O mundo mudou e a ficha caiu pra direita

A confiança nas instituições oculta e nega um afeto primordial para a nossa ação e movimento: a nossa raiva.

Pablo Pamplona
vulgar
4 min readApr 1, 2020

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Em entrevista recente com o Vladimir Safatle, o Fernando Haddad faz uma longa digressão sobre como, depois da Segunda Guerra Mundial, a sociedade parecia caminhar “para melhor”:

“Os chamados 30 anos de estabilidade social democrática [1945-1973, que ficaram famosos como “Trente Glorieuses”, ou “Trinta Anos Gloriosos”]. Direitos sociais cada vez mais amplos, uma certa afirmação dos direitos civis que não estavam dados no pré-guerra, a questão do negro nos Estados Unidos, da mulher, enfim, vários temas surgiram e a questão não só da identidade, mas a questão social. Países desenvolvidos oferecendo saúde pública de qualidade, educação superior de qualidade pra classe trabalhadora, enfim…”

Haddad parece buscar, com isso, algum deslumbre de saída da crise atual. Haveria alguma possibilidade que, depois da pandemia e da próxima crise de recessão, o Brasil recupere uma “estabilidade social democrática” com um Estado de bem-estar social garantidor de direitos?

Cédula de 5000 francos da União Francesa emitida entre 1945 e 1950.

Mas o Safatle se opõe a essa leitura do período pós-guerra, destacando que, bem, o mundo não se resume aos países do centro global:

[Se] o centro conseguia preservar uma certa ilusão de estabilidade, era a preço da perpetuação de relações coloniais, explícitas ou implícitas. […] Tanto que, quando o colonialismo entra em colapso, o Estado de bem-estar social também entra em colapso. Que é mais ou menos na mesma época. É o final dos anos 60, começo dos anos 70, que teve a crise do petróleo, teve uma série de coisas.”

Mesmo internamente essa estabilidade dos países centrais era apenas relativa:

“Era uma formação de compromisso; que visava durar um certo tempo. […] A partir do momento que a classe trabalhadora perdesse algum tipo de força, os burgueses nacionais iam aproveitar. E foi o que aconteceu.”

Assim foi também com o governo petista. Uma conciliação entre classes que aparentava beneficiar a todos, mas que, mais cedo ou mais tarde, significaria um golpe — não só aquele golpe contra a Dilma Rousseff, mas sobretudo aquele contra a classe trabalhadora que já começava, inclusive, na gestão da ex-presidenta. Também aqui, no Brasil, o período de aparente “estabilidade social democrática”, de aparente garantia de direitos durante os governos petistas, não passavam de um pacto com data marcada para acabar. A estrutura que garantia os privilégios da classe dominante nunca foi tocada e é simplesmente pueril acreditar na boa vontade dessa gente.

Raoni Metuktire e manifestantes em meio à repressão policial contra o Comitê Popular da Copa e a Mobilização Nacional Indígena, em 2014, nos arredores do estádio Mané Garrincha. [Fonte]

Voltamos a abril de 2020.

O mundo em que vivíamos dois meses atrás não existe mais. E também é pueril acreditar que ele tende a caminhar na direção de um “progresso”. Nem toda tempestade traz depois uma calmaria; algumas podem deixar só o medo. O mundo mudou e a ficha não caiu. Marcelo Freixo, por exemplo, acha que “não é a hora” de um impeachment… de um presidente genocida. Se não agora, quando será? O que se espera? Ou mesmo para além de um impeachment, o que pode haver? Há alternativa?

Não para a esquerda eleitoreira, que continua defendendo as instituições “democráticas” do Estado liberal. Por hora, a oposição à extrema-direita bolsonarista fica para a própria extrema-direita, representada na figura autoritária e ultraliberal do Doria ou até, quem sabe, do próprio Guedes. Os líderes e partidos mais influentes da esquerda brasileira continuam desviando ela do seu viés original e necessário: a ruptura total com o sistema capitalista. Buscam, em vez disso, como Haddad, uma justificativa histórica à esperança de uma “estabilidade” futura. Passando a crise, acrescenta a lógica do Freixo, poderemos enfim agir.

Tirinha de André Dahmer, maio de 2017.

Essa confiança nas instituições, essa crença na possibilidade de uma razão iluminista pós-crise, essa pretensão de uma racionalidade bem-comportada, esse excesso de cálculo político para esperar “a hora certa”, tudo isso indica uma letargia social que precisa ser superada. Ela oculta e nega um afeto primordial para a nossa ação e movimento: a nossa raiva. Não a raiva contra outras pessoas, mas a raiva contra a injustiça social. Ódio de classe.

Aprendemos a domesticar e controlar esse sentimento enquanto, veja só, aprendemos a confiar no medo. Não convém deixar-se dominar pela raiva, está certo, mas a psicologia ensina que convém ainda menos negá-la. O melhor que podemos fazer é assumir ela como parceira e ouvir o que ela tem a nos dizer.

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Pablo Pamplona
vulgar
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Mestre e doutorando em Psicologia Social pela USP. Pesquisa a memória de lutas sociais.