Por que precisamos falar sobre "O Dilema das Redes", da Netflix

É possível criar uma relação menos tóxica com as redes sociais sem viver desconectado?

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7 min readSep 18, 2020

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Nada grandioso entra na vida dos mortais sem uma maldição." (Sófocles). Quando algo vira hit na internet, a gente aciona o botão de alerta ⚠. Se tá todo mundo falando, pode ser polêmico — e polêmica sempre demanda checagem dos fatos. E se hitou é porque, de alguma forma, o assunto se conecta com algo que já cutucava o imaginário social. Por recomendação da internet, assistimos ao documentário da Netflix O Dilema das Redes, e entendemos que o filme está em alta porque existe uma angústia global para falar sobre como nos sentimos, de fato, em relação às redes sociais.

Trailer legendado do documentário "O Dilema das Redes", da Netflix

O Dilema das Redes traz depoimentos de especialistas e ex-funcionários das maiores empresas da internet hoje (entre elas, Facebook, Google, Instagram, Pinterest, Twitter), costurados a uma narrativa de ficção pra ilustrar as relações de dependência de uma família americana com a internet.

“Você dá uma olhada no smartphone antes de fazer xixi de manhã ou enquanto faz xixi de manhã?”, questiona Roger McNamee, ex-investidor do Facebook e um dos entrevistados do documentário — o que nos faz pensar: em tempos de pandemia, essa relação só piorou (quem nunca acordou de madrugada para um xixi e perdeu horas scrollando a tela?).

Vamos às razões pelas quais precisamos (mesmo) repercutir esse assunto, goste ou não do filme:

1. Sem perceber, nos transformamos em meros produtos de um mercado multibilionário.

“Nos primeiros 50 anos do Vale do Silício, a indústria criava produtos…. hardware, software eram vendidos aos clientes. Simples. Nos últimos 10 anos, as maiores empresas do Vale do Silício operam vendendo seus usuários.” (Roger MacNamee, ex-investidor do Facebook)

Basicamente, o que essa galera defende é que toda vez que vc acha que está quebrando a internet, a internet é que está quebrando vc. Isso inclui nós, reles mortais, e a própria Kim Kardashian no seu Olimpo de influencers.

2. Nos tornamos uma sociedade manipulada, que não sabe mais (nem consegue concordar) sobre o que é verdade ou não.

“Nunca antes na história, 50 designers, brancos, de 20 a 35 anos, na Califórnia, tomaram decisões que teriam impacto em 2 bilhões de pessoas”. (Tristan Harris, ex-Designer Ético do Google)

Dentro de uma dinâmica corporativa, em que a atenção dos usuários é um produto comprado por anunciantes, os entrevistados explicam que o trabalho das gigantes da tecnologia é nos condicionar para consumir anúncios. Mesmo que isso signifique interferir no comportamento de uma sociedade inteira e na forma como ela se organiza.

“Se você quer controlar a população do seu país, nunca houve algo tão efetivo quanto o Facebook”, resumiu MacNamee.

Isso te faz lembrar alguma coisa?

A manipulação é um ponto bastante sensível dentro de toda a narrativa de O Dilema das Redes. É o fio condutor do nosso relacionamento com as redes sociais hoje e razão pela qual, sejamos honestos, desenvolvemos uma dependência visceral de fazer parte dela. Ainda que se saiba quais são as regras do jogo, como é o caso dos entrevistados do filme, fica difícil resistir à tentação de tentar zerar as notificações e saber o que há de novo — tal qual um ratinho correndo numa roda que não para nunca.

“Se você rola o dedo pra baixo e a página atualiza, haverá algo novo logo acima. Rola o dedo pra baixo de novo, e ela atualiza de novo. Todas as vezes. Isso é o que em psicologia chamam de ‘reforço positivo intermitente’.” (Joe Toscano, ex-UX Designer do Google sobre o conceito de "scrolling", ou basicamente rolar os dedos pelo feed da sua rede social favorita.)

Essa é só uma das "mágicas" que pessoas que efetivamente ajudaram a criar as redes sociais admitem serem usadas nesse modelo de negócios.

3. Isso é ético? O quanto o uso dos nossos dados para nossa própria manipulação demanda regulamentação urgente?

A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), com início de vigência em agosto deste ano no Brasil, vem como uma resposta à falta de regulamentação no território digital. A ideia da lei é garantir direitos aos titulares dos dados e estabelecer normas de uso e compartilhamento desses dados por quem os controla (ou seja, nosso amigo Google, o seu Zuckerberg e até nossa best Netflix).

Mas o quanto a LGPD combate o uso de recursos psicológicos para condicionar nosso comportamento por essas empresas?

“Equipes de engenharia têm a tarefa de hackear a psicologia das pessoas para conseguir mais crescimento, mais engajamento, mais usuários, mais interações que convidem mais pessoas”. (Tristan Harris, sobre o conceito de Growth Hacking, aplicado no modelo de negócios das redes sociais)

É tênue a linha entre o que é negócio e o que é, de fato, legal. Foi assim que Mark Zuckerberg acabou nos tribunais para responder pelo escândalo de mau uso de dados de usuários do Facebook durante as eleições presidenciais americanas em 2016.

4. O sentimento constante de que o algoritmo manda na nossa vida não é conspiração.

“Você diz ao computador: ‘quero este resultado’, e o computador aprende a fazê-lo. E cada dia ele se torna um pouco melhor em escolher o post certo, na ordem correta, para que assim você passe mais e mais tempo naquele produto”. (Jeff Seibert, ex-Executivo do Twitter sobre Machine Learning, recurso que mira otimizar processos a partir de Inteligência Artificial).

O Dilema das Redes dramatiza os papéis do algoritmo além das matemáticas que enlouquecem influenciadores e marcas. No filme, ele é representado quase como um grande big brother com seu gigantesco painel de controle espiando tudo o que fazemos. Mais do que um robô que determina alcance, engajamento, views, o algoritmo define as consequências da manipulação do nosso consumo de conteúdo na internet através da inteligência artificial.

"Modelo" é a definição dos entrevistados para o nosso "eu na internet". “Eles constroem modelos que preveem nossas ações. Ganha quem tem o melhor modelo.”, explica Aza Raskin (apenas a pessoa que criou o conceito de "infinite scroll").

Cada "modelo" recebe informações interessantes ao seu perfil, assim duas pessoas podem ser impactadas por duas explicações diferentes para uma mesma pergunta, por exemplo. O que, no final das contas, podem se transformar em duas narrativas. Quem sabe, em duas afirmações totalmente opostas?

O boom das Fake News e a polarização das sociedades são exemplos práticos do mau uso do algoritmo. Se pessoas são condicionadas a ver o mundo de formas diferentes, a tendência parece ser de cada vez mais nos afastarmos de quem pensa diferente de nós, e nos mantermos no conforto da bolha dos que pensam como nós.

Faz sentido pra vc?

Essa semana, uma ex-funcionária do Facebook publicou um memorando onde denuncia situações em que governantes de diferentes países usaram a rede social para manipular suas populações e os rumos políticos de cada país. Entre as denúncias estão, por exemplo, a demora do Facebook em intervir no uso de robôs para favorecer candidatos em eleições, inclusive no Brasil.

5. O filme traz “dicas” sobre como se relacionar melhor com as redes. Todas paliativas.

Quando os créditos finais do filme aparecem (alerta spoiler aqui!), os entrevistados recomendam algumas formas de construir uma relação mais saudável com as redes sociais:

  • Desativar notificações
  • Desinstalar aplicativos que te façam perder tempo;
  • Não aceitar vídeos recomendados pelo YouTube
  • Não dormir com celular no quarto
  • Evitar que adolescentes usem as redes sociais até o Ensino Médio;
  • Negociar com o adolescente o tempo de uso das redes;
  • Tem mais dicas aqui nesse projeto do Tristan Harris

As dicas, porém, são paliativas, e não pressupõe uma mudança no modelo de negócio ou na regulação maior das redes. O que nos faz pensar que o documentário deixa várias questões em aberto.

6. ‘O Dilema das Redes’ é só a ponta do iceberg.

Muitas questões surgiram a partir do documentário como, por exemplo, qual o interesse dos entrevistados em expor tudo agora? Como falamos lá no começo do post, tudo que hita na internet tem seu lado polêmico, portanto é nossa responsabilidade refletir sobre — e não só engolir o filme como uma pílula da verdade.

O jornalista Bruno Torturra fez uma análise bastante pertinente no Twitter sobre o filme. Vale ler, e dela a gente destaca um ponto interessante:

Reprodução post Bruno Torturra no Twitter

O ponto é: dê atenção a O Dilema das Redes, sem deixar de criticar O Dilema das Redes. Pensar sobre o filme é iniciar uma conversa fundamental sobre nosso próprio futuro e, especialmente, das próximas gerações.

Como podemos criar uma relação menos tóxica com as redes sociais, sem ter que abrir mão de tudo e viver totalmente desconectadxs do mundo?

O dilema está posto. Por aqui, seguimos acreditando no caminho do reset.

Por Terena Miller e Cláudia Flores

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Resetando a cuca e o conteúdo. Nosso olhar sobre a evolução do mindset digital — Por Cláudia Flores e Terena Miller. Instagram: @wewe.digital