A morte e os jornalistas: o peso de reportar as perdas da pandemia

Texto de autoria de Tristan Stewart-Robertson publicado originalmente no The Pandemic Journal em 26.mai.2020

Gabriel Toueg
The Pandemic Journal
6 min readJun 23, 2020

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Ruas de Glasgow vazias e silenciosas durante o lockdown na cidade (foto: Tristan Stewart-Robertson)

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No filme O Cidadão Kane, resumindo o mistério de “Rosebud“, Thompson diz:

“O Sr. Kane era um homem que conseguiu tudo que queria e depois perdeu tudo. Talvez Rosebud fosse algo que ele não conseguira ou algo que perdera. Não acho que uma palavra possa explicar a vida de um homem. Não, acho que Rosebud é apenas uma peça de um quebra-cabeça… uma peça faltando.”

Recentemente passei algumas horas revisando mais de 120 páginas de notas fúnebres em jornais diários e semanais, regionais e locais. Conhecidos como “Hatches, Matches & Dispatches” porque noticiam nascimentos, casamentos e falecimentos, essas seções hoje são muito menos numerosas do que no passado, agora que as mídias sociais permitem que todos sejam avisados sobre a morte de um ente querido.

Algumas das notas saem na página 2, dominando um canto do jornal. Outras ficam escondidas depois do noticiário internacional e de um sem-fim de páginas de opinião. Algumas estão enterradas nas últimas páginas, seguindo os anúncios classificados e antes da seção de esportes, que anda quase vazia.

A maioria das palavras usadas para noticiar as mortes não fala em coronavírus ou em Covid-19, mas sabemos, pelos números crescentes e por relatórios para a imprensa que essas vítimas são sem dúvida parte da pandemia.

“Devido às circunstâncias atuais…”

“Quando as circunstâncias mudarem, haverá uma oportunidade de celebrar a vida de David”

“Não podemos estar juntos dessa vez, mas lembraremos com alegria muitas memórias felizes”

“Repentino mas de forma tranquila…”

“Lamentamos informar que devido às restrições sanitárias, a cremação será privada. Pedimos que se lembrem de Margaret à sua própria maneira. Descanse em paz”

“Parteira, esquiadora, gostava de caminhar e de acampar, poeta e amante de cães, uma vida bem vivida”

“Uma celebração à sua vida ocorrerá em algum momento no futuro”

“Haverá uma cerimônia em lembrança quando os tempos permitirem”

“Eileen perdeu sua batalha com a vida”

“Pacífica e nos melhores cuidados…”

“Você merecia uma despedida melhor”

Algumas das notas se referem às “restrições governamentais” ou a “regras” que exigem que os enterros sejam privados. Algumas famílias convidaram amigos e conhecidos para que se prostrem, distanciados 2 metros uns dos outros, ao longo do caminho fúnebre, quase como guardas de honra, como uma alternativa segura e aceitável às aglomerações em igrejas ou em cerimônias brindando em memória ao falecido.

Repórteres têm ajudado a informar as comunidades sobre esses arranjos.

Muitas vezes somos acusados de correr na direção de acidentes ou de tragédias. É uma parte necessária do jornalismo, agora mais ainda.

Na minha primeira viagem de volta à minha casa no Canadá depois de me mudar para estudar e trabalhar como jornalista no Reino Unido, expliquei o termo da “batida da morte” para as caras assustadas dos meus irmãos. É um termo minucioso que explica uma tarefa horrível, mas que é parte do nosso trabalho. É fácil dizer que nem deveríamos fazer isso. Mais difícil, porém, é explicar o motivo e talvez eu não tenha explicado minha profissão bem o bastante no passado ou de forma frequente desde então — e é por isso que, para algumas pessoas, é tão difícil aceitar qualquer coisa que os jornalistas fazem.

Bater na porta de alguém depois de uma morte é a pior parte do trabalho de qualquer repórter. Durante uma pandemia, não podemos fazer isso. Então precisamos adotar uma abordagem online ou por telefone.

Todos nós já agimos errado em algum ponto ao fazer esses pedidos, mas na maioria esmagadora das vezes, os fazemos com o mesmo cuidado e a mesma compaixão que gostaríamos que tivessem se alguém batesse à nossa porta.

A morte vende jornais, é verdade — embora nem perto do que já foi. No entanto, sugerir que queremos de forma mórbida que a morte bata à porta é presumir que jornalistas não têm família, não amam e não têm saudade dos próprios amigos e familiares que se foram.

Muitos já celebraram a arte dos autores de obituários, uma função que há muito já se perdeu em qualquer jornal que não seja grande ou diário. Entretanto, muitos dos meus colegas levam com muita seriedade o ato de escrever um tributo, um texto para celebrar a vida.

Quando dirigi uma peça sobre o Holocausto na faculdade, disse ao elenco e à equipe para que se imaginassem mergulhando em uma piscina. Havia uma moeda no fundo, mas seria necessário nadar até as mais escuras profundezas para conseguir pegá-la e então trazê-la à luz da superfície. Quando relatamos e escrevemos sobre a morte, não estamos revolvendo o fundo da piscina — nós buscamos o valor da luz na superfície.

O gestor de uma casa de repouso, ao se recusar a confirmar quão gravemente o estabelecimento havia sido afetado pelo vírus nos dois últimos meses, me disse, recentemente:

“A morte de qualquer pessoa, em qualquer circunstância, pelo motivo que for, é profundamente angustiante para todos.”

É claro que é. Respondi dizendo que não havia perguntado para gerar mais aborrecimentos, mas como questão de interesse público sobre onde as vidas estão sendo perdidas e como os cuidadores têm lidado com isso. O sujeito então me escreveu no e-mail:

“Entendo que você tem um trabalho a fazer e que você vê interesse público nele, mas acho que o relato do número de mortos, mesmo que fosse um, é algo cruel e angustiante para os parentes de residentes que não podem visitá-los. É angustiante demais ver a contagem diária de mortes na imprensa”.

Eu me debati por algum tempo sobre o que fazer com essa declaração. Será que todas as mortes devem ser ignoradas? Será que a imprensa deve fazer uma pausa porque a pandemia é angustiante demais?

As pessoas podem ler ou assistir a reportagens sobre guerra fora de seu país por meses e anos — a diferença é que o público pode e, de forma cômoda, ignora vítimas de diferente raça, nacionalidade ou distantes geograficamente. Uma pandemia traz diretamente para a sua rua o estilo de reportagem parecido ao da cobertura de guerra. Os termos adotados são os de quem está na “linha de frente”. E confiamos no jornalismo porque a maioria das pessoas deve ficar em casa e não pode ver ou tomar conhecimento de como é essa linha de frente.

Relatar cada aspecto de uma pandemia, mesmo com tantas restrições contra nós, é uma tarefa tão essencial que muitos de nós a sentimos na pele. Temos a necessidade profissional de sair e relatar, mesmo com a necessidade pessoal de ficar em casa para proteger a nossa saúde — sou diabético, por exemplo — ou de proteger as nossas famílias.

Será que tenho medo da morte? Claro que sim, além do medo de não fazer o bastante no tempo que me resta, seja qual for. Mas nos últimos meses eu também tenho escrito muito sobre a morte, incluindo estatísticas semanais, metade delas, na Escócia, vinda de casas de repouso.

No entanto, nem todos os casos foram relacionadas à Covid-19.

O dia em que entrevistei o pai de um menino de 15 anos que morreu de câncer e depois escrevi a respeito foi talvez o mais comovente da minha carreira. Mas esse é o meu trabalho.

Entrevistei uma mulher sobre o falecimento da tia, com 96 anos, em uma casa de repouso, mas em função de idade avançada. Eu a conheci quando ela tinha 95 e ela tinha sido vítima de um roubo. Eu queria seguir a história para fazer um retrato de uma vida longa e bem vivida antes que ela se tornasse uma estatística passageira do crime. Esse é o meu trabalho.

E entrevistei a gestora de uma casa de repouso sobre como ela estava lidando com as perdas — 11 pessoas com suspeita de Covid-19, mas com acesso aos testes negado pelo que alguns poderiam chamar de “restrições do governo” naquelas notas de jornal. Esse é o meu trabalho.

O estabelecimento foi gentil o bastante de concordar em passar adiante o pedido de entrevistas às 11 famílias, no caso de que desejassem que aquelas vidas fossem celebradas. Eu disse na ocasião o que repito aqui: jornais são memórias.

Jornais são um quebra-cabeça de memórias e cada peça é uma vida moldada imperfeitamente que se encaixa para formar uma comunidade. Olhe mais de perto e você verá que cada peça é seu próprio quebra-cabeça, composto pelos eventos de uma vida. O trabalho do repórter é escolher as palavras para resumir essas peças, suas cores, suas falhas. Nenhuma palavra sozinha pode explicar a vida de uma pessoa, mas o jornalismo tenta se aproximar disso tanto quanto pode.

No nosso mundo de pandemia, os quebra-cabeças parecem infinitos em números e o desafio de fazer com que as peças se encaixem é imenso.

No entanto, a menos que nos concentremos nessas peças, a menos que escrevamos sobre elas para o mundo, como poderemos ver e apreciar o retrato daquilo que foram, bem como as imagens vivas e brilhantes que temos ao nosso redor agora?

Tradução para o português: Gabriel Toueg

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Gabriel Toueg
The Pandemic Journal

Journalist. Storyteller. Former Mideast and Chile, now in SP, Brazil. Freelancer writer. Check my portfolio https://gtoueg.journoportfolio.com/ Translator.