Será que todos livros de fantasia parecem iguais?

Uma análise da comunicação visual da ficção fantástica (Parte 1)

Felipe Pierantoni
Time de Experiência Globo
7 min readJun 11, 2016

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Sabe aquela brincadeira “pense numa ferramenta e numa cor”? É claro que você sabe, porque todo mundo já brincou disso. E todo mundo respondeu “martelo vermelho”.

Pois bem. Vamos fazer algo diferente dessa vez:

Pense na capa de um livro de fantasia.

E aí? Sua capa tinha um dragão? Uma espada? A paisagem épica de um castelo? E o título tinha uma fonte meio medieval?

Não posso provar que as pessoas pensam em capas parecidas (ainda não fiz esse experimento), mas apostaria minhas fichas nisso. Há algum tempo sinto que a comunicação visual dos livros de fantasia obedece determinados padrões e lugares-comuns.

Quando chegou a hora de projetar meu próprio livro, decidi tirar isso à prova.

Sobre mim

Antes de tudo, sou fã de literatura fantástica. Já que estamos falando de clichês, admito que sou um deles — fui uma daquelas crianças que começou a ler fantasia por causa de Harry Potter e daí não parou mais.

Também sou autor. Após ler tantos livros, decidi que escreveria um deles. 10 anos depois, terminei meu projeto: O Diário Rubro, que começou como uma saga e acabou se transformando num livro único e enorme (mais sobre isso no site e na parte 2 desse texto).

Por último, sou designer. Isso não só me dá um interesse natural pela comunicação visual do meu gênero favorito, como as ferramentas e a motivação para realizar o projeto editorial do meu próprio livro. No projeto de um livro, como em qualquer outro projeto de design, primeiro é preciso compreender o contexto do produto, para então projetar como destacá-lo (se esse for o objetivo).

Sobre esta análise

A partir da minha hipótese de que as capas de fantasia seguem determinados padrões, meu objetivo era categorizar essas capas e descobrir quais são as soluções mais comuns.

Qual é o “martelo vermelho” das capas de ficção fantástica?

É importante frisar que o comum não é necessariamente negativo. Clichês são importantes para estabelecer padrões, definir expectativas e identificar um produto como integrante do seu segmento. Graças a eles, você consegue bater o olho numa estante e saber quais livros são de fantasia — e algumas das capas mais clichês dessa análise são minhas favoritas.

O problema é o exagero do lugar-comum, quando tudo parece igual, nada chama a atenção e novos livros parecem mais do mesmo.

Sobre a metodologia

Para categorizar as capas de fantasia, eu precisava de uma amostra. Meu plano original era utilizar alguma lista estruturada — como a lista de mais vendidos ou de livros de fantasia mais populares no Skoob. Mas isso deturparia os resultados — o leitor de fantasia não é exposto só aos melhores livros ou mais populares.

Para uma amostra mais democrática, selecionei 100 livros de fantasia da minha coleção. Edições diferentes ou estrangeiras do mesmo livro foram permitidas, contanto que suas capas fossem diferentes.

E aqui está o resultado…

Os 5 tipos de capas de livros de fantasia

1) Cena específica: 36%

A categoria mais popular, impulsionada por sagas literárias com vários volumes (Desventuras em Série, estou olhando para você).

A capa representa uma cena com personagens do livro interagindo num cenário da história. Quase sempre a cena acontece no livro, mas isso não é uma regra, já que algumas são adaptações. Personagens e cenário estão bem integrados, por mais simples que possa ser o cenário — e nós estamos assistindo a tudo de perto. Em muitos casos, a cena é repleta de ação e movimento.

2) Elemento icônico: 20%

O foco da capa está em um ou mais objetos, símbolos ou criaturas marcantes da história. Espadas, escudos e dragões são alguns dos exemplos mais comuns. O elemento está em destaque, bem separado do fundo, que costuma ser apenas um plano secundário.

3) Paisagem épica: 18%

O cenário da história é o destaque da capa, quase sempre visto de longe ou do alto. Personagens da história podem até aparecer, mas são pouco importantes diante da grandeza e da imponência da paisagem. Não dá nem para discernir suas feições — se você pudesse, provavelmente a capa seria uma cena específica e não uma paisagem épica.

4) Personagem em destaque: 15%

Personagens são os protagonistas da capa. Diferente da categoria de cena específica — onde interagem com o cenário — , aqui eles estão destacados do fundo. Como não há essa interação, as capas tendem a ser mais estáticas — como se os personagens estivessem posando para a foto.

Dragões e outras criaturas valem como personagens se forem considerados assim em suas respectivas histórias.

5) Textura, padronagem ou tipografia : 11%

A categoria menos popular — e mais heterogênea também. A capa costuma ser mais abstrata e menos ilustrada. Quase sempre, o título do livro ganha mais relevância.

Algumas séries não seguem as próprias regras…

O 5º livro de Game of Thrones sempre me pareceu esquisito perto dos outros — ele simplesmente não combina com seus irmãos. Agora o motivo está bem claro: sua capa não segue as mesmas regras.

Ao invés de admirarmos uma paisagem épica do alto de Westeros (ou Essos, no caso), estamos no meio de uma cena do livro, enxergando de perto as escamas de um personagem reptiliano prestes a nos devorar. Não se trata mais de um mundo de proporções colossais onde homens não passam de pecinhas insignificantes. Agora a parada é "o dragão vai te comer".

Livros de uma mesma série deveriam sempre seguir o mesmo estilo — não só pela coerência e pela harmonia da coleção, mas porque capas muito dissonantes podem nem parecer parte do mesmo grupo, gerando dúvidas e esforço cognitivo para o leitor (e possível comprador).

Fontes mais comuns em títulos e subtítulos

Como todo designer, tenho apreço por tipografia. Gosto de tentar identificar as fontes que vejo e não podia fazer diferente nesta análise. Aqui estão duas fontes muito usadas nas capas de livros de fantasia, como bem representado na minha amostra.

Trajan

[Carol Twombly, 1989]

A Trajan é figurinha carimbada da comunicação visual de histórias épicas — não só nos livros, mas nos filmes também, como observado no bem-humorado vídeo abaixo:

Mason

[Jonathan Barnbrook, 1992]

A Mason tem tanta cara de fantasia épica que usaram uma citação de O Senhor dos Anéis na parede dela no Museu de Arte Moderna de Nova York.

É claro que eu tinha que tirar essa foto

Saindo um pouco do mundo literário rapidamente, o logo de Game of Thrones na HBO é escrito em Trajan, mas eu sempre achei que os tracinhos da letra "O" têm a mesma pegada dos tracinhos da letra "H" da Mason.

Trajan + Mason… Não dá pra transpirar mais fantasia épica do que isso.

Outras curiosidades

22% das capas tinham pelo menos uma espada ou adaga

16% das capas tinham dragões (ou criaturas similares)

10% das capas tinham “Crônicas” no título ou subtítulo

Distribuição por cores dominantes

Para cada capa, extraí sua cor dominante. Existem vários sites e softwares para fazer isso. Eu usei esse aqui.

Conclusão

Depois de estudar as 100 capas, voltamos à pergunta inicial… Será que todos livros de fantasia parecem iguais?

Eles não parecem iguais… Mas alguns se parecem bastante.

Vimos que a comunicação visual da literatura fantástica não é muito de experimentar. Não foi difícil conceituar e definir as 4 categorias que representam quase toda a amostra (cena específica, elemento icônico, paisagem épica e personagem em destaque). Mesmo as capas mais ambíguas ou híbridas navegam entre essas mesmas categorias. A única categoria heterogênea foi a última (textura, padronagem ou tipografia), que abrigou as poucas ovelhas-negras da amostra.

Considerando que praticamente não encontramos capas abstratas, constata-se um óbvio apreço por capas com representações figurativas, sejam elas ilustrações digitais, tradicionais ou fotomontagens — nada muito experimental ou fora do convencional em termos de técnicas de ilustração.

Para um gênero que instiga tanto a criatividade, minha sensação é de que as capas de fantasia às vezes entregam todo o ouro de cara, deixando muito pouco para nossa imaginação.

"Olha! Tenho dragões, cavaleiros e castelos!" — elas parecem gritar. E algumas dessas capas são mesmo incríveis, com as mais belas ilustrações.

Mas será que não estamos desperdiçando oportunidades de fazer algo diferente e com mais impacto?

Leia a 2ª parte da análise e acompanhe todo o projeto editorial de um livro de fantasia diferente.

Gostou dessa análise?

Quem sabe você também goste do meu livro. Descubra novos mundos em odiariorubro.com

O Diário Rubro

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Felipe Pierantoni
Time de Experiência Globo

UX Designer // MSc Design for Interaction student at TU Delft