“Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”

Aos ricos, a imortalidade. Aos pobres, a morte. O destino fatal inscrito pela autoridade máxima do país.

Pablo Pamplona
vulgar
4 min readJun 4, 2020

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Manaus, 21/04/2020. Foto: Sandro Pereira/Fotoarena.

A certeza da morte: destino fatal e irreversível, diante do qual não se pode fazer nada. Resta apenas a submissão, a aceitação passiva e apática. Nenhuma tragicidade, nenhuma grandeza, apenas a banalidade da morte.

Não deve haver surpresas sobre a origem desse depoimento que dá nome ao texto. Ninguém melhor a pronunciá-lo que um presidente fascista. No entanto, que a explicação não se encerre aí. É preciso compreender como esse discurso é representativo para uma larga escala da população. Para apontar algo nesse sentido, peço licença para contar um caso pessoal.

Estou de mudança. O contrato de aluguel se encerrou. Quando soube, um mês atrás, que a proprietária não estava disposta a adiar minha saída em razão da pandemia, fui negociar diretamente com ela. A primeira resposta que recebo:

“Por lei, depois que o contrato acaba, você tem 30 dias pra sair. Sem afobamento, tranquilo! Só que vai ter que entregar.”

Death Penalty | Call for action. Ilustração: Ivan Debs, 2018.

“Por lei” foram suas primeiras palavras, foi exatamente a partir daí que ela me deu sua resposta. A lei está escrita. Não há nada que possa ser feito contra isso. Não há via de contestação possível.

Eu já sabia dos 30 dias, sabia que deveria deixar a casa vazia, limpa, de paredes pintadas, até o dia 14/06. E sabia, também, que estaríamos no pico da pandemia. Expliquei meu receio. Ela responde que a quarentena só vai até dia 11 e que “a única proibição” é usar a máscara. De novo, se impõe a lei: a quarentena imposta por decreto oficial com sua única proibição. Depois, ela disse que tem saído com frequência e vê um grande movimento na rua. Insinuou, com isso, que não há problema em sair.

“Mas o que me preocupa é justamente esse movimento.”

“Eu não sei, eu não posso julgar. Cada um vai pela sua necessidade.”

“Necessidade.” Termo tão caro aos socialistas, tão corrompido. Toda vez que eu saio à rua, me assusta o movimento. Pessoas no bar, pessoas batendo papo na praça, filas para sacar dinheiro, lojas completamente desnecessárias abertas… o que é necessário? Ela segue.

“Cada um sabe onde seu calo aperta. Ou morrer da pandemia, ou morrer de fome. Eu não julgo! Se eu tivesse que trabalhar, ia, mas não pro governo. E não é medo, não. Eu vou morrer! Você vai morrer, todo mundo vai morrer. Um dia, todo mundo morre! Essa é a verdade.”

Respondi que o meu problema não é com a morte, mas com a morte por asfixia. A isso, ela me retornou uma sonora gargalhada.

“Eu lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”, disse o presidente da república.

O fatalismo, ensina Martín-Baró¹, se inscreve sob o signo da lei divina: o destino está selado por uma força superior, alheia, intocável, inquestionável. Diz ele em 1987:

“Parece que os povos latino-americanos estão imersos em um cochilo forçado, um estado de dormência que os mantém a margem de sua própria história, sujeitos confinados em processos que outros determinam, sem que a semiconsciência de sua situação permita criar outra coisa que não solavancos esporádicos, como quem se agita para não cair totalmente no sono.”

Processos que outros determinam, como a lei ou o mercado. A lei divina, ensina Bakunin², se confunde com a lei do Estado e das classes dominantes. Assim que a heteronomia e a dominação se impõem e se justificam sobre as vidas (e as mortes) dos milhões. Nessa correlação de forças unilateral não há possibilidade de reversão do destino. Não há negociação.

A mesma banalidade imposta ao genocídio da população preta e indígena, agora apenas ampliada ao conjunto total da população. Isto é; não aos ricos e poderosos, é claro. A estes todas as dores, pesares, orações e homenagens. Não existe destino fatal que se interponha ao valor do dinheiro, não existe juízo final, não existe lei divina, não existe lei nenhuma. Aos ricos, a imortalidade. Aos pobres, a morte. Está escrito.

Notas de rodapé:

¹ - “O latino indolente: caráter ideológico do fatalismo latino-americano”, no livro Crítica e Libertação na Psicologia: estudos psicossociais.

² - “Deus e o Estado”. Ver também: Eduardo Colombo, “Análise do Estado / Estado como paradigma de poder”.

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Pablo Pamplona
vulgar

Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.