IRON MAIDEN (UK) — The Book of Souls (EMI, 2015)

Igor Natusch
VIL METAL
Published in
6 min readSep 1, 2015

NOTA: ***

Uma das melhores metáforas para explicar a subjetividade do mundo é a do copo pela metade: ele está meio cheio ou meio vazio? Nenhuma das afirmações está errada, e a escolha de uma ou outra revela mais sobre quem escolhe do que sobre o copo em si. Há tempos o Iron Maiden virou o copo pela metade do metal mundial: a cada disco discutimos se a lendária Donzela segue revelante ou não, se seus álbuns são os melhores do ano ou lamentáveis tentativas de vampirizar o próprio passado — ou seja, se o copo da banda está meio vazio ou meio cheio. “The Book of Souls”, décimo-sexto trabalho da banda, obviamente motivará as mesmas discussões. Fãs ardorosos da banda vão adorar o álbum: isso é evidente, está dado muito antes do disco surgir nas lojas, e se deve em grande medida aos méritos (antigos e presentes) da própria banda. Nosso desafio aqui é dizer se “The Book of Souls” traz algo capaz de ir além dessas pessoas — e tentar responder essa pergunta requer um considerável esforço, de análise e de abstração.

Sendo um álbum de mais de uma hora e meia de duração, natural que seja do tipo que só se revela de fato (para o bem ou para o mal) após repetidas audições. No caso do Livro das Almas, repetidas leituras revelam a intenção de fazer um trabalho denso que contemplasse a impermanência inerente ao existir, com repetidas referências ao espírito e trechos líricos bastante reflexivos. Musicalmente, a banda parece ter a mesma visão de “The Final Frontier”, buscando balancear momentos mais simples e diretos em meio ao toque progressivo à moda antiga que tem permeado a maior parte de seu material recente. “Speed of Light”, o single do novo álbum, parece um recado nesse sentido — um som direto, com uma pegada quase roqueira e um clima mais ‘para cima’. É claro que isso não significa que as composições extensas serão abandonadas, ao contrário: são elas que constituem os eixos em torno dos quais gira o álbum. E nelas surgem de forma mais clara os cacoetes que impedem “The Book of Souls” de ser realmente impressionante.

“If Eternity Should Fail”, uma música admitidamente pensada para o projeto solo de Bruce Dickinson, abre o disco de forma bastante vigorosa e um tanto sofisticada, com letras filosóficas e um encerramento declamado que há muito tempo não aparecia entre os ingredientes da Donzela. É um grande momento, e cumpre bem a função de oferecer as diretrizes do que virá a seguir. Outros momentos fortes estão em “Tears of a Clown”, homenagem simples e emotiva ao falecido ator Robin Willians e onde Bruce Dickinson, sem grandes malabarismos, faz sua melhor performance em todo o disco; a bastante tocante “The Man of Sorrows” (sombria, com variações inesperadas e trazendo os melhores solos do álbum); e “When the River Runs Deep”, que usa elementos mais hard/heavy de forma agradável e cria uma nuance interessante a partir da quebra de ritmo no refrão.

O momento mais impressionante do álbum, porém, sem dúvida é “Empire of the Clouds”. Não apenas por ser a música mais longa da carreira da banda, mas por trazer em si boa parte da ousadia de todo o disco. Não é um épico como foi “Rime of the Ancient Mariner” antes dela: trata-se de uma semi-balada grandiosa conduzida ao piano, onde a banda na maior parte do tempo funciona mais como acompanhamento. Em alguns momentos, me lembrou a grandiosidade de bons momentos do Savatage — o que pode ser uma comparação inusitada, mas acho bastante explicativa. A letra é bela e poética, e a música como um todo consegue conjurar uma aura de sonho muito tocante, reforçada pelas soluções de influência clássica em boa parte das seções instrumentais. Ela surge, cresce, torna-se dominante e se apaga aos poucos, quase suavemente — um grande triunfo de composição de Bruce Dickinson, sem dúvida. Não é uma música perfeita, e sem dúvida traz um pouco de gordura desnecessária aqui e ali — mas, vinda de uma banda tão acusada de fazer mais do mesmo, “Empire of the Clouds” é um esforço admirável de reinvenção, e não tenho dúvida de que é a mais memorável de todas as músicas desse trabalho.

Mas uma banda como o Iron Maiden naturalmente desenvolve alguns cacoetes, e “The Book of Souls” está cheio deles. “The Great Unknown”, além de não trazer nada muito significativo em sua pegada pretensamente mais pesada, encerra como quase todas as músicas do Iron Maiden atual, repetindo de forma mais suave algum trecho significado da letra. E essa fórmula já batida repete-se, de um modo ou outro, em outras seis músicas do álbum, causando às vezes a impressão de que a banda simplesmente não tem interesse em pensar uma solução menos previsível. Outras, como “Shadows of the Valley” (apesar da curiosa intro que recicla “Wasted Years”) e “Death or Glory”, acomodam-se confortavelmente na zona da mediocridade: tenho absoluta certeza que fãs podem achar muitos elementos apreciáveis nelas, mas longe estão de serem composições memoráveis ou realmente significativas na história (mesmo recente) do sexteto. Mesmo a faixa-título, que consegue criar uma atmosfera mais grandiosa e um tanto mórbida, sofre com a falta de soluções que unam todos os elementos de forma engenhosa e eficiente, causando a impressão de que saiu do forno um pouco antes de ficar pronta, se é que me entendem. Está saborosa, mas poderia ter ficado com a casca mais crocante.

Talvez “The Red and the Black” seja a música que melhor resume os vícios dos quais o Iron Maiden não consegue (ou não se esforça para) livrar-se. A introdução de baixo é boa e a guitarra acompanhando a linha vocal dá ao som uma dimensão interessante — mas ela se prende demais na repetição de alguns padrões, o que se torna especialmente marcante na longa seção instrumental, com cerca de seis minutos de solos que não dialogam sobre uma base que não parece levar a lugar algum. É uma música cuja duração não soa natural: poderia ser um ótimo som de sete minutos, mas acaba sendo uma viagem meio maçante de mais de treze.

A proposta da banda de escrever a maior parte do álbum dentro do estúdio, com apenas algumas poucas músicas prontas antes de começar a gravar, certamente influencia na repetição de soluções — afinal, qual caminho mais fácil do que usar o que já sabemos que funciona? Mesmo as melhores músicas do álbum trazem momentos de considerável mesmice, com passagens 4x4 baseadas em simples progressões de notas e alguns duetos de guitarra para lá de manjados. E é significativo que nenhum dos músicos consiga destacar-se desta vez. Os solos de Adrian Smith, a voz de Bruce Dickinson, o baixo de Steve Harris — tudo é bem executado e competente, mas vai ser difícil apontar uma performance que seja realmente memorável. A bateria de Nicko McBrain é quase um destaque negativo na verdade, com uma sucessão de viradas simples e conduções pouco esforçadas que basicamente seguram a batida das músicas e nada mais. Algo que a produção quase espartana de Kevin Shirley, é claro, não é muito eficiente em disfarçar.

Dito tudo isso, o copo de “The Book of Souls” está meio cheio ou meio vazio? Isso obviamente vai caber a cada ouvinte decidir. Pessoalmente, acho que a competência se manifesta de forma mais forte do que a mesmice, e que temos algumas músicas suficientemente boas para justificar a atual existência do Iron Maiden enquanto força criativa. Longe de comparações com o passado (que serão, por óbvio, eternamente injustas com qualquer grande banda), a Donzela de 2015 ainda consegue superar os próprios vícios e ser genuinamente revelante, mesmo que não o tempo todo. O tempo de conquistar o mundo já passou, mas o Iron Maiden chega nos últimos capítulos de seu reinado sem que se possa falar de fato em decadência — o que, convenhamos, já é uma tremenda conquista.

VIL METAL — todas as quintas (19h) e terças-feiras (00h), sempre na http://radioestacaoweb.com.br

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Igor Natusch
VIL METAL

Jornalista. Ser humano. Testemunha ocular do fim do mundo.