Lost in translation

Leonardo Pereira
Uma Pera
Published in
4 min readOct 14, 2016

Ou: acho que me tornei um esnobe pretensioso

Certo dia, durante meu período universitário (2008–2011), eu conversava com uma conhecida quando ela citou o filme "Legally Blonde". Não entendi e fiz cara de paisagem. Aliás, fiquei sem entender até que ela mesma se propôs a esclarecer: no Brasil, o filme se chama "Legalmente Loira"… Nem é uma associação difícil de se fazer, mas naquela época eu tinha o pensamento de que não era obrigado a saber inglês; afinal, se um gringo quisesse falar comigo, ele que aprendesse o português. Seguindo tal lógica, automaticamente classifiquei a pessoa como esnobe, e o fato de que ela já tinha morado em Londres só piorava a situação.

Eu mantive essa mentalidade até arrumar meu primeiro estágio e perceber que era o único do escritório que não falava inglês. Eu já cursava o segundo ano no curso de jornalismo e só então me toquei que vinha sendo obtuso a minha vida toda. Aí fui correndo para dentro de uma Wizard, de onde pulei para o Yázigi, de onde parti para as aulas particulares. Foi bem a tempo, pois na época das aulas particulares comecei a cobrir eventos internacionais. E hoje sou eu que moro na Europa e cito os filmes pelo nome original.

Mas não foi automaticamente que eu deixei de considerar a conhecida uma esnobe. Na verdade, surpreendentemente a constatação veio só anteontem (12/10), depois que eu assisti a "Lost in Translation" (no Brasil, "Encontros e Desencontros"). Agora não sei se foi ela que perdeu o status ruim ou se eu é que passei para o lado dos presunçosos.

Tudo bem, as traduções brasileiras são motivo de controvérsia eterna, mas mesmo assim eu ainda chamo o "Ocean's Eleven" de "Onze Homens e um Segredo". Foi só depois de vir morar em Dublin que as coisas começaram a mudar. "Annie Hall", por exemplo, jamais conseguirei chamar de "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa", uma vez que só o vi aqui. Foi aqui também que li "The Picture of Dorian Gray" e "The Catcher in the Rye", que, para mim, não são "O Retrato de Dorian Gray" e "O Apanhador no Campo de Centeio". Mas há alguns furos nesta minha nova situação. Por exemplo, aqui eu li "Animal Farm", mas eu já o tinha lido duas vezes no Brasil como "A Revolução dos Bichos" — aí, não sei se por força matemática ou por causa da ordem de chegada, mas neste caso a tradução é a que prevalece.

A ex-esnobe da minha história foi a primeira pessoa com quem convivi que já tinha morado em outro país, e aquilo era uma novidade enorme para o Leo do fim dos anos 2000, já que ele achava que só ricos podiam morar fora. Eu nem sabia ainda, mas passar por uma faculdade expandiria drasticamente a minha percepção da vida, e olha que eu estudei na Unip, uma universidade para quem, como eu, tinha limitações de renda. Para se ter uma ideia de como as coisas mudaram, eu lembro de ficar embasbacado quando outra garota da minha minha sala contou que passava as férias de fim de ano em Nova York, já que era algo que estava incrivelmente fora da minha realidade. Só que pouco tempo depois eu consegui fazer o mesmo não uma, mas duas vezes: no fim de 2012 e no fim de 2014 [1][2].

É tudo culpa da faculdade. Sem ela eu dificilmente teria condições de viajar, de alugar apartamento, morar fora do Brasil. Mas, mais importante, sem a faculdade eu talvez não tivesse passado por essa expansão mental que me fez perceber que o mundo é maior do que eu imaginava. Talvez eu esteja tentando justificar algum senso de superioridade, mas a verdade é que aquele Leo sequer conseguia entender por que uma pessoa brasileira teria a petulância de chamar uma obra pelo seu nome original, e não pelo que foi lhe dado no Brasil. O Leo de hoje não só entende essa situação como ainda acha mais fácil. Afinal, eu moro em Dublin há mais de um ano, o que significa que todos os filmes que saíram a partir de agosto de 2015 chegaram ao meu conhecimento com seus nomes em inglês. Foi precisamente essa constatação que me atingiu anteontem. Talvez, pensei eu, a tal esnobe estivesse morando fora quando "Legalmente Loira" foi lançado, ou talvez ela só o tenha assistido durante esse período, por isso conhece o filme como "Legally Blonde".

Achei isso curioso porque foi mais uma das várias vezes em que eu me peguei na curva. Outra dessas situações está registrada aqui no blog através de um texto em que eu conto como é ser o cara que não bebe, destacando inclusive o quanto eu odiava cerveja. Acontece que mais tarde eu descobri que odeio cerveja pilsen, mas adoro a do tipo stout. Pelo menos eu sei que isso acontece com todo mundo. Tá aí o Facebook mostrando diariamente como a nossa cabeça muda dentro de um, dois, cinco anos.

E tudo é cíclico, né? Aposto que quando eu voltar de vez para o Brasil o esnobe serei eu. Em uma conversa qualquer, usarei "The Catcher in the Rye" como referência e o interlocutor fará cara de paisagem. Aí eu me toco e esclareço: "'O Apanhador no Campo de Centeio', sabe?"

Então o outro pensa: puts, que mala.

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