Carta de notícias da U R U B U .002
o afeto reivindica seu tempo
Já não é mais novidade que os ânimos estão alterados. A situação sem precedentes que vivemos indica que a nossa geração estava um tanto vaidosa. Não imaginávamos que experimentaríamos um grande medo ou risco de morte em massa, mas a realidade se impõe e dessa vez implacavelmente.
A perspectiva do isolamento sem prazo para encerramento e de um futuro com mais incertezas do que definições, modifica nossos modos de agir e reagir. E uma vez que as emoções são naturalmente cumulativas e desordenadas, a compreensão do fato de que existe um vírus fatal formado por partículas invisíveis super destrutivas, permite que criemos novos exercícios de autopreservação ao mesmo tempo em que restringe e transforma muitas possibilidades de afeto.
_____ carentena
Há quem sofra nesse momento com a falta de companhia e, para lidar ou solucionar essa questão, optam pelas muitas opções de apps de encontro. Estes, logo nos primeiros meses da pandemia, apresentaram um aumento mundial de 21% no engajamento [1] e no tempo de interação [2], que subiu de 30 para 90 minutos.
Uma enquete feita pelo Happn no mês de março mostrou que, apesar de 35% preferirem os encontros presenciais. 56% acreditam que a situação permitiu conversar por mais tempo no aplicativo para, consequentemente, conhecer melhor o crush e aumentar o vínculo afetivo [3]. O Tinder, que tem a reputação de possibilitar encontros mais íntimos, escolheu liberar uma função até então premium para que as pessoas possam se sentir menos sozinhas: por meio do que eles nomearam de “passaporte global”, existe agora a possibilidade de conversar com pessoas de qualquer cidade no mundo.
Com essas mudanças, algumas pessoas estão sentindo menos pressão em buscar companhias para compartilhar o excesso de tempo livre. Outras estão muito seletivas e com medo de encontrar a pessoa perfeita no que elas consideram ser o momento errado [4]. Para driblar qualquer pressão, usam a criatividade para garantir a desinibição e bons momentos: criando playlists, desenhando um ao outro, assistindo e tentando entender os TikTokers, lendo e discutindo o mesmo livro, degustando vinhos [5].
Há, portanto, uma mudança na “cultura do flerte” a partir da diminuição e flexibilidade de fatores como exigência, expectativa, busca por tipos ideais. Agora, para além de pessoas ou idealizações, estamos finalmente desejando e oferecendo conexão emocional e tornando os apps mais que uma plataforma de busca ou sorte, mas “a reafirmação do desejo, a busca por companhia, a necessidade de troca e a possibilidade de desvendar uma nova faceta de si mesmo”, confirma Marina Roale, coordenadora de pesquisa na Consumoteca e embaixadora do Identidades [6].
Fomos convidados a rever comportamentos e a romper com o imediatismo na resolução de nossas questões. A suspensão dos deslocamentos infla alguns desejos pela possibilidade da transgressão e realização do proibido, mas em razão da liberdade coletiva e de nossa saúde individual, estamos em um confronto direto com a realidade e a essência do que sentimos. Percebemos, com os apps, necessidades e saudades (da família, do crush) que estamos testando nossos limites de interação tempo-espaço e nos deparando com a possibilidade de que, hoje, conectividade pode definir (a sensação de) presença: uma vez que a distância física não tem o poder de definir o distanciamento emocional. É quase irônico, mas ter ou ser alguém oferecendo tempo com intenção pode se tornar mais potente e profundo do que o próprio encontro.
_____ hiperconvivência
Enquanto os solteiros enfrentam a dificuldade de viabilizar seus desejos, quem leva a vida a dois tem experimentado dificuldades por ter de ficar o tempo todo sob o mesmo teto: a convivência forçada pode ter efeitos incríveis ou devastadores. A transformação da relação e associação das nossas casas como “um refúgio” para um “lugar comum” pode proporcionar resultados como a diminuição da libido por motivos como o relaxamento da higiene e da aparência, perda de autoestima, desgaste por excesso de convivência com parceiro e família, além de outras preocupações e angústias mais graves.
A hiperconvivência somada ao superfluxo de imagens e informações que ficam arquivadas e em suspensão em nosso cérebro nos induz a um estado de saturação e exaustão que pode nos levar a um desejo profundo de autoconhecimento e, simultaneamente, à explosão de conflitos internos e com o outro: infelizmente, o confinamento aflora sentimentos como a agressividade, pelo acúmulo de fobias, ansiedade, medo, hipocondria, alcoolismo, antes liberados no convívio social e agora internalizados e projetados no outro em diversos níveis.
Em São Paulo, a violência doméstica apresenta aumento de 44,9% no primeiro mês de isolamento [7], com as chances de os números serem bem maiores pela dificuldade (e perigo real de contágio) de as vítimas se deslocarem para realizar a denúncia e, também, de terem retiradas de si a possibilidade da comunicação por abuso de poder, fragilidade material e abuso psicológico. essa é a pandemia que acontece nas sombras, confirma Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres [8].
É latente o risco de se perceber que os laços são frágeis ou tóxicos, mas por outro lado é imenso o conforto de descobrir novos valores com quem se divide o confinamento e o tempo, nosso recurso mais incerto e precioso. A principal dificuldade para ambos costuma ser aceitar o fato de os dois (ou mais) estarem em casa, mas não necessariamente disponíveis em tempo integral para os desejos e expectativas do outro, já que essa presença e dinâmica não faziam parte desse novo-velho cenário abruptamente ressignificado. O abandono, portanto, de uma norma norteadora e da zona (física e mental) de conforto evidenciam nosso verdadeiro eu, potencializando precisamente o pior e o melhor de cada um.
Frente a potentes revisões sobre o que estrutura tudo o que sentimos e como sentimos, são retirados os filtros e tensões socioemocionais que se misturavam à quantidade de imposições de um estilo de vida adestrado, apressado e repleto de compensações diárias, individualmente violentas. Coletiva e diariamente, por longo período, compactuamos com a produção de uma desconexa e irreal relação com a essência de nossos desejos e é urgente a posse da consciência de que somos responsáveis por tudo o que diariamente afetamos.
_____ quanto dos nossos dias eram sobre nós e o que verdadeiramente sentíamos?
A necessidade de estar em confinamento é, além de tudo, um movimento de aproximações e da possibilidade de recuperação e atualização de nossas habilidades socioemocionais. Assim, o afeto reivindica seu tempo e alarga suas arestas. Somente através do amor coletivo é que poderemos articular politicamente a mudança necessária para superar esse momento de crise. Amor demora. E é preciso querermos uns aos outros um pouquinho mais. Ao pensar no bem comum é mais fácil dar e receber, mais fácil parar de se sentir sozinho(a), mais fácil escolher companhia a partir da liberdade e não da necessidade, e diversificar afetos [9].
13 de maio de 2020
Monique Lemos, pesquisadora e estrategista na URUBU.
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a complementar: mais sobre a ideia de casa como refúgio (ou não), aqui.
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[1] Online dating amid coronavirus: Longer conversations and a ‘pivot’ to video dates. MarketWatch, 2020.
[2] Efeito Covid-19: aplicativos de relacionamento têm “boom” de usuários e acessos. iG Delas, 2020.
[3] Como casais estão se virando com isolamento imposto pela pandemia de covid-19. GauchaZH, 2020.
[4] How 8 Tinder Members Are Dealing And Dating During COVID-19. Swipe Life, 2020.
[5] How COVID-19 killed hookup culture and saved romance. Fast Company, 2020.
[6] Aplicativos de relacionamento registram crescimento durante pandemia. Consumidor Moderno, 2020.
[7] SP: violência contra mulher aumenta 44,9% durante pandemia. Agência Brasil, 2020.
[8] Violência contra as mulheres e meninas é pandemia das sombras, afirma diretora executiva da ONU Mulheres. ONU Mulheres, 2020.
[9] Tradução livre da introdução do livro “Lo romántico es político” de Coral Herrera Gómez.
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English Version
U R U B U’s newsletter. 001
affection claims its time
It is no longer news that moods are altered. The unprecedented situation we are experiencing indicates that our generation was somewhat vain. We did not imagine that we would experience a great fear or risk of mass death, but the reality prevails and this time relentlessly.
The prospect of isolation with no deadline for closure and a future with more uncertainty than definitions changes our ways of acting and reacting. And since emotions are naturally cumulative and disordered, understanding the fact that there is a fatal virus formed by super destructive invisible particles, allows us to create new exercises of self-preservation while restricting and transforming many possibilities of affection.
_____ carentena
There are those who suffer at the moment with the lack of company and, to deal with or solve this issue, they opt for the many options of dating apps. These, in the first months of the pandemic, showed a worldwide increase of 21% in engagement [1] and in interaction time [2], which rose from 30 to 90 minutes.
A poll made by Happn in March showed that despite 35% prefer face-to-face meetings. 56% believe that the situation allowed them to talk for a longer time on the app, consequently to get to know the crush better and increase the affective bond [3]. Tinder, which has a reputation for enabling more intimate encounters, has chosen to release a hitherto premium function so that people can feel less alone: through what they have called a “global passport”, there is now the possibility to chat with people of any city in the world.
With these changes, some people are feeling less pressure to look for companies to share their excess free time. Others are very selective and afraid to find the perfect person at what they consider to be the wrong time [4]. To circumvent any pressure, they use creativity to guarantee disinhibition and good times: creating playlists, drawing each other, watching and trying to understand TikTokers, reading and discussing the same book, tasting wines [5].
Therefore, there is a change in the “culture of flirting” due to the decrease and flexibility of factors such as demand, expectation, search for ideal types. Now, in addition to people or idealizations, we are finally wishing and offering emotional connection and making apps more than a search or luck platform, but “the reaffirmation of desire, the search for a company, the need for exchange and the possibility of unraveling a new facet of yourself “, confirms Marina Roale, research coordinator at Consumoteca and ambassador for Identidades [6].
We were invited to review behaviors and to break with immediacy in resolving our issues. The suspension of displacements inflates some desires for the possibility of transgressing and carrying out the forbidden, but due to collective freedom and our individual health, we are in a direct confrontation with reality and the essence of what we feel. We realized, with the apps, needs and longings (of the family, of the crush) that we are testing our limits of time-space interaction and facing the possibility that, today, connectivity can define (the sensation of) presence: since physical distance does not have the power to define emotional distance. It is almost ironic, but having or being someone offering time with intention can become more powerful and profound than the encounter itself.
_____ hyper-coexistence
While singles face the difficulty of making their desires feasible, those who lead the life of two have experienced difficulties because they have to stay under one roof all the time: forced coexistence can have incredible or devastating effects. The transformation of the relationship and association of our homes as “a refuge” to a “commonplace” can provide results such as decreased libido for reasons such as relaxation of hygiene and appearance, loss of self-esteem, wear and tear due to excessive living with a partner and family, in addition to other more serious concerns and anxieties.
Hyper-coexistence added to the overflow of images and information that are stored and suspended in our brain induces us to a state of saturation and exhaustion that can lead us to a deep desire for self-knowledge and, simultaneously, to the explosion of internal conflicts and with each other: unfortunately, confinement touches on feelings such as aggressiveness, due to the accumulation of phobias, anxiety, fear, hypochondria, alcoholism, previously released into social life and now internalized and projected onto the other at different levels.
In São Paulo, domestic violence has increased by 44.9% in the first month of isolation [7], with the chances that the numbers will be much higher due to the difficulty (and real danger of contagion) of the victims moving to make the complaint and, also, of having removed the possibility of communication due to abuse of power, material weakness and psychological abuse. this is the pandemic that happens in the shadows, confirms Phumzile Mlambo-Ngcuka, executive director of UN Women [8].
There is a latent risk of realizing that ties are fragile or toxic, but on the other hand, there is immense comfort in discovering new values with whom confinement and time are shared, our most uncertain and precious resource. The main difficulty for both is usually to accept the fact that the two (or more) are at home, but not necessarily available full time for the other’s wishes and expectations since this presence and dynamics were not part of this new-old scenario abruptly resignified. The abandonment, therefore, of a guiding norm and of the zone (physical and mental) of comfort show our true self, potentiating precisely the worst and the best of each one.
In the face of powerful revisions about what structures everything we feel and how we feel, the filters and socio-emotional tensions that mingled with the number of impositions of a trained lifestyle hurried and full of daily compensations, individually violent, are removed. Collective and daily, for a long period, we cooperate with the production of a disconnected and unreal relationship with the essence of our desires and it is urgent to have the awareness that we are responsible for everything that we daily affect.
_____ how much of our days were about us and what did we truly feel?
The need to be in confinement is, after all, a movement of approximations and the possibility of recovering and updating our socio-emotional skills. Thus, affection claims its time and widens its edges. Only through collective love will we be able to politically articulate the necessary change to overcome this moment of crisis. Love lingers. And we need to want each other a little bit more. When thinking about the common good, it is easier to give and receive, easier to stop feeling alone, easier to choose a company based on freedom and not on need, and to diversify affections [9].
May 13, 2020
Monique Lemos, researcher, and strategist at URUBU.
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to complement: more about the idea of home as a refuge (or not), here.
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[1] Online dating amid coronavirus: Longer conversations and a ‘pivot’ to video dates. MarketWatch, 2020.
[2] Covid-19 effect: relationship apps “boom” users and accesses. iG Delas, 2020.
[3] How couples are coping with isolation imposed by the COVID-19 pandemic. GauchaZH, 2020.
[4] How 8 Tinder Members Are Dealing And Dating During COVID-19. Swipe Life, 2020.
[5] How COVID-19 killed hookup culture and saved romance. Fast Company, 2020.
[6] Relationship apps record growth during the pandemic. Modern Consumer, 2020.
[7] SP: violence against women increases 44.9% during a pandemic. Agência Brasil, 2020.
[8] Violence against women and girls is a shadow pandemic, says UN Women Executive Director. UN Women, 2020.
[9] Free translation of the introduction to the book “Lo romántico es politico” by Coral Herrera Gómez.
