Existem corpos que você nem imagina

Vale.jo
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6 min readOct 21, 2021

Os corpos trans podem ser livres, plurais e diversificados, se não ficarmos inventando regras

Figuras que remetem à esculturas da Grécia Antiga junto com imagens de planetas. O fundo da imagem é verde claro.
Arte: Magui

Marcou bingo? Eu não

Quando falamos de corpos trans, na maioria dos casos, parece como uma espécie de cartilha a ser seguida, como em um jogo de bingo:

- Disforia! Hormonização! Odiar a genitália! Cirurgias!

- BINGO!! AQUI!!

- Deu cartela cheia?

- Hm…não…

- Poxa, não foi dessa vez… calma, talvez em outra vida você consiga sua carteirinha de trans.

Lidamos com mil processos diferentes em nossos corpos para que nosso gênero seja validado. Tudo é muito extremo, somos apresentados à uma lista e temos que segui-la à risca, qualquer mínimo desvio aparece alguém para dizer que estamos mentindo ou que não somos trans de verdade.

Isso porque existe uma narrativa perfeita que agrada a cisnormatividade. Ela começa assim: uma infância de conflito, com sentimentos de que temos algo “errado”.

Em seguida, chega a adolescência e com ela aquilo que seria nosso pior pesadelo: a puberdade. A única fase boa seria a vida adulta, livres do controle familiar, quando finalmente poderíamos “viver”, independente de como foi o nosso passado.

Na realidade, as histórias trans são bem mais diversificadas do que essa romantização. Sim, existem pessoas que têm disforia de gênero, fazem uso de hormônios e cirurgias.

Contudo, várias pessoas trans (incluindo eu), se questionam se realmente querem fazer ou se isso não passa de uma necessidade de aumentar a passabilidade (ter uma aparência que se passe por cisgênero).

A pergunta que me faço é: os hormônios são para mim ou para agradar uma sociedade que quer que nossa aparência seja “menos trans”?

Trans também é padrão

Adivinhe só, no mundo trans também existe um corpo padrão. Corpos brancos e magros acabam sendo mais representados no meio LGBTQIA+, no geral.

Se você alguma vez na vida já usou um desses aplicativos de encontro, sabe do que estou falando…

É como se fosse uma compensação. Um homem trans para sofrer menos com a transfobia, investe pesado na academia, fala grosso e evita ao máximo qualquer contato com o universo feminino. Algo bem parecido com “tudo bem ser gay, mas só não dá pinta”.

A nova versão é: tudo bem ser trans, mas tente parecer cis.

Arte: Magui

Pessoas não binárias também estão nesse limbo. Existe uma grande cobrança na androginia de tentar parecer uma mistura constante entre masculino e feminino. As pessoas te colocam uma expectativa que, talvez, você nem queria entender.

“Tantos assumem a androginia pertencente a não-binariedade mas não há lei obrigatória dentro do que se constitui uma experiência trans.”, essa frase de Miranda Almeida resume bem o que estou tentando dizer. Sempre existe uma regra a ser seguida e uma opressão; até mesmo nos aspectos mais pessoais e íntimos das pessoas.

Isso acaba apagando outras interseccionalidades, como Arthur Bugre escreve em seu texto para o jornal Estado de Minas: ser um homem trans preto acaba sendo bem diferente da experiência de ser um homem trans branco, com a transição, percebeu a maneira mais agressiva com que as pessoas o tratavam, como se seu corpo e, principalmente, sua pele fosse um sinal de ameaça.

E ainda existem outras realidades, como as das pessoas trans com deficiência, esse é o caso da Leandrinha Du Art, pessoas não binárias gordas como Jupitter, e ainda negras e gordas como Nick Nagari.

Existem uma grande pluralidade de corpos. Tentar colocá-los em uma caixinha é violento demais.

Autoestima é só para pessoas cis?

Recentemente, tenho assistido muito o canal de Jonas Maria, um influenciador trans formado em letras. Gosto muito dos vídeos de análises de filmes que tem transgeneridade como temática.

O cinéfilo chama atenção para uma tendência que ocorre nesses filmes ou um clichê. Estamos falando da conhecida e clássica cena do espelho, que está presente em vários filmes de pessoas trans como A Garota Dinamarquesa (acho que nem preciso comentar dos vários problemas desse filme), e até na novela Força do Querer.

Nessas cenas, a pessoa trans ainda em crise com sua identidade de gênero, se olha no espelho e odeia o que vê, ocorre um gatilho que se desdobra em um ataque de disforia (muitas vezes exagerado), podendo chegar até auto agressões.

Arte: Magui

Vamos lá, por que isso seria tão errado? Afinal, existem pessoas com disforias e que evitam se olhar no espelho…

Sim, isso é verdade, mas qual a necessidade de retratar isso tantas vezes no cinema? O que esses filmes demonstram é que odiar seu corpo é pré-requisito para ser trans.

Isso não só acontece em mídias de entretenimento, mas também no jornalismo, como escreve a jornalista Louise da Campo para o Portal Catarinas. Em seu artigo, ela analisa dois casos em que duas mulheres trans tiveram suas vidas noticiadas em jornais.

Nos dois casos, ambas eram reduzidas apenas ao rótulo de trans. Seus corpos foram colocados a frente de qualquer outra identidade possível, mais violento ainda foi que uma delas nem foi chamada pelo pronome apropriado, era usado o termo pejorativo de “homem com saia”.

E eu nem preciso ir muito longe para dar outro exemplo, tenho em minha memória a primeira matéria do Fantástico sobre transgeneridade que assisti, me lembro bem da animação de um pequeno feto enquanto a voz do narrador explicava, “antes mesmo da formação dos órgãos genitais, o gênero já é definido na consciência”.

Não vou entrar em méritos científicos pois essa não é minha área, mas observe esse discurso, perceba como gênero é sempre colocado paralelo com a genitália.

A autoestima, se sentir bem com próprio corpo e conseguir encarar o espelho seria só para as pessoas cisgênero.

O corpo trans é retratado como errado, inapropriado ou um pecado. Me pergunto, por que todas as narrativas trans precisam estar ligadas aos seus corpos? Será que meus pensamentos não valem nada, meu sentimentos tem que ser descartados no lixo simplesmente porque não me identifico com o gênero que me designaram ao nascer?

Meu corpo não me define.

Cobaia de experimento

Quando finalmente as pessoas cisgênero “entendem” o que é ser trans, elas ficam presas na concepção de corpo, é aí que nasce a famosa “curiosidade”.

“Ah, mas você é operade?”, “O que tem no meio das suas pernas?”Como assim você não quer tirar os seios? Então você não é homem”, “Mulher de pênis! Que absurdo!”…

Às vezes, parece que essas pessoas esquecem que existe uma ferramenta mágica chamada Google. Inclusive, recomendo demais, eu uso todo dia e é gratuita!

Nem preciso dizer como essas perguntas são invasivas e indelicadas. Ninguém chega no tio do churrasco e questiona o que ele tem em suas partes íntimas. Ao invés disso, troque essas frases por uma conversa sincera, admita que você não sabe o que é transgênero/transexual além da concepção de corpo.

Arte: Magui

Só não faça isso com quem você não tem intimidade, pelo amor de… (insira aqui a divindade de sua preferência).

Em alguns momentos, junto com “curiosidade” está a fetichização. Não tenha relações com pessoas trans só para mostrar o quão desconstruído/a/e você é, nós não somos o Quebrando o Tabu.

Sentir atração por corpos trans não é o problema (somos muito gostoses mesmo), o ruim é quando se começa a atrelar nossos corpos apenas ao sexo, esquecendo a parte humana e sem nenhuma afetividade. Nada de amor, apenas pegação.

A curiosidade e a fetichização são a dupla dinâmica que colocam a comunidade trans como não humanos.

Além do corpo

Um corpo não define alguém, é um barco que usamos para navegar pela vida. Não é nossa essência e qualquer existência humana vai muito além dele. Existimos e pré-existimos sem o corpo, não em uma visão espiritual, mas pelas ações, relacionamentos, pensamentos.

Enquanto alguém se lembra de você, sua existência continua além do corpo.

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Escrito por: Alex Gaeta

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