Knackers e o ‘Bolsa Família’ irlandês

Leonardo Pereira
Uma Pera
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4 min readSep 8, 2015

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Vou atropelar os assuntos mais uma vez. Este era um tema para ser explorado futuramente, mas cresceu demais o interesse dos brasileiros pela questão da violência em Dublin graças à reportagem que o UOL publicou sobre isso recentemente, então decidi ir atrás do personagem mais temido pelos intercambistas: o tal do knacker.

Existe bastante ruído dentro da comunidade brasileira a respeito dos knackers e muita gente tende a ver os programas de auxílio financeiro do governo irlandês como culpados pela criação e manutenção dessa camada da sociedade, mas não é bem assim.

Um pouco de história

Os primeiros registros de uso da palavra knacker vêm dos anos de 1800. Originalmente ela identificava uma pessoa cuja profissão era “aposentar” animais que não serviam mais para trabalhar. Depois de matá-los, esse sujeito transformava os animais em produto. Por exemplo, a carne de um cavalo poderia ser usada para alimentar outros bichos; ossos viravam fertilizantes; o couro acabava como cola.

Há uma passagem em “A revolução dos bichos”, de George Orwell, que conta com a aparição de um knacker em sua função de origem. Você só percebe isso se ler a obra em inglês, mas a imagem lá de cima é uma dica pra quem ficou curioso.

Não era um serviço agradável, portanto as pessoas que o executavam geralmente viviam às margens da sociedade, o que talvez tenha contribuído para a transformação da palavra em algo tão negativo quanto atualmente. Entretanto, ela pode ser usada de outras formas: “knackered” também significa “cansado”, por exemplo.

Na Irlanda

Hoje a palavra tem basicamente dois significados, ambos pejorativos e preconceituosos, portanto, não a use, pois ninguém aprecia ser chamado de knacker.

Um deles é mais comum fora dos centros urbanos e serve para identificar os Pavee, uma etnia nômade originária da Irlanda que tem até uma língua própria, a shelta. Eles também são chamados de ciganos ou “viajantes irlandeses” e podem ser encontrados nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, mas sempre com alguma descendência daqui.

O segundo significado é o que tanto preocupa quem mora em Dublin. Knacker, nas áreas metropolitanas, é o apelido dado ao sujeito que pertence à camada mais pobre. Eles têm trejeitos próprios, geralmente andam com roupas parecidas (moletons cinza e tênis) e falam num linguajar tão particular que até parece ser corruptela do inglês local.

Os violentos

É aqui que começa a confusão. Uma parcela considerável da população carente de Dublin é usuária de drogas e alguns deles — junto com uma parcela não usuária — pratica pequenos delitos pelas ruas centrais da cidade. Esse é o pessoal que causa pânico nos brasileiros, mas também incomoda intercambistas de outras nacionalidades, imigrantes e, claro, os irlandeses.

Como acontece com o crack no Brasil, aqui a heroína é a droga que faz mais sucesso entre os pobres, já que tem um valor baixo e um efeito forte e rápido. E, como no Brasil, é fácil identificar esses usuários, uma vez que eles perambulam constantemente entorpecidos, quase como se fossem zumbis.

Eu conversei com um acadêmico daqui sobre isso e ele me explicou que a heroína explodiu na Irlanda na década de 1980, quando a população andava em crise. Contou, ainda, que a Irlanda chegou a ter a heroína mais barata da Europa, o que pode ter ajudado a formar o quadro atual, em que as estatísticas apontam este como um dos países com maior quantidade de usuários dentro da Europa. Tratar vício em heroína é tão complicado quanto tratar o do crack e a Irlanda tem se mostrado sistematicamente ineficaz no combate ao problema (saiba mais aqui).

O ‘Bolsa Família’

Como em geral os consumidores dessa droga pertencem à parcela mais miserável da sociedade, boa parte deles é contemplada pelos programas de apoio financeiro do governo. São cerca de 200 euros semanais que eles, obviamente, usam também para comprar drogas; e isso não significa que o sistema seja ruim. “Todo sistema é corruptível”, me disse o acadêmico (cujo nome eu omito porque a conversa não era explicitamente uma entrevista).

O “Bolsa Família” daqui foi implantado pelo governo após o fim do domínio britânico, quando a maioria da população estava quebrada. Foi a forma encontrada para resolver rapidamente o que era praticamente uma epidemia de pobreza, e tem dado certo desde então — tanto que a Irlanda se tornou um dos países melhor desenvolvidos do mundo.

Ainda há muita gente que depende dessas verbas para se manter e isso tende a piorar — em parte devido ao aumento de intercambistas no país. Para se ter uma ideia, mais de 3.000 adultos entraram no serviço de acomodação emergencial de Dublin entre abril e junho deste ano. É o número mais alto da história. Muitos precisaram disso porque, enquanto o valor do auxílio-moradia permanece inalterado desde 2013, o setor imobiliário subiu os aluguéis da cidade em 20,3% no mesmo período; ou seja, muita gente ficou mais pobre com o passar de dois anos.

E o que aconteceu nos últimos dois anos? Um aumento considerável na quantidade de estudantes de outras nacionalidades na Irlanda. Quem está à procura de lugar pra morar sabe do que eu estou falando: tem gente pagando aluguel mensal de 300 euros pra dividir quarto com uma multidão de pessoas.

Em qualquer país do mundo as crises financeiras tentem a jogar a população mais afetada contra os estrangeiros e aqui não é diferente. Felizmente, a Irlanda não tem um problema sério de xenofobia, mas a nossa comunidade dá bastante atenção ao tema "knacker" — talvez porque seja uma situação nova para a maioria de nós. Isso acabou fazendo com que o problema pareça maior do que realmente é.

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