A profundidade teológica de um churrasco

A importância da educação dos desejos na vida cristã

Bruno Emídio
Vitral
6 min readApr 3, 2020

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Close-Up Photo of Man Cooking Meat — View more by Min an From Pexels

Em uma das minhas tarefas mais ordinárias — como checar as mensagens de grupos no celular , uma das mensagens me chamou bastante atenção, não tanto o conteúdo em si, mas minha reação diante do que eu havia acabado de ver.

O vídeo curtinho, de apenas um minuto, apresentava simplesmente um homem preparando um churrasco - com belíssimas carnes, cerveja gelada e gordura (bastante gordura). Tudo organizado de maneira esteticamente agradável, de modo a prender a atenção e fazer desejar aquele paraíso gastronômico. Creio que muitos podem imaginar esta cena e encher a boca d’agua, como deve ter sido para a maior parte das pessoas que receberam tal mensagem. O que me intrigou foi a contrariedade da minha reação e a realidade normativa.

Eu não me maravilhei com aquelas imagens, diferente dos meus amigos. Só consegui pensar na enorme quantidade de gordura e malefícios à saúde que a ingestão delas poderiam causar ¹. Isso se deve a minha recente mudanças de hábitos e mentalidade com respeito ao corpo e o impacto que uma alimentação desbalanceada tem na obstrução de objetivos físicos. Mas isso não importa, meu objetivo é simplesmente mostrar como os desejos, e a reordenação deles para um outro alvo, são fundamentais para um entendimento mais profundo a respeito da caminhada cristã.

Muitas vezes o cristianismo é definido meramente como mais um moralismo, um sistema com uma série de regras a se seguir. Bem, não quero negar que existem desdobramentos morais na vida de cristãos, nem diminuir a importância das ordenanças (o que eu já desenvolvi neste outro texto). Meu ponto é: quando nos atentamos para o nosso coração, e mudamos o que desejamos, isso afeta diretamente nossas ações, importâncias e prioridades. Mas obter a informação do que dever ser feito não é, sozinho, suficiente para nos transformar.

Jesus após a traição de Pedro não o perguntou se ele tinha obtido meramente as informações corretas à respeito dele, mas indagou: “Tu me amas?”. E ele ainda diz: “Aquele que me ama guarda meus mandamentos”. Geralmente lemos este texto ao inverso, como se guardar os mandamentos fosse a fonte do amor e não o contrário.

Há algo mais profundo no discipulado que deveria ter mais destaque, penso eu, nas nossas igrejas e lares - os afetos e desejos como parte fundamental de nossa caminhada e integralidade humana. As escrituras estão repletas de ensinamentos sobre tal temática e há muito se discute sobre elas na tradição da Igreja, de Agostinho a Calvino, Edwards, Lewis, James Smith e outros inúmeros autores. Como em um trecho de Cristianismo Puro e Simples, em que Lewis nos exemplifica:

É fácil pensar que desejamos algo sem o desejarmos realmente. [Um famoso cristão enquanto jovem] orava constantemente por castidade, porém, anos mais tarde, ele se deu conta que, enquanto seus lábios pronunciavam: “Ó Senhor, torna-me casto”, seu coração acrescentava secretamente: “Mas, por favor, não o faça já”.²

É fato que Deus nos dá novas disposições e desejos por Ele (Ez 36:26). Isso parte da compreensão da nossa posição diante do Pai, sem condenação e, justificados pela obra de Jesus. A relação de Deus conosco não sofre alterações mediante nossa constante condição pecadora. Ela não pode melhorar nem piorar, porque ela “simplesmente” reflete a própria e eterna relação do Pai com o Filho, pelo Espirito. O Evangelho é essa boa notícia, que nos comunica como somos inseridos em Cristo, pela adoção, e nos encontramos à direita do Pai (realmente não creio que há melhor lugar para estarmos)(Ef 2:6). Mas nossa relação com o Pai, a relação direta de criatura para Criador, essa sim pode ser melhorada, e a medida que temos mais consciência da Graça e nos aproximamos d’Ele, pelos méritos de Cristo, a imagem dele é impressa em nós.

Essas novas disposições e desejos que vão sendo cultivadas em nós pelo Espírito, podem ser chamadas de virtude. Virtude, de acordo com Tomás de Aquino, é lei internalizada. Não é necessário dizer a alguém honesto “não roube”, ou a alguém verdadeiro “não minta”. Essas ‘leis’ já estão internalizadas de tal maneira que quebrá-las está fora das possibilidades.

Com os discípulos de Cristo é da mesma forma. Isso não quer dizer que a partir do momento que cremos em Jesus nos tornamos perfeitos. Precisamos passar por uma Escola. Uma escola que arranja e direciona nossos amores para o caminho certa - o próprio Deus. Durante este aprendizado teremos dificuldades, nossos desejos parecerão ambíguos em muitas oportunidades. Podemos desejar o bem, por motivos errados e isso nos acompanhará por um tempo considerável, mas o mesmo Deus que nos matriculou nesta escola, vai estar nos educando e transformando, de glória em glória, naquilo que devemos ser.

É por esse motivo que as orações diárias, as leituras religiosas e a frequência aos cultos, pois temos de ser constantemente lembrados daquilo que acreditamos.[Nenhuma crença]se manterá viva se em nossa mente automaticamente, elas precisam ser [cultivadas].²

Ainda segundo Lewis: “O amor é o grande conquistador do desejo”². A consciência do amor de Deus causa em nós um desejo autônomo pela Lei; um amor pelas coisas certas, como diria Agostinho. Nos faz ver cores em Deus que nos fascinam!

Salmos é um excelente livro para exemplificar esse amor por Deus. Muitas vezes não entendemos as declarações apaixonadas e exultantes dos salmistas. “Abre tu os meus olhos, para que veja as maravilhas da tua lei” (Sl 119:18). Veja como ele enxerga um tesouro na Lei do Senhor, algo bom e digno de nosso ser como um tempo, real prazer! E assim prossegue: “Pois nele se alegra o nosso coração; porquanto temos confiado no seu santo nome” (Sl 33:21), “Deleito-me em fazer a tua vontade, ó Deus meu; sim, a tua lei está dentro do meu coração(Sl 40:8), Pois tu, Senhor, me alegraste pelos teus feitos; exultarei nas obras das tuas mãos” (Sl 92:4), “E quão preciosos me são, ó Deus, os teus pensamentos! Quão grandes são as somas deles!” (Sl 139:17)

O trabalho do discipulado é nos fazer apaixonar por Sua beleza. Nos saciar em uma demanda de amor que só pode descansar e encontrar seu destino em Deus. Como disse, aprendemos a amá-lo com o tempo, o pecado ainda fará parte de nossas experiências.

Porém, nossa oração não deve ser para deixarmos de pecar, mas sim: “Senhor, faça-me amá-lo mais! Cria em mim o desejo por te desejar”.

Somos criaturas sem entusiasmo, brincando feito bobos e inconsequentes com bebidas, sexo e ambições, quando o que se nos oferece é a alegria infinita. Agimos como uma criança sem noção que prefere continuar fazendo bolinhos de lama numa favela porque não consegue imaginar o que significa a dádiva de um fim de semana na praia.³

Não nos apeguemos a performance religiosa, irmãos, rejeitando aqueles velhos pecados com pesar, mas rejeitando as “maravilhas” do mundo por um desejo de coisas maiores, como o Amor de Cristo. “Nunca estaremos bem enquanto amarmos e admirarmos qualquer coisa mais do que amarmos e admirarmos a Deus”².

Que possamos agir da maneira correta simplesmente porque aprendemos a amar a coisa certa. Seremos habilitados a desejar objetivos mais sublimes, da mesma maneira que uma nova disposição à alimentação balanceada e exercícios físicos nos faz rejeitar um banquete recheado de lipídio e sódio, não porque existe uma proibição, mas sim porque enxergamos algo mais valioso.

1 — Não que eu repudie esse tipo de refeição, inclusive creio que há bastante espaço para glorificarmos a Deus com a degustação dos diversos sabores disponíveis na criação.
2 — Todas estas referências foram retiradas de Lewis, C.S. Cristianismo Puro e Simples/ C.S Lewis; traduzido por Gabriele Greggerson. — Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017
3 — Lewis, C.S. 1893–1963 O peso de glória/C.S Lewis; tradução Lenita Ananias do Nascimento — São Paulo: Editora Vida, 2008, p. 30

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Bruno Emídio
Vitral
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Feito filho de Deus pela obra de Jesus, Mutuense,quase psicólogo e amante de metalcore e tatuagens.