sujeitos, tendo que capturar uma quantidade de pescado com um valor suficiente para a reprodução de sua unidade familiar e para cobrir os custos de manutenção da sua embarcação (combustível, reparos, etc.).

Pescaria de canoa caiçara.

O sociólogo Antônio Carlos Diegues explica que a frota da pesca empresarial só se desenvolveu no país via incentivos governamentais, que pretendia criar uma industria pesqueira nacional. No entanto, devido às condições naturais do litoral brasileiro, a produção dos pescadores artesanais é mais eficiente e gera um menor impacto ambiental. Assim, o desenvolvimento da pesca empresarial, além de causar um dano ecológico substancial por suas técnicas predatórias de captura, o que leva a uma depredação dos estoques pesqueiros disponíveis para pequena pesca, ainda domina a produção artesanal comprando a produção dos pequenos pescadores direto na praia para revenda em centros comerciais mais lucrativos, atribuindo aos pequenos produtores a

“…função de um bolsão de força de trabalho barata para a frota empresarial-capitalista” — Antônio Carlos Diegues, Camponeses, Pescadores, Trabalhadores do Mar, 1984, página 147.

--

--