Prêt-à-Porter, um jogo sobre moda que não é elegante, mas é um jogão

Trzewiczek apresenta uma versão renovada de um de seus melhores jogos

Anderson Butilheiro
The Meeple Kingdom
8 min readAug 3, 2020

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Prêt-à-Porter na mesa.

Existe um termo que muitas vezes associamos aos jogos de tabuleiro e que é também associado ao mundo da moda: elegância. Quando se fala em “elegância”, o que vem a nossa mente é algo bonito, bem feito, que está alinhado, ou ainda que é, de certa forma, clássico, que faz muito com bem pouco. A definição do dicionário Oxford diz ainda:

Agradável e gracioso e elegante na aparência ou maneira; (de uma teoria científica ou solução para um problema) agradavelmente engenhoso e simples.

Em board games não é diferente. No meu último texto falei sobre como Concordia é um jogo elegante, que tinha pouquíssimas regras, mas trazia uma enorme variedade de caminhos e de possibilidades de estratégias. É um jogo engenhoso e simples. Acontece que, apesar de ser um jogo sobre moda, Prêt-à-Porter não segue esse mesmo princípio. Mas todos os jogos precisam seguir?

A arte do jogo foi totalmente renovada para esta versão.

Prêt-à-Porter é um jogo de 2010 do polonês Ignacy Trzewiczek, autor de outros diversos jogos de bastante popularidade. Em 2019, a Portal Games relançou o jogo via Kickstarter com uma versão com arte e regras renovadas, que foi um grande sucesso. No jogo você é um designer de moda com o objetivo de fazer fama no mundo fashion e ganhar prestígio e dinheiro. Ao longo do jogo, precisamos criar desenhos, comprar material para produzir as roupas e investir na nossa empresa, contratando funcionários e comprando novos prédios para expandir nossa marca.

A mecânica central do jogo é a alocação de trabalhadores. Os jogadores tem 3 peças durante todo o jogo e podem alocar em 9 locais diferentes: 3 onde compram cartas que melhoram sua empresa, 3 onde compram recursos com custos e regras diferentes em cada um, 1 específico para comprar cartas com design de roupas, 1 banco onde se pode pegar um empréstimo e 1 onde os jogadores podem pegar uma das opções de bônus existentes. Cada local tem 3 espaços para alocação, mas em 2 e 3 jogadores um desses espaços não fica disponível, criando aqui uma primeira tensão e corrida pelas ações.

Parte dos espaços de ação do tabuleiro.

Ao longo das 12 rodadas do jogo, os jogadores precisam planejar bem como irão usar seu dinheiro que, hora é escasso, hora fica abundante. As diversas cartas ajudam a formar uma maquininha que conversa bem com o tema do jogo, gerando não só popularidade, mas também qualidade para sua empresa, assim como te deixando entre as tendências. Todos estes atributos serão levados em conta na hora de avaliar a sua coleção.

A cada 3 rodadas acontecem as fashion shows, a sua oportunidade de apresentar sua coleção ao mundo da moda e ganhar dinheiro. De uma forma bem original, você compete com os demais jogadores em 4 categorias e recebe pontos de prestígio por cada uma delas. Em seguida, recebe dinheiro pelas peças que apresentou. O importante é que dinheiro também é ponto de vitória ao final do jogo, então prezar tanto pela sua pontuação quanto pelo quanto dinheiro ganha é o grande desafio do jogo. Não adianta fazer muitos pontos, mas não ter dinheiro guardado pra próxima rodada, assim como não vale a pena poupar dinheiro e não ir tão bem nas apresentações.

Parte superior do tabuleiro e a trilha de rodadas com os eventos.

Assim, ao final do jogo, você soma seu dinheiro aos pontos conquistados ao longo da partida e o vencedor é aquele com o maior total. Esse total costuma beirar os 300, 400 pontos. Talvez até mais à medida em que você se torna experiente com o jogo, algo que me lembrou bastante Pipeline, um jogo recente que te exige também criar uma máquina de transformar recursos em dinheiro em que qualquer erro pode fazer com que a diferença final entre os jogadores seja na casa dos 500 pontos — digo por experiência própria.

Um coleção: várias cartas de design com o mesmo estilo.

Em se tratando de um jogo com foco no seu lado econômico, o jogo entrega o desafio que geralmente se espera nesse nicho, com ênfase na escassez de dinheiro no início do jogo e que se torna num desafio do que fazer com tanto dinheiro no final — se você fizer as escolhas certas, claro — uma vez que o jogo não te dá novos trabalhadores ou novos espaços de ação. Então, a grande questão se torna como utilizar, da melhor maneira possível, seus trabalhadores, empregados, construções e designs, mas também seu dinheiro, para que toda a sua máquina funcione.

Com a descrição acima, você não diria exatamente que se trata de um jogo pouco elegante, certo? As regras são simples, diretas, o jogo parece fácil de se explicar. E é. Pra um jogo com peso de 3,62 no BoardGameGeek, o jogo realmente surpreende em qual fácil ele pode ser ensinado. Algo como 15 minutos é o suficiente, eu diria. Então, qual é o problema?

Tabuleiro do jogador.

Os jogos da Portal Games costumam ser amplamente criticados por seus manuais ruins. Não é muito diferente do que acontece com as primeiras duas versões de Prêt-à-Porter. E, por mais que isso melhore bastante nessa terceira edição, ainda assim não é muito louvável um jogo que se demore 15 minutos pra explicar tenha 20 páginas de manual. E não é que o manual seja super detalhista, com descrições de todos os efeitos de todas as cartas. Pelo contrário, nenhuma delas está lá. São 20 páginas que descrevem cada etapa do jogo com detalhes e exemplos, que não são suficientes para esclarecer algumas dúvidas simples que surgem durante o jogo. A quantidade de páginas deixa o manual mais assustador do que o jogo em si.

Área de jogo: é muita informação.

Outra coisa que acontece de cara é que a disposição das coisas no tabuleiro também não é lá muito intuitiva. As cartas que você pode comprar estão dispostas na vertical sempre em 3 por fileiras, mas o próprio baralho de onde você repõe as cartas em jogo fica no tabuleiro, na horizontal, meio que sem sentido algum. A trilha que marca as rodadas e mostra as etapas a serem resolvidas é incompleta — não mostra, por exemplo, a fase de “crescimento”, que é quando podemos treinar nossos funcionários e fazer melhorias nas construções, e por causa disso volta e meia percebíamos que tínhamos esquecido de fazer essa fase.

Mas a pior parte são as cartas. Um das principais coisas que têm se falado recentemente sobre jogos elegantes é sobre como eles prezam por ter iconografia que resolve bem para o jogador o que ele faz, ao invés de blocos de texto. Quanto mais preze por ícones e símbolos, mais elegante ele tende a ser considerado. Mas, bom, Concordia também usa textos nas cartas e ainda assim é um jogo elegante. Qual o problema então? A questão é que, em Concordia, o jogador pode apenas decorar o título da carta que ele já sabe, se estiver acostumado a jogar o jogo, o que ela faz. Além disso, ele só joga uma carta por vez na sua ação e a resolve imediatamente.

Cartas abertas na mesa o tempo todo.

Em Prêt-à-Porter, as cartas ficam abertas na mesa o tempo todo, são informação aberta, segundo o manual (como todas as coisas do jogo, na verdade). Assim, em determinados momentos você tem 6, 8 cartas com efeitos diversos, cada um sendo acionado em diferentes fases do jogo, criando um caos na mesa. Alguma cartas têm na sua frente tanto o texto da habilidade inicial quanto o texto da habilidade da melhoria (o verso da carta). Outras cartas sofrem com o efeito do tempo durante o jogo e serão viradas para o verso em um momento e descartadas em outro momento.

Todas as informações acabam brigando na sua frente, trazendo um certo cansaço de lembrar de verificar tudo o tempo todo, a cada mudança de fase, a cada ativação de cada carta. As suas e a de seus oponentes, uma vez que em cada fashion show você precisa ser melhor que os adversários, logo, saber quais são os planos deles é algo essencial para a sua estratégia. E não são poucas as cartas que, além de tudo isso, tem textos confusos e passíveis de dupla interpretação. Algumas vezes precisamos recorrer ao BGG para tirar dúvidas de cartas (uma vez que, como disse, elas não estão no manual de 20 páginas).

Carta de design: uma solução mais elegante é usar só iconografia.

Mas essas questões fazem de Prêt-à-Porter um jogo ruim? De forma alguma. Ao passo em que existe hoje uma enorme preocupação por jogos elegantes, que sejam fáceis de se colocar na mesa, há também o nicho que não se preocupa com as dificuldades que o jogo impõe por questões de design, ou seja, aquela complexidade que o jogo cria simplesmente porque ele não é straightforward. Jogos como Anachrony, Trickerion, Feudum, Terraforming Mars e notadamente os jogos do Vital Lacerda (com ênfase para Lisboa e On Mars) são jogos que praticamente não se preocupam em ser elegantes, em terem regras simples, em serem atrativos e fáceis para o jogador. E daí? É um nicho de mercado de jogos pesados que sabe que tem seu público limitado, mas ainda assim são aclamados. E muito. Pra mim, Prêt-à-Porter se encaixa nesse grupo, talvez como o jogo mais fácil de se explicar entre eles.

Há sim uma barreira natural em se fazer um jogo temático e isso exige que o designer tenha preocupação com vários elementos do jogo, às vezes tirando um pouco de sua elegância em detrimento do tema. Isso é facilmente notado no jogo pelas falhas em seu manual e cartas. Contudo, é um jogo que acerta em cheio em ser temático. O jogo mostra que tema importa sim, e muito.

Recursos do jogo são carretéis de linha ao invés de cubos.

O jogo casa muito bem seu tema com as mecânicas, substitui os tão questionados cubos clássicos de um eurogame por matérias prima que você vê sentido dentro do tema (os tecidos de diferentes materiais e cores) e torna tudo isso um engine building prazeroso em que você sente sua evolução. As construções e trabalhadores que você contrata fazem sentido e trazem sempre boas habilidades — muitas vezes é difícil decidir qual deles pegar — , mas com um custo que você precisa o tempo todo gerenciar.

Jogo em suas rodadas finais.

A despeito de não ser elegante, Prêt-à-Porter é um jogo excelente, temático, denso e também divertido, que traz pra mesa um tema pouco usual, mas sem o tornar chato para aqueles que não se interessam pelo mundo da moda. Prêt-à-Porter entrega um jogo médio-pesado que é desafiante, que tem enorme rejogabilidade, com um tema atemporal e mecânicas redondas. Se peca no excesso de informação, ele se destaca pela profundidade. Se é isso que você está buscando, vai fundo que o jogo vale a pena.

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