Coronavírus: pandemia, dilemas e o que pode vir depois.
O vírus é um pedacinho de DNA só capaz de se reproduzir no interior de outra célula, tão primário que muitos questionam se podemos classificá-los como seres vivos. Parasitas obrigatórios, eles não se alimentam, respiram ou locomovem, com apenas um objetivo: infectar outro ser para se alastrar.
Quem diria meses atrás que uma ameaça invisível seria capaz de derrubar as projeções dos economistas, derreter as Bolsas, fechar as fronteiras e mudar as rotinas urbanas em tão pouco tempo? Planos, eventos, shows, filmes, lançamentos e negócios, muitas vezes planejados com anos de antecedência, foram simplesmente adiados, sem previsão ainda de retorno.
Em uma época que não podemos mais parar, numa cultura obcecada com números, em que todos estão sempre ansiosos pelas próximas tendências, fomos forçados a dar um passo para trás. Um filamento de DNA nos fez encarar os hábitos individualistas, o consumo exacerbado, as ansiedades modernas, a falta de tempo na rotina e os nossos medos mais íntimos.
Na pandemia declarada como a “maior crise sanitária mundial da nossa época” pela OMS, oscilamos entre o pânico e a esperança a cada nova notícia, sem sabermos ainda o que virá depois.
COVID-19: GRIPEZINHA OU COLAPSO MUNDIAL?
Em menos de um mês que o primeiro caso da COVID-19 foi confirmado no Brasil, passamos do status de “é só mais uma gripe” para decretos oficiais que fecham escolas, shoppings, museus, teatros e academias por todo o país. Nesse meio tempo, uma enxurrada de fake news e pronunciamentos difusos causaram uma verdadeira divisão, entre aqueles que estão em completo pânico pela eminência de um colapso do sistema de saúde (público e privado) e outros que insistem em classificar a situação como um exagero midiático, uma articulação do partido comunista chinês para dominar o mundo ou mesmo ação do demônio. Enquanto uma parcela permanece reclusa, outra já voltou para as ruas como se nada tivesse acontecendo.
De nada ajuda a postura de um presidente que mesmo depois de casos confirmados no Brasil insistia em dizer que tudo não passava de “muito mais fantasia” da imprensa, que haveria interesses econômicos envolvidos na pandemia, até o cúmulo de incentivar as manifestações públicas de 15 de março (inclusive participando dela), contrariando as recomendações do Ministério da Saúde. Com 23 casos diagnosticados apenas na sua comitiva, foi só no dia 18 de março, quase um mês depois, que um anúncio oficial mudou o tom, mesmo que os representantes mal conseguissem colocar uma máscara direito. Mais preocupado em não terminar mais um ano com números pífios na economia, ele disse em entrevista que “vão morrer alguns, sim, mas não podemos deixar esse clima todo aí”.
DA DENGUE À BALA PERDIDA, QUEM QUER MORRER DE COVID-19?
Não é coincidência que os primeiros panelaços contra o governo eclodam no momento de quarentena. Atônitos, esperávamos medidas que dessem um norte ao percebermos que a “agenda liberal” precisa de uma mãozinha do Estado quando a situação foge do controle dos economistas. A proposta de jogar no colo do cidadão todas as decisões e deixar a “mão invisível do mercado” guiar os rumos só faz sentido quando todos têm acesso à saúde, educação, moradia e condições básicas igualmente. Quando somos forçados a nos recolher em casa, não queremos mais lição de empreendedorismo de coach de LinkedIn, mas a certeza que o Estado dará conta de tomar as medidas necessárias para assegurar nosso sustento, segurança ou um leito no hospital, se necessário.
Falando na reclusão voluntária, o #ficaemcasa nos faz encarar outro problema que também não surgiu agora com a epidemia, mas fica ainda mais evidente, com os abismos sociais que existem dentro de uma mesma cidade. Afinal, enquanto uma parcela da população tem o privilégio de ficar em casa em um clima de “férias antecipada” (com piadas sobre comilança, discussões em família e reclamações de tédio), outra grande parte não tem outra opção que continuar nas ruas se arriscando para garantir que o trabalho seja feito, a comida servida, as entregas realizadas, a limpeza reforçada e a segurança realizada. Não por acaso, duas das primeiras vítimas fatais no Brasil foram um porteiro e uma empregada doméstica, o que é muito representativo.
Isso sem nem entrar na questão de como a maioria das recomendações de proteção serão quase impossíveis nas comunidades e periferias das grandes cidades, que já vivem à margem do mínimo recomendado. Nem vamos comentar também do problema econômico que semanas de comércios fechados poderão causar, especialmente para os pequenos negócios que atendem normalmente pessoas conhecidas, da própria região e dependem do movimento nas ruas para se manterem.
Enquanto nos digladiamos por um potinho de álcool em gel, 48% da população brasileira não tem coleta de esgoto. Problema que não começou agora com o vírus, mas que deveria nos preocupar tanto quanto a epidemia.
E O QUE VEM DEPOIS DA COVID-19?
Em poucos dias tivemos que reorganizar nossas rotinas, adiar planos e viver na incerteza de não saber quando as coisas vão realmente normalizar. Todos foram afetados, em diferentes níveis, seja o amigo que cancelou o sonho da viagem à Europa, o coordenador que teve que liberar o home office para toda a equipe (depois de anos negando esse benefício), o casal que começa a se estranhar depois de alguns dias convivendo forçadamente, a amiga que fechou o restaurante por falta de cliente, o vizinho que demitiu os colaboradores, a amiga que perdeu a mãe e não conseguiu nem se despedir ou os filhos das empregadas que fizeram uma petição on-line para protegerem suas mães.
Uma mudança tão abrupta que desperta nossos piores instintos e medos, como demonstram os vídeos de pessoas brigando nos mercados, o aumento no número de venda de armas nos EUA (?!) ou mesmo as pessoas que estão comprando e estocando um medicamento que possivelmente ajuda no tratamento da COVID-19, mesmo sem nenhuma confirmação científica, deixando quem precisa desabastecido. Em nem uma semana de reclusão já vimos a ganância dos aproveitadores, grandes empresários ameaçando demitirem milhares de pessoas se a reclusão continuar, o absurdo daqueles que abusam da fé alheia, a ignorância de quem compartilha fake news e a inversão dos valores em prol do “mercado” quando um app de entrega de comida acha descolado dizer que os clientes não terão nem que ver o entregador. Afinal, tudo bem que o cozinheiro, a equipe do restaurante e o motoboy se exponham ao risco indo e vindo por aí, contanto que a comida chegue quente antes de 20 minutos, né?
A situação tragicômica afeta o emocional de quem está tentando acompanhar as notícias e nem calculamos como uma sociedade tão medicada, ansiosa e depressiva lidará com um inimigo invisível que nos obriga a ter nossa própria companhia por dias, semanas (ou meses?). Os tweets com comentários de pessoas que não estão sabendo ficar bem sozinhas, entediadas e que simplesmente não conseguem focar nas atividades diárias começam a pipocar e devem se agravar nos próximos dias.
Se o momento de crise desperta nossos piores ímpetos, também podemos reconhecer movimentos de união que dão uma esperança genuína para depois. Afinal, quantos vizinhos se ofereceram para ajudar quem nem conheciam? Empresas que correram para criar opções gratuitas para facilitar a vida de famílias em quarentena? Escolas que estão disponibilizando cursos grátis? Os artistas que fizeram lives e festivais direitos de casa para entreter e confortar os fãs sem área VIP ou taxa de conveniência? Os pesquisadores e profissionais de saúde que se ofereceram para trabalhar como voluntários no atendimento aos doentes? No geral, um retorno à simplicidade e um aprendizado em comum: cuidamos do outro para também nos proteger e nos protegemos para resguardar quem amamos.
E aí que vem uma esperança para o pós-epidemia, numa mudança estrutural. Sem querer romantizar o coronavírus, como blogueiras e as “tias do zap” já estão fazendo, nos resta a expectativa que esse período reclusos seja uma oportunidade para refletirmos e exigir mudanças. Afinal, fazer arminhas com as mãos não é governar. Na hora do aperto precisamos de médicos, enfermeiros, cientistas, pesquisadores e não influencers do Instagram. Que os artistas, sempre alvo das críticas dos ignorantes, são fundamentais para nos entreter e inspirar. Que a imprensa, sempre tão atacada por quem deseja calar o contraditório, é quem nos ajuda a traduzir a loucura dos nossos dias. Que as certezas absolutas dos “sabidões” do LinkedIn não servem para nada quando a economia global entra em colapso. Que sem o SUS a situação seria ainda mais caótica. Que os contatinhos do Tinder não suprem a carência quando precisamos de uma ligação ou uma mensagem de conforto. Que quem amamos nos ajudam a passar pelas dificuldades, mesmo que a distância.
Que o medo seja pedagógico e que consigamos aproveitar a pandemia para encarar também os problemas antigos que não podem ser solucionados apenas lavando bem as mãos e com um pouco de álcool em gel. Em uma época em que tudo deve ser compartilhado, empoderador e autoafirmativo, não há filtro do Instagram que ensine a lidar com a falta de conexões reais.
Afinal, um filamento de DNA nos faz lembrar que somos parte da natureza e não os donos dela. Um vírus que não escolhe país, classe social, gênero, orientação sexual, hábitos ou cultura nos faz encarar que, no fundo, somos apenas um amontoado de células, da China ao Chile. Se fechamos agora nossas fronteiras, muros e portões é para depois retomarmos nossas conexões com uma nova postura.