Infraestruturas Artificiais

Beatrys Rodrigues
ZERO42
Published in
9 min readJul 28, 2020

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Hey, A.I! Como posso me tornar uma superpotência?

Este texto faz parte do projeto Hey, A.I que condensa os resultados de uma pesquisa que identificou as diversas maneiras em que o uso de inteligência artificial (IA) impacta e irá impactar a sociedade, e quais são as ferramentas (práticas e teóricas) que podem ser utilizadas para resolver problemas.

Este projeto nasceu de um esforço conjunto da Nama (pioneira em desenvolvimento de IA aplicada aos negócios no Brasil) e a zero42 (dedicada a compreender os impactos sociais e criar estruturas necessárias para o desenvolvimento democrático de tecnologias).

Você pode ler o primeiro texto da série aqui.

Desde seus primórdios, esse país sempre foi muito bom, exceto pelo calor insuportável no verão. O povo era considerado muito gentil e as terras, muito bonitas. Hoje em dia, todos nós o conhecemos. Mas se atualmente é um dos países mais avançados do mundo, há menos de 50 anos qualquer um duvidaria de sua ascensão. E não foi fácil — foram várias as promessas, frustrações e obstáculos até chegarem neste ponto.

Até o começo do século, todas as suas estratégias de se tornarem uma economia relevante tinham dado errado. Mas os habitantes sabiam que o país tinha um grande potencial, só não sabiam muito bem por onde começar. Até o dia em que um de seus ministros chegou carregando duas palavras: inteligência artificial. Ninguém sabia muito bem o que era e nem para que servia, mas decidiram apostar nisso como o futuro dessa nação.

Eles não tinham nada. Nem um mísero cientista de dados. Ninguém sabia o que era um algoritmo, um banco de dados ou computação em nuvem. Ninguém nunca tinha investido um centavo em inteligência artificial. A pergunta que rondava a cabeça de todos era:

“Como começar do zero? É possível fazer inteligência artificial aqui?”

Rapidamente, descobriram que inteligência artificial não existe só na imaginação ou no distante mundo digital. Que são necessários muitos fatores físicos para que um ecossistema coerente seja criado. Fatores que passam, necessariamente, por três pilares:

O processamento dá corpo para qualquer inteligência artificial. São os semicondutores, GPU’s e transistores que tornam qualquer tipo de computação possível. Dados são o alimento. Quanto mais dados, melhor estruturados e menos enviesados, melhor é a capacidade de uma instituição em gerar conhecimento relevante de maneira eficiente. E algoritmos, por fim, são a alma: é deles que provém a inteligência, as escolhas e a eficiência com a qual interagimos todos os dias. Foi olhando para esse trinômio que o país deu seus primeiros passos para um novo mundo.

Sem nada, se inspiraram na China para desenvolver sua indústria de computação. Altamente dependente da oferta de outros países, os chineses durante certo tempo importaram quase 100% da sua demanda por certos tipos de semicondutores. O que não durou muito. Quando os Estados Unidos baniram as vendas de Intel, Nvidia e AMD — os maiores fornecedores de microchips no mundo — para o governo chinês, não coube outra saída.

Um maior controle da produção de semicondutores se mostrou necessário para que a China se tornasse uma potência mundial. Foi então que o governo lançou os “Diretrizes Nacionais para o Desenvolvimento e Promoção da Indústria de Circuitos Integrados” (2014) e a política de “Made in China 2025” (2015). Além disso, também lançou um fundo de investimento com mais de US$ 20 bilhões de dólares captados exclusivamente para desenvolver a indústria local. Incentivos fiscais se tornaram a base do fomento dessas empresas, o que acabou trazendo rápidos resultados para a nação chinesa. Em 2016, por exemplo, o Sunway TaihuLight quebrou o recorde de supercomputador mais rápido do mundo, e não tinha nenhum processador norte-americano. Inspirado pelo projeto de sucesso da China, que por muito tempo não foi vista como polo tecnológico, este país passou a se preparar para chegar nesse mesmo lugar.

Naquela época, tudo era em papel. Um país que sempre teve as informações de seus habitantes em diversos documentos espalhados. Era um para identificação, outro para dirigir, outro para votar… Alguns cidadãos às vezes nem documentos tinham. Assim como no Brasil, era normal sofrer com diversos documentos diferentes. Afinal, existiam diversas entidades responsáveis por cada um deles, em uma bagunça burocrática sem fim. A migração para o meio digital se tornou um imperativo no país, caso ele quisesse criar os serviços e produtos que o tornariam líder em inteligência artificial.

Grandes projetos de levantamento e padronização de dados, como o Aadhaar da Índia, se tornaram referência. Por lá, mais de um bilhão de pessoas se inscreveram no programa de cadastramento biométrico — retina, impressão digital e rostos — que constituiu o maior esforço da história humana de identificação de cidadãos. Ao longo do tempo, essas informações foram utilizadas por bancos, seguradoras e empresas de telecomunicação para verificar a identidade de seus usuários e evitar fraudes. Programas de política social de alimentação, por exemplo, foram interligados ao Aadhaar, garantindo que diversos subgrupos da população pudessem ser atingidos por esses serviços sociais.

Projetos assim pareciam necessários para desenvolver uma estrutura de dados que pudesse ser utilizada para alimentar os algoritmos da melhor forma possível. Além do governo, as próprias empresas do país também seguiram esses passos, construindo seus data lakes e data hubs. Ali, eles perceberam que tudo depende de dados. Que se não estivessem disponíveis, nenhum conhecimento relevante poderia ser gerado.

Mas nada disso seria relevante se o país não se dedicasse à alma da coisa: algoritmos. Que, infelizmente, ainda dependiam de (muita) inteligência humana. De mão de obra altamente capacitada, de centros de pesquisa e de programas de incentivo. Como nada disso era realidade naquelas terras, o país se voltou para duas grandes referências neste quesito: a China e o Canadá.

A China, em poucos anos, foi capaz de se tornar um dos grandes pólos internacionais de inteligência artificial. Para isso, grandes incentivos privados e governamentais se voltaram para o fomento à educação internacional de seus estudantes. Famosas universidades ocidentais passaram a receber estudantes chineses, que lá aprendiam e levavam conhecimento de volta para o país. Como formar acadêmicos internamente, em um primeiro momento, era demasiadamente difícil, esse tipo de incentivo foi chave para garantir que uma base sólida de conhecimento acadêmico de ponta fosse levada para lá.

Formar pessoas no exterior era só o começo. Por isso, os olhos também se voltaram para o Canadá. Com foco em manter seus talentos, deu-se origem aos diversos programas de incentivo educacional da província de Quebéc, às grandes mentes que se concentram em Montréal e aos vários programas de incentivo financiados por multinacionais ali. Grandes institutos de Ontario — Vector Institute, Waterloo.ai e CIFAR — garantiam produção científica de alta expressividade. Além disso, o Canadá também se abriu para imigrantes externos, com a ambição de se tornar um pólo internacional de pesquisa em inteligência artificial.

Mas não é só com conhecimento de ponta que se forma uma potência. A China, novamente ela, teve como grande trunfo educar um vasto número de engenheiros em ferramentas de inteligência artificial — deep e machine learning. Foi assim que sua indústria começou a aplicar mais e mais das descobertas feitas em outros países, fomentando uma cultura empreendedora de tentativa e erro que vez ou outra criava grandes unicórnios. Parcerias público-privadas garantiam expressivos ganhos para as startups chinesas, que se beneficiam de um Estado forte para dar suporte a atividades outrora muito arriscadas.

O país procurou seguir tudo isso. Criou, usando expertise e infraestrutura externos, as bases para que sua indústria pudesse ao menos começar. À medida que a necessidade de aplicações mais específicas e de maior eficiência se tornou presente, ele passou a fomentar sua indústria nacional. Fez grandes projetos de extração e padronização de dados para grande parte de sua população. Criou programas de incentivo para o ecossistema empresarial de suas principais cidades e de formação e atração de talentos nacionais e internacionais.

Tudo ia de vento em popa, até que a época dos escândalos começou. Seu grande projeto de armazenamento de dados pessoais, assim como na Índia, mostrou que diversas questões sobre privacidade ainda precisavam ser melhor definidas. Constantemente vítima de ataques domésticos e internacionais, a mídia noticiava mensalmente algum grande caso de vazamento de dados — incluindo venda de informações pessoais pelo WhatsApp, quando deveriam estar em posse do governo. O discurso público se viu completamente tomado por bots, que inundavam a internet com discursos de ódio, fake news e deepfakes.

Um de seus principais institutos se viu envolvido em diversas polêmicas por desenvolver aparatos autônomos para guerra. Suas instituições financeiras constantemente eram pressionadas a explicar o porquê de seus algoritmos tomarem determinadas decisões. Vários eram os problemas com algoritmos pouco eficientes, que não garantiam segurança para seus usuários. Ninguém queria mais lidar com robôs, pois já não era mais possível saber de antemão se eram humanos ou não.

Foi ali que seus habitantes se deram conta: “Inteligência artificial não precisa ser apenas possível. Ela precisa ser desejável. Precisa ajudar a construir um mundo no qual queremos viver”. Foi nesse momento que a nação passou a se perguntar:

“Como fazer com que inteligência artificial seja benéfica para nós?”

E é aqui que entra um aspecto chave do desenvolvimento de inteligência artificial: infraestrutura sócio-política. Quando o país se negou a olhar para os aspectos regulatórios da tecnologia, passou também a sofrer com diversos problemas políticos e sociais. Suas empresas, que antes navegavam sem um guia dos limites do desenvolvimento da tecnologia, mergulharam em um mar de restrições e processos que nunca terminava. A população, com medo de ser explorada, passou a rejeitar produtos que diziam ser inteligentes. Décadas após o famoso “Inverno de IA”, o país experimentou seu próprio inverno político.

Foram alguns anos vivendo nesse cenário. Que originou uma resposta quase tão severa quanto: com medo de que a confusão se mantivesse, foram criados vários comitês para regulamentação de inteligência artificial em diversas áreas. Seu propósito era combater toda e qualquer influência maléfica que a tecnologia pudesse ter. Mas, como era de se esperar, o resultado não foi dos melhores. Em meio aos vários escândalos políticos, novas regulamentações surgiam a torto e a direito, diariamente. E, nessa, toda e qualquer intenção de inovar se perdia em um mar de barreiras jurídicas.

O país sentiu na pele, durante quase uma década, um dos maiores trade-offs no desenvolvimento de inteligência artificial: como regulamentar e garantir benefícios sem frear demais o ritmo de inovação?

Esquemas regulatórios passaram a ter extrema relevância para o país. Como regulamentar? Quais leis, agências e acordos seriam necessários para tornar seu desenvolvimento melhor para a sociedade? Foram testadas várias abordagens regulatórias. Assim como em vários países do mundo, foi criada uma comissão especializada formada por especialistas de diversos backgrounds. O CNIA — Comitê Nacional de Inteligência Artificial — pegou para si o papel de centralizar e fomentar esse tipo de discussão com diversos atores sociais.

Um dos principais eixos de atuação do CNIA era o foco em processos de participação. Para seus membros, isto era fundamental. Inspirada nas abordagens norte-americana e inglesa, frequentemente passou a realizar audiências públicas com empresas, membros do governo e da sociedade civil para discutir sobre aspectos regulatórios diversos, seus impactos e potenciais linhas de ação.

As empresas viram que suas atividades poderiam ser melhor recebidas por seus clientes caso se pronunciassem publicamente sobre o cuidado que tinham com pesquisa e desenvolvimento. Passaram então a se inspirar nos códigos de ética e guidelines próprios de diversas multinacionais.

Educação não pôde ficar de fora. Inteligência artificial — seus aspectos técnicos, perigos e questões — se tornou matéria de escola. Uma população cada vez mais instruída se apaixonava cada vez mais pelo tema, contribuindo com novos avanços e elevando o nível da discussão por todo o país.

Cooperação internacional também se tornou um ponto chave. À medida que seus técnicos se tornavam reconhecidos pelo mundo, o país passou a estreitar os laços entre diversos países e criar novas formas de cooperação. Afinal de contas, seus robôs e algoritmos eram utilizados mundo afora. O CNIA via esse esforço não apenas como uma forma de integrar melhor interesses do mundo, mas também de garantir que sua voz fosse ouvida e sua influência fosse reforçada.

E segurança, por fim, tomou a frente de todos os debates. Embaixadas de dados foram criadas, seguindo o exemplo da Estônia, que garantia que os dados públicos pudessem ser armazenados de maneira segura, muitas vezes em solos estrangeiros. Acadêmicos e empresas se juntaram para criar novas formas de garantir que dados fossem utilizados da maneira mais eficiente e segura possível. Um tempo de testes e projetos variados: foram feitos os primeiros protótipos homomórficos, as primeiras certificações para algoritmos, o primeiro programa de autenticação em massa de vídeos e notícias, e o uso generalizado de técnicas de aprendizado federado.

Demorou mais de 30 anos. Mas assim se deu a ascensão desse país. Que não tinha absolutamente nenhuma base para se desenvolver tecnologicamente, porém entendeu que é necessária muita infraestrutura para possibilitar o desenvolvimento de um ecossistema de inteligência artificial. E que viu que de nada adianta se tornar uma potência técnica se não existir também uma aparato sócio-político que dê estrutura para tamanho conhecimento.

A história deste país é também a história do Brasil, da Índia, do Quênia, do Cazaquistão, da China, da França e do Canadá. É a história dos grandes conglomerados empresariais, bancos e startups que apostam que inteligência artificial é a resposta. Uma ilustração de um mundo que está de portas abertas para IA, e que está descobrindo aos poucos quais delas é melhor atravessar.

Gostou? Confira a série completa em https://simple.nama.ai/hey-ai

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Beatrys Rodrigues
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Trying to inspire and understand the world. Tech and gender, social impacts of AI and gaming. PhD Candidate at Cornell, co-founder zero42.