CBD sintético: the good, the bad and the ugly.

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis
9 min readApr 23, 2019

Muito já se falou sobre canabinoides sintéticos. Para os puristas, eles são o vilão da história, aquele que joga contra a planta, que é o princípio de tudo e a fonte criadora. Para quem é da indústria farmacêutica, sintetizar um produto natural é uma evolução natural do decurso de pesquisa e desenvolvimento (P&D), e muitos consideram que fitoterápicos são um forma rudimentar de se produzir um medicamento. A discussão pode seguir noite adentro sem se chegar a um consenso, porque afinal, é só uma questão de opinião, e cada um tem a sua. A minha opinião? Depende. Há mais de uma estratégia e mais de um motivo pelo qual se decide fazer uma variante sintética de um produto natural. Espero poder esclarecer nesse post, vamos lá.

Esse é um setup típico de síntese orgânica em laboratório experimenal. Aquela reação complexa ali do lado é a síntese do dronabinol, em várias etapas. Tudo isso acontece dentro daquele balãozinho… não é incrível? Se quiser tentar sozinho "à la Breaking Bad", vai fundo tá aqui a referência.

Canabinoides sintéticos já foram tentados no passado e houve falhas históricas. O THC sintético é muito euforizante e os pacientes mesmo tendo autorização, preferiam continuar usando Cannabis do que mudar para a variante sintética. O rimonabant foi uma falha diferente, os efeitos adversos apresentados pelo tratamento são inerentes ao mecanismo de bloquear os receptores canabinoides tipo CB1. Mas certamente há casos em que sintetizar é necessário ou bem-vindo. Podemos pensar por exemplo nos casos em que há pouco disponibilidade de matéria-prima natural, ou a matéria-prima natural é muito instável, por exemplo. Mas via de regra, os principais motivos pelos quais a indústria farmacêutica sintetiza compostos naturais são:

  1. Padronização e previsibilidade do fornecimento (particularmente importante com variedades de plantas nativas, ainda não domesticadas)
  2. Substituição de fonte natural para redução de preço
  3. Geração de variantes estruturais para aumentar grau de proteção de propriedade intelectual (i.e. patentear). Essa estratégia é popularmente conhecida como "fármacos me-too" e tem conotação negativa de cópia. Trata-se quase um "plágio químico".

Há uma quarta alternativa, mas essa em geral se restringe aos laboratório de P&D. São variantes estruturais mais radicais, oriundas de química combinatórias para triagens de fármacos. Essas sim tendem a gerar saltos de inovação, me geral pela otimização de leads naturais ou novo mecanismos de ação, novos efeitos que o composto natural não apresenta.

Você já ouviu falar do CBD sintético?

Essa iniciativa ficou famosa no Brasil… sintetizar canabinoides é um desafio e tanto, e o "fantasma" do CBD sintético surgiu porque se descobriu que um grupo de pesquisadores brasileiros bastante influente havia patenteado um derivado sintético do CBD. A foto da patente está abaixo, e trata-se de um derivado estrutural "fluorado" do CBD.

Na minha perspectiva trata-se do caso 3 mencionado acima, mas há como defender que se trata de uma “otimização do lead natural” como os próprios autores defenderam inclusive em artigo publicado após a patente. Talvez por sorte, talvez por design, who knows. Na figura abaixo temos a imagem do HUF-101, que é como foi nomeada a variante estrutural do canabidiol (CBD) natural. A tabela abaixo, do artigo que mencionei mostra o ganho de potência declarado pra essa moléculas em alguns dos testes comportamentais relacionados à ansiedade/emocionalidade que se usa em laboratório de pesquisa. Pode-se ver que há um ganho entre 3 e 10 vezes de potência do HUF-101 em relação ao CBD. Em jargão da área se costuma dizer meia ou uma ordem de grandeza (pensando em escala logarítmica). É um ganho relativamente pequeno, mas é um ganho real em termos de dose utilizada.

Estrutura molecular do HUF-101, derivado fluorado do canabidiol (CBD) pesquisado pelo time da USP-RP junto com a Universidade Hebraica de Israel. A tabela foi retirada do paper e mostra o ganho de performance em ensaios de ansiedade e emocionalidade (https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4945002/).

Uma coisa que não "fecha" muito nessa história com a tática padrão de indústria farmacêutica é que a "otimização de lead" costuma ser em relação a alvos específicos. No caso do CBD isso é bem difícil de se realizar, porque, afinal, qual o principal mecanismo do CBD mesmo? Pois é. Não se consegue nem definir qual o mecanismo específico que leva aos efeitos terapêuticos desejados, e provavelmente são vários mesmo, então fica difícil otimizar. Em geral, se faz isso para 1) aumentar potência e 2) "limpar"o fármaco, evitando off-targets.

De qualquer maneira, tendo sido otimizado intencionalmente ou não, o fato é que o CBD fluorado parece ser um pouco mais potente para os efeito ansiolíticos e antidepressivos do canabidiol… já quanto aos potenciais efeitos adversos, ninguém sabe, precisa ser avaliado em testes de toxicologia como qualquer nova molécula ("new chemical entity" do FDA). Isso é que precisa ficar claro, uma substância como esses, mesmo que com uma modificação pequena, é uma nova molécula, não se trata mais de CBD…(e foi batizada como tal, tá tudo de acordo).

Logo que essa notícia veio a público, o pessoal do ativismo caiu matando de pau em cima. Logo apontaram o dedo pro suposto conflito de interesse do Prof. Crippa da USP-RP, o que é verdade, afinal, ele tem uma forte influência na opinião pública e pelo que se sabe é um forte apoiador do CBD isolado, puro, ou de qualquer outra maneira que seja bastante distante do THC (Há quem inclusive tenha apelidado o HUF-101 de Crippadiol hehe). Agora, um fato interessante é que o Prof. Mechoulam da Univ. Hebraica de Israel também é inventor da patente, diga-se de passagem, provavelmente seja o principal inventor, porque foi seu time que de fato criou a nova molécula. Os demais realizaram testes de triagem comportamental em laboratório que são bem lugar comum hoje em dia.

O fato é que o Prof Mechoulam é amplamente idolatrado pelo ativismo, afinal, foi ele quem descobriu o THC e o CBD, numa época em que se fazer esse tipo de pesquisa era totalmente undergound. Já nos conhecemos de bastante tempo, por ocasião dos congressos científicos, e realmente as histórias que ele conta dessa época são incríveis. Uma atitude totalmente "do it yourself", coisa de punk transgressor. Aí dá um nó na cabeça do ativista. Como assim, será que o "pai de todos" Prof Mechoulam pode ser o mesmo vilão diabólico que patenteou o CBD sintético? Sacanagem com o Crippa, que ganhou toda a fama de mal…

No que será que o Prof Mechoualm está pensando? Seja o que for, certamente é revolucionário. Ele não dá ponto sem nó e participou de praticamente todas as principais descobertas na área.

Apenas outro genérico

Esse caso acima ilustra uma estratégia de criar variantes estruturais. Mas há um outro caso bastante polêmico rolando aqui no Brasil, que é a geração de um CBD sintético como substitutivo de CBD purificado pela empresa farmoquímica paranaense Prati-Donaduzzi.

Eles estão conduzindo uma pesquisa junto com o mesmo grupo da USP-RP mencionado acima para o que deve ser o primeiro medicamento à base de canabidiol registrado no Brasil, batizado de Myalo. A diferença do Myalo em relação ao que já se tem no mercado através do mecanismo excepcional de importação criado pela ANVISA é que o Myalo tem uma composição praticamente contendo só CBD, diferente dos extratos "brutos" de cânhamo que também contém THC numa proporção que varia de 10:1 a 30:1. O grande hit do Myalo é ser puro, semelhante ao medicamento Epidiolex recentemente registrado pela empresa farmacêutica inglesa GW. E qualquer semelhança com outros produtos entrando no mercado brasileiro como o Purodiol talvez não sejam também mera coincidência.

Mas então qual a diferença entre o CBD sintético e o CBD purificado? A rigor, nenhuma a não ser a origem.

Estamos falando de uma empresa fazendo algo que parece inovador (registrar um medicamento), a partir da experiência mais do que consolidada dos pacientes, e com um produto muito muito semelhante ao de outra empresa, o Epidiolex. E a estratégia seguinte é substituir a matéria-prima natural (extrato purificado) por uma sintética. Nada de novo, é uma empresa de genérico, fazendo genérico. Há bastante controvérsia, no entanto, se a aposta no CBD sintético é a melhor do ponto de vista de potência e eficácia terapêutica.

Mas uma coisa precisa ser dita: a Prati deu um banho de competência em todas as outras empresas do mercado brasileiro, mostrando profissionalismo no bê-a-bá do desenvolvimento farmacêutico: ela padronizou e registrou um novo insumo farmacêutico ativo (IFA) a partir de seu derivado sintético. Esse é o primeiro passo de tudo no processo de P&D farmacêutico e agora ela está habilitada a fornecer para qualquer empresa que se instalar no Brasil. Houve outros pioneiros no Brasil, inclusive a empresa em que eu fui diretor e nenhuma delas, brasileira ou estrangeira, chegou ao ponto de padronização e profissionalismo de ter o seu IFA registrado. Muitas falaram, nenhuma fez. A Prati-Donaduzzi foi lá, fez, e botou todo mundo no bolso. Provavelmente serão mesmo os primeiros a registrar um produto para epilepsia à base de CBD, desde que os ensaios clínicos que estão em curso sejam bem sucedidos.

Mas tem canabinoide que é "do mal"

Importante pontuar que isso que comentamos acima é diferente, muito diferente de outra estratégia de outros canabinoides sintéticos, que aí sim são "uma coisa do capeta". Já ouviu falar do JWH-018? Pois é, um THC sintético, muito mais potente, e com vários efeitos colaterais que nem o próprio THC tem. É um copycat, um me-too do THC original e que não deveria existir fora do contexto experimental. E assim como eles, tem dezenas de outros canabinoides sintéticos, que infelizmente são comercializados pelo mercado negro / tráfico de drogas. Há quem diga que se a Cannabis fosse regulamentada, os sintéticos nunca teriam tido espaço no mercado. Pode ser. mas o fato é que eles existem, e tem gente passando mal demais pela toxicidade, inclusive algumas mortes já associadas a eles. Então, a rigor, piori sou contra a abordagem de canabinóides sintéticos… vale um post sobre isso.

Baseado de JWH-018 ou Spice. Isso não era nem pra existir. Xô Satanas.

Fora essas excrescências, descobri uma pesquisa brasileira bem recente, e que tem potencial. Ela foi publicada em 2019 como mestrado da Graziella dos Reis Rosa franco e descreve a síntese original de novos análogos do CBD. Aqui a dissertação completa defendida no Departamento de Química Orgânica da Universidade de Alfenas. Sabe porque eu gostei da dissertação da Graziella? Porque ela fez o bê-a-bá. E como aluna de mestrado fez mais do que muita empresa "calejada" do mercado de Cannabis jamais fez com seus produtos. testes in vitro relevantes, testes in vivo, avaliação de afinidade in silico e testes de absorção/distribuição (ADME) em farmacocinética. Quem sabe ela não tenha descobertos moléculas incríveis, mas aprendeu o mindset que vai fazer essa indústria realmente evoluir.

Não há dúvida de que uma parte da indústria de medicamentos canabinoides será ocupada por produtos sintéticos. Estamos falando de uma estratégia já consolidada pela indústria farmacêutica e certamente isso não vai mudar da noite pro dia. Se eu acredito que o próximo salto exponencial está por aí? Não, não acredito. Pau a pau, sabemos que os compostos da planta bem ou mal são seguros nos níveis em que eles são encontrados na natureza e utilizado por muito tempo pelos seres humanos, ainda há muito potencial para ser desvendado nos compostos naturais dessa planta, e é nisso que eu apostaria no futuro próximo. Mas eu acredito muito no potencial humano de criar coisas novas, e é só a partir da experimentação mais livre que vamos conseguir eventualmente nos depararmos com algo promissor. Copiar CBD em laboratório é um pouco tosco em termos de criatividade e inovação, mas pode servir para ganhos em produtividade. Se for para benefício dos pacientes terem acesso ao tratamento, no momento, acho que vale-tudo…

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal, um campo da medicina que está florescendo nos últimos anos. Às vezes, a gente se arrisca a falar de uma outra curiosidade menos explorada sobre este planta ou o mercado. Interessou? Siga acompanhando!

Referências pra quem quiser mergulhar no tema

https://patents.google.com/patent/WO2014108899A1

https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4945002/

https://medium.com/@fabriciopamplona/mais-cbd-%C3%A9-necessariamente-melhor-conhe%C3%A7a-os-efeitos-em-u-invertido-desse-incr%C3%ADvel-canabinoide-87709102a47e

https://medium.com/@fabriciopamplona/cbd-produzido-no-brasil-%C3%A9-poss%C3%ADvel-teve-novidade-essa-semana-b88339fabda3

https://medium.com/@fabriciopamplona/maconha-medicinal-versus-cbd-purificado-no-tratamento-da-epilepsia-tem-novidade-na-pra%C3%A7a-e14abdfe3561

https://medium.com/r/?url=https%3A%2F%2Foparana.com.br%2Fnoticia%2Fanvisa-autoriza-prati-a-produzir-insumos-a-base-de-canabidiol%2F

https://medium.com/r/?url=http%3A%2F%2F200.131.224.39%3A8080%2Fbitstream%2Ftede%2F1338%2F5%2FDisserta%25C3%25A7%25C3%25A3o%2520de%2520Graziella%2520dos%2520Reis%2520Rosa%2520Franco.pdf

https://en.wikipedia.org/wiki/Synthetic_cannabinoids

https://www.drugabuse.gov/publications/drugfacts/synthetic-cannabinoids-k2spice

--

--

Fabricio Pamplona
Tudo Sobre Cannabis

Neurocientista. Empreendedor. Muita história pra contar.