Uma vida perdida dentro do transporte

Sté Rodrigues
Transportando Informação
7 min readJun 3, 2019

Tempo dentro dos coletivos é apontado como uma das partes mais desgastantes de trabalhar fora de casa

A superlotação e a demora para embarcar fazem parte da rotina do transporte do Rio de Janeiro. Foto: O Globo

‘Caro’, ‘ineficaz’, ‘pouca cobertura dos bairros’ e ‘cercado por escândalos’: os adjetivos escolhidos pelos entrevistados refletem o porquê do transporte coletivo do Rio de Janeiro ser considerado o pior do mundo. Entre o ‘mar de problemas’, o tempo de deslocamento é quase uma unanimidade entre os passageiros na hora de fundamentar as reclamações.

Uma simples ida ao trabalho, saindo da Baixada Fluminense com destino à Zona Sul, representa uma verdadeira viagem que pode acrescentar mais de seis horas na carga de horário do trabalhador — mesmo tempo que se leva do centro do Rio de Janeiro até o estado de São Paulo de carro.

São baldeações entre as composições do metrô, trocas entre ônibus, espera pela barca; horários complexos dos trens, BRT com assentos “loteados” pela milícia e, muitas vezes, uma mistura entre duas ou três dessas modalidades. O expediente do trabalhador começa horas antes de “bater o ponto” e, para boa parte dos ouvidos, é a parte mais cansativa e prejudicial.

Ao tempo gasto dentro do transporte público acrescenta-se ainda outras “insalubridades”, como a professora e pedagoga Alessandra de Mello nomeou. É o caso da superlotação, a falta de ar-condicionado ou as temperaturas muito baixas; os elevadores — que deveriam promover a inclusão social — quebrados, assédios sexuais recorrentes, falta de treinamento dos motoristas para lidar com passageiros preferenciais e uma longa lista de problemas que fazem parte da vida de milhões de trabalhadores.

— Um trajeto que eu faria casa-trabalho de carro em 30 minutos, eu faço em uma hora e meia. Acho precário! Eu já fiquei coisa de quase uma hora esperando o BRT, conta Alessandra.

Em tempos de crise financeira e uma taxa histórica de desemprego, as opções de escolha dos locais para trabalhar são limitadas e, com a extinção do Ministério do Trabalho, alguns problemas se aprofundaram. É o caso da falta de pagamentos integrais dos valores das passagens por parte do empregador e as duras penalizações por atrasos.

É comum empresas anunciarem vagas em sites e páginas de redes sociais exigindo que morem próximo ou oferecendo apenas uma passagem de ida e de volta, cabendo aos empregados cobrirem o restante. E os atrasos, devido à facilidade de substituir a mão-de-obra, são cada vez menos toleráveis — com descontos excessivos, anotações em carteira e demissões por justa causa.

Pelas redes sociais, é possível encontrar diversas vagas que não pagam passagem ou que limitam o valor a ser pago. Foto: Página Vagas Arrombadas

Os dois fenômenos somados ao cansaço e ao estresse dos longos trajetos e da jornada dentro dos coletivos explicam, em partes, a “falta de paciência” dos motoristas — que são descontados pela demora de realizar o percurso — e da população. Um exemplo recorrente é a impaciência com o fato de ser necessário desligar o ônibus para garantir a acessibilidade de deficientes e idosos pelo elevador.

— Embora eu não precise do recurso, não tem a mobilidade para as pessoas necessitadas; e os que têm, eu noto que as pessoas ficam de mal-humor, irritadas. Várias vezes presenciei os motoristas dizendo que estava quebrado, mas nem sei se era verdade, analisa a pedagoga.

E a falta de acessibilidade para deficientes físicos juntamente com as longas viagens desgastantes, aprofundam ainda mais as desigualdades sociais e prejudicam o amplo acesso aos direitos mais básicos do ser humano: o de ir e vir e o de ter acesso à uma educação de qualidade.

— Anos atrás, um aluno que era cadeirante foi fazer matrícula na escola. Na semana que a mãe levaria ele, teve vários problemas de ônibus não ter acessibilidade, de não parar, de pessoas reclamarem. E nisso ela tirou ele da escola para estudar mais próximo de casa, embora ela tenha dado preferência para uma mais longe porque a casa dela era em um bairro muito violento e que muitas vezes não tinha aula. Ela quis uma educação de mais qualidade para o seu filho, mas foi impedida pelo transporte público, lamenta Alessandra.

Transporte como fonte de renda para corruptos

O tempo de deslocamento é uma consequência direta do desvio de verba e a falta de planejamento eficaz. Comandadas por corruptos, as frotas são reduzidas para aumentar os lucros das concessionárias responsáveis e os trajetos são modificados de acordo com o que é mais barato ao invés de mais útil para a população.

O transporte público é essencial para a vida coletiva, segundo a própria Constituição Brasileira. Cabe aos metrôs, BRTs, trens e a todas as modalidades de coletivos garantirem que o cidadão tenha acesso à educação, saúde, cultura, lazer, trabalho e aos demais Direitos Fundamentais. Conectar pessoas, realidades e direitos, para o mestre em Antropologia Cultural, Sady Biachin, é um dos princípios da vida coletiva.

— A cidade é um espaço que agrega pessoas, que são as tribos, e, por isso, [existe] a palavra tributos (e o Brasil talvez tenha os maiores tributos do mundo). E, para agregar pessoas gera a necessidade de mobilidade urbana. Esse deslocamento das pessoas depende de políticas públicas, ou seja, da estrutura do Estado. Mas no Brasil não temos nenhuma tradição dessas políticas que são duradouras e perenes. O que acontece no Brasil são políticas de Governo, que mudam em todo governo. E isso cria um linha muito tênue entre os interesses das populações e os privados, analisa Sady.

E é o uso inadequado e criminoso dos “tributos das tribos” e os grandes escândalos que contribuem para a precariedade nos serviços que afeta toda a sociedade e incisivamente aos trabalhadores. Problemas tão enraizados que já fazem parte da história do Rio de Janeiro — assim como o Cristo Redentor e os Arcos da Lapa.

Nos últimos três anos, cinco ex-governadores foram presos. Corrupção, propina, lavagem de dinheiro e desvios de verbas públicas contaminaram e prejudicaram todos os setores. Entre os políticos que se tornaram presidiários, Sérgio Cabral é acusado de receber mais de 120 milhões de reais de propina de empresas de ônibus, segundo o Ministério Público. Questionado sobre o assunto em uma audiência que tentava compreender o papel do transporte público para a corrupção, Cabral se calou.

Entre os crimes de Sérgio Cabral está o recebimento de propina para garantir o aumento das passagens dos ônibus do Rio. Foto: O Globo

— No Rio, o transporte é público, mas não é público, você tem que pagar! E você tem que pagar para o Barata [Jacob Barata, preso e conhecido como o “Rei dos Ônibus”], que é a metáfora da hegemonia do transporte público que não é público porque foi privatizado. O principal problema dessa questão de mobilidade urbana é a péssima administração das políticas públicas e dos gestores. O transporte público é nosso, da população, porém, os gestores — dando um atestado de total incompetência ou por jogo de tráfico de influências (a chamada corrupção) — privatizam aquilo que é básico, resume o antropólogo.

Mais um trabalho para a população

Além da jornada diária de trabalho e o longo percurso dentro do transporte público, a população ainda se vê imersa na obrigação de modificar o panorama atual. Com escândalos de corrupção e com um desmonte sistemático do que seria público, os cidadãos precisam encontrar fôlego para reparar os milhões desviados e investir em reais modificações.

A participação política e a exigência de ações públicas eficazes para a mobilidade urbana seriam a “arma secreta” para o antropólogo Sady. Entretanto, as dificuldades são mais acentuadas quando se analisa que cerca de 38 milhões de brasileiros são analfabetos funcionais, segundo dados do Ibope Inteligência; que há um profundo desconhecimentos dos direitos garantidos pela Constituição e não acreditam nos políticos.

— O trabalho da população é criar uma desconstrução através dos projetos de inclusão e de capacitação de políticos. Investindo através do voto em políticos que defendem propostas claras de mobilidade urbana e direitos completos de cidadania. Em Maricá, por exemplo, foi criada a tarifa zero. Então lá no transporte é público! Precisa investir em políticas duradouras e perenes.

As privatizações dividem opiniões e estão intimamente ligada à ruptura e a polarização social dos últimos anos no País. Esquerda e direita discordam, praticamente, em todos os pontos e, para Sady Bianchin, não conseguem cobrar o que “deveria ser apartidário”. Como é o caso de um transporte mais ágil e que respeite as necessidades da sociedade.

— Por exemplo, a educação francesa é a mesma do que a cubana. O governo cubano tem um regime de governo ‘x’ e o governo francês é neoliberal e a educação é a mesma. Mas por quê? Porque não pode mudar! Entra um neoliberal, um cara de ultradireita ou de autoritarismo de esquerda, mas não pode mudar a estrutura do processo educacional. Se a mobilidade urbana do Rio de Janeiro tivesse política de Estado e não de Governo, entraria qualquer governo (de direita, de esquerda, de ultradireita ou neoliberal), mas não poderia mudar a estrutura. Então a saída é a criação de política de Estado, conclui Sady.

Somado a isso, a Organização Mundial de Saúde já está em alerta para a Síndrome de Burnout — uma condição causada pelo excesso de estresse no ambiente de trabalho. E o tempo de deslocamento e as consequências de estar preso no trânsito, em coletivos sucateados, exposto a diversos tipos de violências também é um dos principais fatores.

--

--