Muito além dos 55 dias em Pequim

Lucas Mendes
Vinte&Um
Published in
4 min readJun 24, 2019
“The I’ll Try, Sir!” — Tropas americanas no auxílio às tropas aliadas em Pequim em 14 de agosto de 1900, durante a Rebelião Boxer (US Army Military History)

Quase dois anos do meu primeiro texto aqui na Revista Vinte&Um e Hong Kong volta a estar nos noticiários. Acredito que para entender o que se passa é necessário entender a origem da cidade no imaginário chinês. Lembrado pelos próprios chineses como o período de grande humilhação, a era Vitoriana também é o momento de decadência da Dinastia Qing, assolada por tratados desiguais com as potências ocidentais (sendo um deles, a cessão por 99 anos de Hong Kong à Grã-Bretanha), fome e comércio de ópio.

A Revolta Boxer é este momento que marca não apenas o fim da era Vitoriana mas o fim definitivo da Dinastia que durava já quase quatro séculos. Com versões bem traduzidas em quase todas línguas europeias, 55 dias em Pequim é um filme americano dos anos 6o sobre o Cerco das Legações Internacionais, quando onze países — apesar de chamarem de Aliança das Oito Nações, Espanha, Belgica e Holanda também se unem na ocasião — se juntam para proteger os quarteirões dos estrangeiros em Pequim, ameaçados pelo movimento Boxer, fervorosamente antiocidental e por isso, atacavam os cristãos estrangeiros convencidos de serem invulneráveis a armas estrangeiras.

A assinatura do Protocolo Boxer em 1901 abala por definitivo a estrutura de poder da dinastia, já que vários burocratas e oficiais acusados de serem membros do movimento Boxer são executados como parte do acordo, sem contar a indenização equivalente a dez bilhões de dólares atuais por um período de 39 anos para as nações envolvidas. Em 1911 culmina a Revolução Xinhai, dando um fim definitivo à Qing e início ao período Nacionalista, inspirado no modelo de democracia republicana ocidental.

Ainda que os eventos mencionados tenham ocorrido há mais de um século, boa parte do imaginário coletivo, e consequentemente, o governo chinês, é bastante apegado às memórias deste período. A própria devolução de Hong Kong em 1997 por si só foi de grande simbolismo, já que era o fim de uma das maiores cicatrizes decorrente das Guerras do Ópio. A ideia de “Um país, dois sistemas” adotado no final dos anos 90, na devolução, foi o que permitiu que Hong Kong continuasse a prosperar e sediar grande parte das filiais chinesas de empresas estrangeiras que viam na cidade um ponto de estabilidade, tanto política quanto jurídica, frente a uma República Popular que inspirava pouca confiança.

Manifestantes durante um protesto para exigir que as autoridades rejeitem uma proposta de lei de extradição com a China, em Hong Kong, China, em 9 de junho de 2019 (Reuters / Thomas Peter)

Nas últimas semanas, milhares, senão milhões de pessoas, foram as ruas em Hong Kong protestar contra a nova lei de extradição que permitiria que o governo em Pequim tivesse alcance jurídico também na Região Administrativa Especial, enfraquecendo a ideia de uma Hong Kong politicamente independente, conforme os termos da devolução. Confesso que fui pego de surpresa com a notícia de que a Chefe Executiva da cidade, Carrie Lam, retiraria a lei de extradição da pauta por tempo indefinido, mesmo que tenha dito que o projeto não estaria cancelado totalmente.

Ao invés de enfraquecer, o recuo tornou os protestos maiores e mais populares. Entraram mais em pauta a crescente interferência do Partido Comunista (PCCh) nos assuntos da cidade, a obstrução de reformas para enfim democratizar a política local e a demanda de reconhecer os protestos como legítimos. Não demorou para que vários manifestantes fossem presos e a mídia em Pequim colocasse a culpa da insatisfação nos estrangeiros. Como todo momento de tumulto na China, a interferência ocidental vira o bode expiatório, tirando da população o poder de agência e legitimidade das pautas.

O que considero um ponto chave, a grande diferença para o Movimento dos Guardas Chuvas de 2014 em prol de uma abertura democrática em HK, é a pressão crescente da guerra econômica com os Estados Unidos. Como comentei no último texto, o tom nacionalista na China continental subiu bastante e a postura do PCCh está cada vez mais na mira dos observadores locais e internacionais. Nestes 30 anos de Tiananmen, a sinuca de bico de ceder aos protestos ressoa mal nas bases, uma rendição incondicional não é algo que Xi Jinping está acostumado. Embora discorde do artigo de opinião veiculado no The Washington Post acerca de uma mudança fundamental no resto do país seguindo a tendência de Hong Kong, o ponto mais importante dos protestos não é apenas mostrar para o resto do mundo que o princípio de “dois sistemas” não é levado a sério por Pequim, mas que os acordos vigentes também não tem tanto valor. A recusa veemente de Taiwan em se reunificar é, portanto, mais que legitima, uma vez que o regime autoritário da República Popular não aceitaria a autonomia do outro lado do estreito.

Independente do resultado das manifestações, fica claro que as próximas décadas colocarão não apenas em teste a capacidade do Partido em criar uma nova ordem internacional posicionando a China como um dos polos de poder mundial, mas também percepção de que nesse segundo momento o país respeitará a soberania e os valores dos países aliados. Por enquanto, Hong Kong é dado como assunto interno, mas e quando a projeção de poder chinês for semelhante à dos Estados Unidos? Os 55 dias em Pequim já se passaram, mas as dúvidas e os cercos retóricos à ascensão pacífica estão mais de pé que nunca.

Lucas Mendes é analista internacional pela PUC Minas, liberal, botafoguense e focado no Leste Asiático.

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Lucas Mendes
Vinte&Um

Analista Internacional (PUC Minas), liberal, botafoguense e focado no Leste Asiático.