Através do buraco de minhoca, ele foi

Beatriz Coragem
Beatriz escreve
6 min readOct 16, 2018

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Photo by Yong Chuan on Unsplash

Eu já tinha passado do meu terceiro drink, uma elegante combinação de Sprite com vodca barata, quando tive vontade de fazer xixi. Madrugada adentro, a noite quente e sem estrelas típica do verão paulistano ganhava uma brisa fresca e as muitas árvores que cercavam a quadra onde acontecia a festa pareciam dançar no ritmo do vento e da música. O setlist me agradava, o que era raro, e as luzes estroboscópicas piscavam e vibravam simultaneamente, uma frequência pegajosa e, por isso mesmo, irresistível. Mesmo assim, tudo o que eu queria era fazer xixi. Como uma boa festa de faculdade, a bebida era barata e os banheiros também.

Atravessei a pista de dança com determinação, desviando ao máximo de mãos viscosas, copos de bebida e pés desavisados. Minhas pernas seguiam, uma na frente da outra, em passadas estratégicas que me permitiam segurar a vontade de fazer xixi e me esquivar da multidão com velocidade.

Os banheiros químicos ficavam enfileirados um ao lado do outro, em um canto tão isolado que quase não se ouvia a música. Não havia distinção entre os sanitários femininos e os masculinos e, àquela altura, ninguém se importava muito com o que acontecia por ali. Sem pensar duas vezes, escancarei a porta de uma das cabines onde, para minha surpresa, um homem mijava, um pedaço da sua bunda descoberto entre a camiseta preta e a calça jeans. Ele virou a cabeça e me encarou com os olhos arregalados. Em segundos, senti minhas bochechas ficarem vermelhas e numa reação de reflexo soltei a porta, que bateu seca na parede do banheiro, um som tão constrangido quanto eu ou aquele estranho.

De repente, todos os outros banheiros se ocuparam e eu me resignei a esperar em frente à porta. Ele abriu-a e me encarou. Seus olhos fotografavam os meus, um registro do meu rosto na sua retina, a culpada pela sua humilhação. Murmurei um pedido envergonhado de desculpas e me enfiei dentro daquela cabine verde e fedida o mais rápido possível. Tranquei a porta e a segurei firmemente com uma das mãos enquanto fazia xixi agachada.

Saí do banheiro e fui direto para o bar. Apoiei um dos cotovelos na estrutura de madeira e estiquei o outro braço para chamar a atenção de algum garçom. Uma vodca com Sprite, por favor, pedi enquanto enfiava as fichas de papel na mão do garoto cheio de espinhas que me atendia.

“Você não deveria pelo menos perguntar meu nome antes de me ver pelado?”

Era ele.

“Se você se preocupasse com esses detalhes, teria trancado a porta do banheiro.”

“Meu nome é Otávio e o seu?”

“Beatriz.”

Foi durante uma sinergia momentânea, perto do bar, entre um gole e outro daquele copo de vodca meio quente, que a gente se beijou. Ele me apertou junto ao seu corpo e ficamos ali por instantes que se transformaram em horas. Um pedaço meu grudou num pedaço dele feito ímã e, antes que o sol raiasse e a festa acabasse, eu disse a ele o número do meu celular. No dia seguinte, acordei com uma mensagem sua, “chegou bem?”

As conversas se alongaram por horas e dias. Falamos sobre frustrações universitárias, amigos em comum, o que vimos no cinema recentemente. Conversamos sobre nossa aversão por sushi, sobre nosso interesse em comum por filmes coreanos e sobre os shows que gostaríamos, mas nunca poderemos ir — eu, The Beatles; ele, Cartola. Descobrimos que havíamos frequentado as mesmas festas por anos, mas só depois do infeliz incidente do banheiro químico, um desses claros sinais de destino, de coincidências cósmicas ou de acaso do universo, acabamos nos encontrando. Era quinta-feira e após duas ou três taças do vinho mais barato que encontrei no mercado, me senti mais propensa a confissões.

“Ei, adoraria te ver pelado de novo. Quem sabe nos encontramos em algum banheiro por aí?”

“Acho uma ótima ideia. Tem um barzinho novo ali na Consolação que tem um banheiro bacana, todo decorado.”

“Sempre escolho meus bares de acordo com a qualidade do banheiro.”

“Que coincidência, eu também! Sábado à noite?”

“Combinado.”

No sábado, não houve encontro. Ao silêncio de Otávio, respondi com desestabilizada paciência.

Teria meu celular quebrado? Seriam problemas com a internet? Mandei uma mensagem para a minha mãe, que respondeu na mesma hora. Por volta das cinco da tarde, espiei a nossa conversa. Ele estava online, denunciava o Whatsapp. Seria agora? Aguardei um, dois, três minutos e nada. Ele permanecia online. Era preciso agir.

“Ei, que horas te encontro hoje?”

Ainda online. Sem resposta.

Minha mensagem permaneceu ali, presa no limbo dos encontros que quase-aconteceram, flutuando na esquina solitária da internet onde expectativa e realidade se encontram e se desencontram. Um lugar impreciso onde subsistem abandonadas todas as mensagens não respondidas, todas as conversas que poderiam ter acontecido, todos os encontros que nunca puderam ser.

Um ano depois, encontrei com Otávio em um bar sujo perto da faculdade. Os cabelos estavam mais curtos, a barba mais comprida. Ele tinha duas novas tatuagens no braço, mas com a exceção desses pequenos detalhes, era a mesma pessoa. Meio bêbado, Otávio me cumprimentou com a intimidade de quem nunca perdeu o contato. Depois de um beijo estalado na bochecha, ele me observou da cabeça aos pés, respirou fundo e suspirou ansioso. Não perguntei, mas Otávio fez questão de se explicar.

“Sei que tô atrasado, acho que atrasado é pouco, qual será a palavra pra isso? Ah, não importa. Mas… Sabe aquele dia? Eu queria muito ir te encontrar, já tinha tudo esquematizado aqui na minha cabeça.

Eu tinha a-ca-ba-do de sair do banho quando ouvi um barulho tremendo vindo da lavanderia. Achei que fosse a máquina de lavar dando problema de novo. Paguei uma fortuna naquela porcaria e ela já quebrou mais de três vezes…

Enfim, me enrolei na toalha, corri pra lavanderia e adivinha? Você nunca vai adivinhar.”

Nem tentei. Otávio me encarava com olhos que pediam perdão, com uma das mãos, ele tirou uma mecha de cabelo que havia caído sob o meu rosto. Fingi acreditar nas suas palavras.

“Eu vi um buraco gigante surgindo da parede, um buraco colossal que zunia e piscava, umas luzes muito doidas. O som parecia com o de um aspirador de pó enorme e as roupas que estavam penduradas no varal, os pregadores, a caixa de sabão, os panos de chão e a toalha que enrolava meu corpo foram todos sugados pelo enorme vazio negro que esburacara a minha parede.

De repente, o buraco silenciou. Um novo som surgiu, um sussurro etéreo e aparentemente inofensivo substituiu a ventania anterior. Eu me aproximei pra ver e ouvir de perto. Enfiei a cara ali e, antes que eu pudesse pensar em qualquer outra coisa, o buraco me engoliu.

Nu e indefeso, afundei-me naquele poço preto e profundo que só posso chamar de buraco de minhoca. E pelo buraco de minhoca, eu fui. O espaço e o tempo perderam o sentido e eu rodei, rodei, rodei sem direção pelo que pareceram meses e anos naquela longa estrada vazia.

A viagem foi longa, mas não encontrei ninguém — nenhuma garota alienígena, nenhum universo paralelo, nenhum doppelgänger, nenhuma resposta pro sentido da vida, nenhuma explicação sobre o motivo daquele buraco ter aparecido ali, justo ali, na lavanderia do meu apartamento. Não fui pro passado, nem pro futuro e voltei, literalmente (sic) com as mãos abanando. Poucas horas haviam passado, mas acho que nunca mais serei o mesmo. Ando me sentindo fora do eixo desde então, já até pensei em terapia.

Eu sei que parece mentira, mas foi por isso que não respondi sua mensagem. Poxa, foi mal mesmo. Mas quer saber de uma coisa? Enquanto eu estava lá, viajando pelo universo, não consegui parar de pensar em você.”

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