Faltou cultivo na regulamentação de Cannabis brasileira: Adianta comprar essa briga agora?

Lorenzo Rolim da Silva
Tudo Sobre Cannabis
9 min readDec 6, 2019

Quem segue notícias a cerca da indústria da Cannabis teve uma semana movimentada no início de Dezembro, tivemos quase simultaneamente a aprovação de uma regulamentação específica ao tema pela ANVISA e um precedente inédito: Uma empresa conseguiu processar o estado e adquirir o direito de cultivar Cânhamo Industrial.

Considerando que minha profissão é auxiliar empresas a se desenvolverem na indústria através de consultoria técnica e financeira, a maioria das pessoas pode pensar que eu estou comemorando a uma hora dessas em plena Sexta-Feira. A verdade é que eu sigo sem muito otimismo sobre o mercado e ainda estou digerindo tudo que aconteceu. Como o Fabricio Pamplona disse uma vez sobre mim: “Todo mundo comemorando e tu ai de cara fechada”. Pois é.

Manchete de uma das publicações do grupo Globo. Notícias assim foram a regra durante a última semana. Fonte: https://g1.globo.com/bemestar/noticia/2019/12/03/regulamentacao-de-produtos-a-base-de-cannabis-no-brasil.ghtml

Não me entendam mal, minha percepção é que a publicação da regulamentação foi amplamente positiva, qualquer país sério do mundo precisa ter pelo menos regras para os players poderem jogar, e agora o Brasil tem. Ponto pra ANVISA. O problema disso é que vamos ter essa regra no ano de 2020, enquanto a maioria dos outros países já aprova a Cannabis medicinal faz um tempo, e já tem muita empresa bem posicionada em todos os aspectos, seja cultivo, processamento, extração, formulação de medicamentos ou atividades comerciais como contato com pacientes e médicos.

E sejamos realistas, não é como se fosse proibido desenvolver medicamentos a base de Cannabis antes dessa regulamentação, tanto que já tínhamos até produto registrado com testes clínicos. A diferença é que a regra nova facilitou as coisas, embora todo insumo ainda seja necessariamente importado para processamento final aqui, o que vai favorecer quem atualmente já está fazendo dinheiro com a venda de óleos, principalmente de CBD, que são empresas americanas e canadenses que tem filiais no Brasil para promover as vendas e realizar contato com médicos prescritores.

Estranhamente, a regulamentação parece ter sido feita sob medida para essas empresas. Coincidência?

Mas, mais uma vez, apesar de tudo isso, ainda acho positivo. Eu mesmo muitas vezes durante os trabalhos de consultoria acabo sendo um broker de produtos, conectando pessoas da minha rede de contatos que tem operações de cultivo e produção de insumos com outras que querem vender produto final. E funciona bem, alguns países tem problemas para produzir comercialmente e muitos já tem operações muito desenvolvidas de cultivo e extração, o que gera possibilidades de comprar e vender mundo a fora, é o que vai acontecer no Brasil nos próximos anos, e pelo menos agora tem regras de controle de qualidade a serem seguidas, o que é crucial nessa indústria.

Meu palpite é que o mercado agora vai ser bastante competitivo, porque o preço dos insumos lá fora está despencando devido a alta produção (maior que a demanda em muitos lugares), isso deve gerar bastante oportunidades para empresas brasileiras importarem insumos baratos e comercializarem medicamentos acessíveis para a população.

Deixando esse assunto de lado, voltamos ao título desse artigo: cultivo de Cannabis.

Outra notícia que movimentou a semana foi a de que a empresa Terra Viva, sediada em Holambra, SP, conseguiu na justiça o direito de cultivar Cânhamo (Variedades de Cannabis com menos de 0,3% de THC, conforme explicado aqui e aqui).

Outra manchete que saiu em basicamente todos os veículos de jornalismo do Brasil na última semana. Fonte: Exame.

Fiquei muito feliz com esse fato, especialmente por que tive uma contribuição importante para que fosse alcançado, quando a ideia começou a tomar forma, alguns meses atrás, eu fui convidado a produzir um parecer técnico sobre a diferença na definição das variedades de Cânhamo, oferecer exemplos de outros países e explicar quais leis realmente regulam esta atividade no mundo.

A Anvisa e o MAPA se manifestaram de maneira contrária durante o processo, mas aparentemente o Juiz responsável pelo caso achou que a minha explicação fazia mais sentido que a deles.

Agora temos um precedente interessante no Brasil, empresas agrícolas vão ter abertura para seguir o mesmo caminho. A Terra Viva, ao meu ver, tomou uma decisão muito acertada indo na direção do Cânhamo industrial, que eu acredito ser o verdadeiro potencial da produção brasileira, afinal já somos líderes globais na maioria das commodities. Temos plena capacidade de produzir Cânhamo na rotação de cultura da agricultura tradicional brasileira e extrair sementes e fibras a um custo baixo (e canabinoides também). Esses mercados ainda precisam ser desenvolvidos e há muito trabalho a ser feito (principalmente no registro de cultivares junto ao MAPA e venda de sementes certificadas, que é talvez a maior oportunidade para quem quer produzir aqui).

Então quer dizer que você acha que produzir Cannabis medicinal não é negócio no Brasil Lorenzo? Calma, não é bem assim. Eu só não estou otimista porque chegamos, muito, mas muito, atrasados pra festa, basicamente já perdemos o parabéns, o bolo e já está quase amanhecendo.

A regulamentação da Anvisa veio resolvendo o problema de alguns mas criando uma dúvida na cabeça de muita gente: “então pode trazer de fora, processar e vender, mas produzir aqui não pode?”.

Vamos supor a seguinte situação, o Ministério da Agricultura proíbe a Soja mas Óleo de Soja é liberado. O Brasil passaria a importar sementes dos EUA e extrair o óleo aqui. Faz sentido? Para os diretores da Anvisa sim.

Mas meu ponto não é bem esse. Eu estou ativo no mercado internacional de Cannabis já faz algum tempo, e quando comecei só o que se falava era que a demanda era tão grande que a produção jamais iria alcançar (ou pelo menos eu ouvi falar que só alcançaria em 2025 ou 2030). O problema é que o mundo real é muito, mas muito mesmo, diferente dos business plans que a maioria das empresas utilizou para levantar dinheiro no mercado financeiro. Não demorou nem dois anos e já estamos chegando em situações de excesso de produção em outros países, e isso considerando que a maioria das empresas ainda está expandindo a capacidade produtiva, seja construindo estufas ou ampliando áreas de campo.

Vejamos o exemplo do Canadá, o país que foi pioneiro nessa história toda.

Crescimento do estoque de produtos a base de Cannabis em comparação com as vendas, em kg, no Canada. O Brasil vai conseguir entrar na disputa a essa altura? Fonte: Health Canada.

Eu trabalhei diretamente ligado a uma grande empresa canadense, no início da minha carreira na indústria. Lembro perfeitamente que na época (início de 2017), só se falava em falta de produto, alta demanda e expansão de capacidade de produção. Tanto que foi mais ou menos nessa época que a maioria dos canadenses investiu pesadamente em países como Colômbia, Uruguai e outros, sob a justificativa de que precisavam produzir mais e mais barato.

Passados dois anos (quase 3), vemos que a realidade é bem diferente da história contada, mesmo com a abertura do mercado recreativo no Canadá, as vendas estão estagnadas (quem diria que nem todo mundo fuma maconha?), e os estoques de produção estão cada vez mais lotados. Já temos notícias de empresas que estão literalmente descartando estoque para abrir espaço para o que está sendo produzido, além de vários casos de empresas que postam os resultados financeiros do trimestre e o mercado reage com pessimismo e as ações despencam devido a queda brusca nos preços e vendas decepcionantes.

Gráfico demonstrando o desempenho das ações da maior empresa canadense, a Canopy Growth, no ano de 2019. Fonte: Google Financial.

Observando o gráfico de valor das ações da Canopy Growth é possível observar que o mercado não anda nada bem apesar do otimismo imperante no Brasil. Uma ação que chegou a bater 52,74 dólares no início do ano hoje está sendo comercializada por 18,60, sendo que o mínimo foi 13,81. Alguns diriam que a bolha estourou.

É por isso que tento ser o mais realista possível em relação ao Brasil mesmo quando todo mundo está comemorando como se tivéssemos erradicado a fome ou descoberto a cura do câncer.

Lá fora o mercado já está entendendo que o comércio não é assim tão fácil, que nem todo mundo é consumidor regular e que se planejou produzir, e se gastou milhões em Capex e Opex, sem um planejamento muito realista. E adquirir mais consumidores é uma tarefa muito difícil e custosa. Mesmo em lugares que permitiram o uso recreativo (prefiro o termo “uso adulto”) o mercado reage de maneiras não muito intuitivas, como por exemplo, as evidências de que o uso adolescente decaiu nesses lugares (em termos de negócios significa menos consumidores). Quem diria que tornar a maconha mainstream faria os jovens a verem como uma coisa menos legal e não teriam motivação para usar regularmente?

Alguns estudos já foram publicados comprovando a tese de que em locais onde o uso foi legalizado e a educação sobre o tema foi priorizada, o uso entre jovens decaiu. Fonte: CNN.

Além do que, a competição é violenta, existem muitas empresas hoje no Canadá e nos EUA (não quero nem falar em Europa, Colômbia e Oceania) que estão maximizando suas produções e se aprimorando nas técnicas de cultivo (hoje já tem gente que produz a menos de 10 centavos de dólar a grama), ampliando suas operações de extração e controle de qualidade, e adquirindo um know-how grande sobre essas atividades.

É nesse contexto que entra minha pergunta: Adianta comprar essa briga agora?

É bem verdade que chegamos atrasados para a festa. Empresas que desejem ser genuinamente brasileiras e que queiram começar do zero por aqui, a meu ver, tem muito pouca chance de sucesso. Minha recomendação é encontrar parceiros, ou consultores, que tenham experiência na indústria adquirida nos últimos anos, que já tenha variedades que se sabe como cultivar e atingir a produtividade esperada, e que tenham domínio sobre as técnicas de extração. Basicamente, abrir uma filial de uma empresa americana ou canadense aqui tem mais chance de sucesso do que uma empresa que queria ser totalmente brasileira.

Eu apostaria na produção de Cannabis no Brasil se tivéssemos um mercado recreativo, que hoje dizemos “uso adulto”. Ai sim, até eu largaria tudo e montaria uma operação de cultivo e venda em alguma cidade de praia por aí. Mas sabemos muito bem que essa é uma realidade que está muito distante do Brasil (gostaria de estar errado nessa, mas acho difícil).

E pra completar a Anvisa jogou a possibilidade de cultivar no Brasil para debaixo do tapete, e agora quem sabe quando isso vai ser uma realidade de fato no Brasil? Quando for uma realidade, vai adiantar? Vamos ter como começar nossa curva de aprendizado de cultivo enquanto tem gente produzindo a menos de 10 centavos de dólares a grama de flor seca? (normalmente em início de operação, já com certa experiência, se projeta uma produção com custo médio de 2 dólares a grama, vinte vezes mais).

Por isso eu ressalto o ponto, o Brasil deveria investir na produção de Cânhamo, que sim, tem seus desafios, mas é muito mais próximo da realidade que o produtor rural brasileiro está acostumado, produzir grãos e fibra a baixo custo. De certa maneira temos até a capacidade de processamento já instalada, uma vez que seria muito similar a Soja nesse sentido. Em questão de Fibras não temos como absorver uma produção grande hoje, mas também é bem menos desafiador do que uma produção com fins medicinais.

Basicamente, é isso que temos pra hoje. Um país que, apesar do imenso potencial de produção, decidiu se posicionar como importador. E que mesmo que nos próximos anos decida entrar no jogo, já vai entrar com extrema desvantagem em relação aos demais.

Por essas e outras, e me desculpem por isso, não consigo comemorar como vi alguns players da indústria nacional fazendo nos últimos dias.

Minha aposta está no Cânhamo industrial, e essa é uma que vou de all-in por que sei que podemos dominar o mercado mundial com bastante facilidade. Agora o que nos resta é sentar e observar quando vamos poder produzir comercialmente. Literalmente, tem que ter fé.

Lorenzo Rolim da Silva, Engenheiro Agrônomo, trabalha na indústria da Cannabis há 5 anos e atualmente é consultor internacional para projetos de produção de Cannabis, medicamentos e outros produtos em diversos países da Europa, América do Norte, América Latina, África e Oceania.

Atualmente escreve neste Medium a fim de trazer um novo olhar para a Cannabis dentro do Brasil e, com sorte, mudar alguma coisa.

O principal objetivo deste Medium é trazer informação de alto nível a respeito de ciência e tecnologia no âmbito da Cannabis medicinal e industrial. Interessou? Siga acompanhando!

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