A desilusão também se prolifera na pandemia.

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5 min readJun 6, 2021

Após mais uma semana sem nem pisar na calçada, achei que uma caminhada pelo bairro faria bem. Olhei rápido no espelho e estranhei o reflexo: nunca meu o cabelo esteve tão longo, quase no ombro. Ao mesmo tempo que me causou um estranhamento, gostei da sensação de estar diferente. Combinava com o contexto geral.

No decreto municipal ainda estávamos em uma fase bem restritiva, com ocupações de leitos altíssimas em decorrência da Covid-19. Em menos de uma hora fora, porém, parecia que pandemia já estava superada. Vi um vizinho festejando com música ao vivo, dezenas de convidados e decoração de buffet. Pessoas caminhavam segurando a máscara nas mãos. No estacionamento, amigos saíam dos carros para compartilhar coolers com bebidas. Para completar, até um balão sobrevoava no céu. Voltei para casa com vontade de hibernar por alguns anos e um sentimento que desde então não sei nomear.

Seria eu a última pessoa do bairro (ou da cidade?) ainda preocupada com um vírus que diariamente mata milhares de brasileiros?

Do #FiqueEmCasa ao colapso: nosso fracasso só está mais evidente.

Após 1 ano de quarentena, não há mais desculpas fáceis. Todos já sabem como o vírus é transmitido e, mesmo assim, não passa um dia sem que eu veja alguém vestindo a máscara no queixo.

Como marionetes, seguimos em um teatro macabro sem saber o final da história. Autoridades fingem que estão fiscalizando e exigindo alguma medida de restrição, comerciantes seguem fingindo que adotam ‘todos os protocolos de segurança’ e nós seguimos achando que a Covid-19 é um problema quase do passado. Sem um plano nacional, não sabemos nem se estaremos vivos na próxima semana, mas fazemos planos de viagens e festas para o próximo semestre para se distrair. Até quando?

Sinceramente, fui daqueles que acreditou que a pandemia seria um alerta global e, com um inimigo em comum, teríamos muitas mudanças estruturais. Na prática, porém, ao mesmo tempo que vimos a fome tirar a comida do prato de mais de 116 milhões de brasileiros e o desemprego atingindo 14 milhões, 11 novos bilionários nacionais figuram no da Forbes em 2021. Ao mesmo tempo em que alega-se não haver dinheiro para o Censo, para o combate ao desmatamento ou às pesquisas nacionais, o gasto com militares aumentou 17% além do previsto no período. Nunca fomos tão desiguais. Problema que, obviamente, não surgiu com o vírus, só está mais escancarado.

Não acredito que seja coincidência também que em meio à pandemia presenciamos tantos flagrantes de ‘pessoas de bem’ surtadas, humilhando os entregadores de delivery, xingando porteiros, destratando atendentes, ameaçando quebrar lojas, ofendendo fiscais ou descaradamente tentando dar carteirada para não seguir as medidas preventivas em locais públicos. Esse mesmo tipinho que agora lamber bota de ditadores militares e clamar por ‘ordem e progresso’ para os outros (de preferência se forem grupos minorizados), são os primeiros que não seguem as regras, mesmo que sejam medidas sanitárias adotadas internacionalmente.

Chega até a ser irônico que quando tivemos que vestir máscaras muitos revelaram a verdadeira face.

Não sei nomear o que sinto. De verdade. Tem uma pitada de tristeza pelas vítimas, ansiedade de pensar nos próximos meses, saudosismo do velho normal e, acima de tudo, uma apatia por não vislumbrar mudanças. Tem sabor de decepção mesmo, decepção com os vizinhos, com o país, com as pessoas em geral. Como um incômodo que sobe à boca cada vez que vejo flagrantes de festas clandestinas com centenas de jovens, quando um amigo comenta da perda de um familiar pela Covid-19 ou quando alguém ainda insiste em minimizar o que estamos passando.

Ainda refletimos sobre a pandemia apenas como um embate entre saúde e economia, sem muito ponderar o impacto que a perda de milhares de vidas representará na sociedade. Afinal, são conhecimentos que não serão compartilhados, famílias desestruturadas, profissionais que deixarão de contribuir em diversas áreas, em todos os setores. Na escolha entre manter as lojas abertas ou defender medidas sanitárias, quantas vidas pagaram o preço?

A principal diferença é que não me sinto nem disposto a debater mais sobre o assunto. Quem não quer mudar não vai, por mais doloroso que seja. Se ainda tem gente acreditando que o coronavírus é uma arma comunista para derrubar o presidente brasileiro, não vale gastar tempo ou energia para discutir. Cansei de pagar de neurótico por recusar convites para sair ou questionar as fake news que chegam nos grupos do WhatsApp. Sinceramente, que tomem drink de cloroquina se quiserem, só não menosprezem meus medos.

Em que momento a gente esvazia?

Se você entrar nas redes sociais em busca de consolo ou entretenimento em meio às nóias pandêmicas, talvez encontre a blogueira fitness gritando ‘foda-se a vida!”, o marido da cantora superpopular culpando a folga da empregada por contaminar toda a família, a ex-participante de reality show presenteando a irmã com um celular embrulhado no exemplar de 1984 de Orwell, vários posts ‘agradecendo o desligamento’ no LinkedIn e, claro, as dezenas de dancinhas e trocas de roupas do TikTok.

Em muitas timelines a pandemia nunca existiu e o Brasil está deslumbrante. Caminhamos para os 500 mil mortos mas seguimos dando like nas viagens, nas festinhas ‘só para a família’ e no registro de quem ‘tirou a máscara só para a foto’, afinal, o vírus respeita o momento do clique. Se pegar mal, logo virá o conteúdo de desculpa pela aglomeração e justificativa que a escapada foi apenas pela ‘saúde mental’. Afinal, é mais fácil gastar em viagem que investir em terapia, né?

Me sinto menos interessante, mais irritado e esquecido. Acho que é falta de momentos de lazer. Lazer de verdade. Não trocar a tela do computador do trabalho por outra tela com postagens, streaming, live ou videochamada. Ouvi outro dia, num seminário também on-line, que a pandemia nos tirou o inesperado da rotina, com aquele convite que chega de última hora, a descoberta de uma loja no caminho para casa, encontrar um amigo na fila do cinema, tomar um café no escritório enquanto fofocamos sobre o fim de semana… No fundo, são esses momentos banais que dão molho na rotina e nos tornam mais interessantes. Não dá para agendar o inesperado.

Me sinto preso no dia da marmota, acordando ora angustiado pelo descaso do governo, ora esperançoso que tudo isso servirá como lição para 2022. Há dias que levanto grato por ainda estar empregado em meio ao caos que vivemos, outros, tenho receio do que ainda virá por aí. Dias que agradeço por meus parentes e amigos seguirem com saúde, outros que me aflijo com as próximas pandemias que estão anunciadas.

‘Sem medos, nem esperança’, como canta Gal Costa, seguimos vestindo a máscara, tentando frear a transmissão do vírus e da desilusão.

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Tentando ser FASHION, aficionado pelas novidades POP e apaixonado pelo universo GEEK. “Cher acima de tudo, Madonna acima de todos.” 🏳️‍🌈🕶️