Sucesso catastrófico

Editor da Zumbido
Zumbido
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15 min readJun 10, 2021

Envolto em mistérios, o obscuro álbum de Rita Lee e Lucinha Turnbull analisado por Thabata Arruda

A ilustração psicodélica na capa do LP cuja autoria é desconhecida

Entre 1966 e 1972, Rita Lee lançou ao lado dos irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista oito discos, dois deles assinados como artista solo, mas ainda sob a curadoria criativa e musical da família. Foi só depois do lançamento de Hoje é o primeiro dia do resto da sua vida que a família a convidou para se retirar da banda Mutantes, com a desculpa patriarcal de que Rita não cumpria requisitos virtuosos para seguir um caminho musical progressivo, a la Yes. O que na época foi motivo de profunda frustração, pouco tempo depois tornou-se alívio quando Rita ouviu e viu o caminho sonoro que a banda passou a seguir sem ela.

A ruptura total com a música dos Baptistas foi primordial para testemunharmos o nascimento de uma das maiores artistas e compositoras deste país, tanto do ponto de vista musical como também mercadológico, já que Rita, até hoje, é uma das maiores vendedoras de discos do Brasil.

Do momento da expulsão até chegar a Fruto Proibido, e emplacar músicas que se transformariam em hinos como “Ovelha Negra”, Rita passou por um período curto, porém importante, que muita gente não conhece, momento esse que, talvez, ela jamais tenha vivido novamente: o de experienciar e compreender quais caminhos ela desejaria percorrer pós-Mutantes.

O hiato sem banda tinha cara de um duo feminino e foi batizado de Cilibrinas do Éden. Como a própria Rita relata, um filho batizado antes de nascer de fato. Efêmero, mas essencial para o que viria a seguir.

Não cabe me aprofundar aqui sobre a importância dos Mutantes no cenário musical brasileiro. Confesso que a entendi tardiamente, aliás. Os vocais desafinados de Arnaldo nunca soaram bem para meus ouvidos de cantora de coral. Apenas quando passei a pesquisar música brasileira a fundo, e com louca admiração, me dei conta de que a figura daquele trio e tudo o que eles criaram subverteram as sonoridades e os bons costumes instrumentais da música popular brasileira da época.

Ali, entre os irmãos Sérgio e Arnaldo, estava Rita Lee, que trazia frescor e graça ao conjunto da obra. Caetano Veloso, em entrevista, já declarou que ela foi sua Mutante favorita desde o início. Também foi a minha, claro. Em cada imagem e foto que revisitei, me encantava ver Rita, tão jovem, com instrumentos estranhos, emanando, principalmente, diversão.

Do compacto O’Seis, de 1966, até o álbum Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, de 1972, Rita Lee lançou junto dos Mutantes oito discos como banda e dois lançados como artista solo, estes dois últimos sob encomenda e contrato com a gravadora Philips, através de André Midani, e ainda com as participações dos irmãos como instrumentistas e compositores.

“A expulsão dos Mutantes não foi um momento tranquilo para Rita. Ela já declarou em diferentes entrevistas e em seu próprio livro que, apesar da tranquilidade posterior, o ocorrido a frustrou e magoou demais.”

Ainda em 1972, em um episódio que interpreto como um misto de ciúme e/ou puro machismo, Rita foi convidada a se retirar dos Mutantes devido ao novo momento que a banda trilharia, caminho esse em que não cabia Rita Lee e sua musicalidade intuitiva e não virtuosa. Começava a fase “the braziliãn Sim”, apelido dado ironicamente pela própria Rita, após assistir e ser iluminadora de um show da banda, ocasião em que entendeu, com alívio, a importância de não fazer mais parte daquilo.

A expulsão dos Mutantes não foi um momento tranquilo para Rita. Ela já declarou em diferentes entrevistas e em seu próprio livro que, apesar da tranquilidade posterior, o ocorrido a frustrou e magoou demais. Principalmente ao compreender que parte daquilo se devia, sim, ao fato de ser mulher.

A dúvida sobre seu talento e capacidade técnica a levou para um lugar de insegurança muito comum entre mulheres artistas e a afastou de seu violão durante um período.

De volta à casa dos pais, na Vila Mariana, ganhou tempo de respiro e foi lá que compôs sua primeira música pós-expulsão, a clássica “Mamãe Natureza”. Não sei se eu estou pirando ou se as coisas estão melhorando são os primeiros versos da canção que deu a Rita a primeira consciência criativa, que a fez perceber sua autonomia e controle sobre harmonia, melodia, letras e ideias.

A narrativa discorre e denota os questionamentos sobre o seu então presente musical. Ela canta Não sei se eu vou ter algum dinheiro ou se eu só vou cantar no chuveiro. Angústia essa que passava por sua cabeça, principalmente após voltar à casa de Charles, seu pai, que dizia firmemente que música era um hobby e não profissão. Enquanto Rita estava ali, sem banda, também se empoderava gradualmente de sua própria criação.

Um bate-volta a Nova York e uma temporada em Londres foram primordiais para a nova fase que estava por vir. Afinal, foi na terra da rainha que Rita, usando hena marroquina, adotou os seus icônicos cabelos vermelhos, adquiriu novos instrumentos e reencontrou amigos como Gilberto Gil, primordial para sua compreensão profunda sobre música brasileira.

No mesmo ano em que Elis Regina promovia a marcha contra a guitarra elétrica, Gilberto Gil levava ao palco do III Festival da Música Popular Brasileira o trio Os Mutantes para defender ao lado dele a música “Domingo no Parque”, que levou o segundo lugar e aproximou a banda do movimento tropicalista.

O instrumento ganhou relevância na década de 1960 e era empunhado no palco até então por nomes como Tony Ossanah, Toninho Horta, Luís Carlini, Pepeu Gomes, entre outros. O que há em comum entre todos eles? São homens, claro.

Até 1972, não havia nenhuma mulher a ganhar tal relevância no Brasil, principalmente no rock. Quem abriu essa frente para tantas outras mulheres foi Lúcia Maria Turnbull, ou Lucinha Turnbull.

Filha de pai escocês e mãe brasileira, Lucinha nasceu em 1953 e morou em Londres entre os anos 1969 e 1970, período em que teve aulas de guitarra e participou do grupo folk Solid British Hat Band. De volta ao Brasil, tomou conhecimento de uma banda chamada Mutantes. A faixa etária próxima entre eles e a mesma predileção pelos Beatles a atraiu fortemente e a fez se aproximar da turma. Ficou amiga, principalmente, de Rita Lee.

Segundo a própria Lucinha, no documentário produzido por Luiz Thunderbird e Zé Mazzei, quem a ajudou a escolher sua primeira guitarra foi o produtor musical e músico Liminha, em Londres, onde passava mais uma temporada, dessa vez com a própria Rita Lee.

Rita Lee e Lucinha Turnbull no Phono 73 | Foto: Autor Desconhecido / Crush em Hi-fi

Phono 73 — O canto de um povo

Em 1973 a então gravadora PolyGram (antiga Philips e atual Universal Music), decidiu produzir um festival com quatro dias de apresentações para promover o seu ilustre catálogo de artistas.

Foram reunidos no Parque Anhembi, em São Paulo, Elis Regina, Fagner, Gilberto Gil, Jorge Ben, Erasmo Carlos, Jorge Mautner, Raul Seixas, Ronnie Von, Gal Costa, Hermeto Pascoal, Maria Bethânia, Odair José, Nara Leão, Jair Rodrigues e outros.

A produção do festival ficou a cargo de André Midani e Armando Pittigliani, respectivamente presidente e diretor de relações-públicas da gravadora. E na direção executiva e produção dos shows estavam Manoel Carlos e Guilherme Araújo.

As apresentações aconteceram entre os dias 10 e 13 de maio. O primeiro dia foi reservado para um concerto livre com Rita Lee, Lucinha Turnbull e Os Mutantes.

Em sua autobiografia, Rita diz que o convite veio através de Mick Killingbeck, jornalista inglês que na época assumiu o papel de empresário dos Mutantes. Segundo Mick, a produção do evento pensou nela para abrir o show da então agora banda progressiva.

“Para Rita, foi um ‘sucesso catastrófico’, mas o que ela não sabia é que naquela única apresentação de Cilibrinas do Éden, nascia um dos discos mais cultuados do submundo da música brasileira.”

Naquele momento, Rita não tinha nenhuma banda e também não pensou em declinar o convite. Assim, o primeiro nome em que pensou foi o da “única groupie talentosa dos tempos mutantescos, uma guitarrista com ‘munheca de macho’”, Lúcia Turnbull.

Cilibrinas do Éden foi o nome de batismo antes mesmo de ensaiarem pela primeira vez. De acordo com algumas fontes, cilibrina era o apelido para se referir a maconha. O nome também é utilizado no Nordeste, mais especificamente no município de Lagarto-SE, e diz respeito à comemoração antecipada da festa junina.

Para frustração da plateia, que em sua maioria aguardava a atração principal da noite, o repertório compunha-se de canções inéditas de Rita com contribuição de Lúcia. Tocaram então “Mamãe Natureza”, música de Rita, que tinha solo e riff de Lúcia, “Bad Trip” (que tempos depois virou a canção “Shangrilá”), “Jardim do Éden” e uma ou outra do Seals & Croft, um “repertório fofinho e tolinho”. O figurino era Lucinha com asas de anjo e Rita com antenas de joaninha.

Sobre a apresentação Rita diz em seu livro:

Em “Mamãe Natureza” rolou uma chuvinha de papel no palco, uma vaia aqui e acolá. Aguentamos firmes. Na segunda música, as vaias se transformaram em trovão e, antes que um raio caísse em nossas cabeças, recolhemos nossa insignificância e saímos rapidinho de cena. Sucesso catastrófico. Convenhamos, quem aguentaria ouvir duas fadinhas enfadonhas cantando tchururus antes de uma banda de rock progressivo?

Quando se vive a história e não se toma o distanciamento temporal devido, fica mais difícil compreender, de fato, o que está acontecendo ali. Para Rita, foi um “sucesso catastrófico”, mas o que ela não sabia é que naquela única apresentação de Cilibrinas do Éden, nascia um dos discos mais cultuados do submundo da música brasileira.

Embora Rita Lee já tivesse alcançado um renome, não foi através de uma música acústica que ela foi projetada, mas sim devido a uma banda com guitarras, distorção e bateria. E o que ela e Lúcia experimentavam ali, no palco do Anhembi, era algo bem diferente do que o público estava habituado a ver. Entretanto, quem estava lá testemunhou uma Rita com muito mais autonomia sobre sua própria música.

A contracapa do disco “pirata”

O disco pirata

Quando dei o primeiro google no disco Cilibrinas do Éden, as poucas informações que garimpei foram incompletas, datas desencontradas e fontes desconexas. Foi através de sua autobiografia e entrevistas, tanto de Rita quanto de Lúcia, que entendi a origem nebulosa do álbum Cilibrinas do Éden, que, na verdade, nunca existiu.

Depois do “sucesso catastrófico” e frustrado das Cilibrinas no festival Phono 73, Rita se deu conta de que precisava novamente de uma banda.

Lúcia conhecia uma do bairro da Pompeia que se chamava Lisergia e a indicou para Rita. No dia da audição ela ouviu Lee Marcucci no baixo, Emilson na bateria e Luís Sérgio na guitarra. Na mesma ocasião estavam o artista visual Toninho Peticov e o dramaturgo Antonio Bivar, que observaram atentamente o ensaio, pontuando no fim diferentes considerações sobre a jam apresentada.

Uma das mudanças primordiais apontadas por Bivar foi a respeito do nome. Cilibrinas não cabia e muito menos Lisergia, foi quando ele sugeriu o nome Tutti Frutti. Ficou e pegou.

Lúcia assumiu os solos e Rita os teclados, violão e outros instrumentos irreverentes, como theremin e melotron, por exemplo.

Rita Lee se viu novamente imersa em um clube do Bolinha que afirmava que, para fazer rock, “precisava ter culhão” e ela queria provar a si mesma que “rock também se fazia com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê”. Por isso, criou um repertório cada vez mais com sua assinatura, tanto na sonoridade, quanto na narrativa.

A banda estreou no Teatro Ruth Escobar em uma temporada que durou cerca de três meses e contemplava um setlist com composições inéditas de Rita. Uma ou outra as Cilibrinas já haviam tocado no festival de 73.

“Na época, André Midani cancelou o lançamento devido à má qualidade de gravação e execução das músicas. O disco foi inteiro registrado com toda banda sob efeito de LSD.”

Esse período foi importante também para Rita se descobrir e se assumir front stage. Notou que o público se inflamava muito mais quando ela deixava os teclados um pouco de lado e assumia o microfone, à frente da banda.

A partir daqui, a história obscura do álbum Cilibrinas do Éden começa, talvez.

Rita diz em sua autobiografia que, pós-temporada no Ruth Escobar, ela e banda mudaram-se para o Rio de Janeiro, onde em três semanas gravaram um primeiro registro do repertório do show nos estúdios da PolyGram. O disco-titanic, como ela o apelidou, foi intitulado apenas de Tutti Frutti, mas nunca foi lançado. Na época, André Midani cancelou o lançamento devido à má qualidade de gravação e execução das músicas. O disco foi inteiro registrado com toda banda sob efeito de LSD.

De acordo com a discografia presente no livro de Rita, o disco Tutti Frutti foi gravado em 1973 e nunca lançado oficialmente. O setlist contém as músicas: “Mamãe Natureza”, “Paixão da Minha Existência Atribulada”, “Festival Divino”, “Bad Trip”, “Ainda Bem”, “Nessas Alturas dos Acontecimentos”, “Cilibrinas do Éden”, “E Você Ainda Duvida?”, “Tutti Frutti” e “Minha Fama de Mau”.

A outra história contada é que, em dezembro de 1973, no Estúdio Eldorado, em São Paulo, e com produção de Liminha (sua primeira como produtor musical), Rita, Lúcia e os então Tutti Frutti gravaram ao vivo, diante de uma pequena e seleta plateia, o disco que viria a ser o cancelado Tutti Frutti e que foi lançado 35 anos depois de maneira não autorizada sob o nome de Cilibrinas do Éden.

De acordo com matéria do jornalista Marcus Preto, publicada em 2009, o álbum “pirata” foi produzido por uma obscura gravadora espanhola comandada por brasileiros chamada Nosmokerecords. A primeira tiragem, lançada ao que tudo indica em 2008, contou apenas com 500 exemplares em CD e mais 500 em vinil 180 gramas e numerados à mão.

Tudo no disco é mentira: a ilustração lindíssima da capa, em que ninguém encontra os créditos, o selo da Philips, a ordem e a quantidade das músicas.

Se compararmos os setlists das duas gravações, veremos que as músicas diferem na ordem, e, enquanto o Tutti Frutti gravado no Rio possui a música homônima, o gravado em São Paulo possui no lugar “Vamos Voltar ao Princípio Porque lá é o Fim” e “Gente Fina é Outra Coisa”.

Em qual história acreditar? Bem, eu gosto das duas e muito provavelmente ambas aconteceram. A dúvida é a qual áudio o selo espanhol teve acesso para prensar o raro disco.

A certeza que temos é que, tanto em uma situação quanto em outra, o álbum foi cancelado por Midani, o que motivou uma Rita inconformada, embora ciente da má qualidade da gravação, a procurá-lo sem sucesso, mas encontrando um também insatisfeito Tim Maia na sala de espera da PolyGram. Diz a lenda que, depois dos desabafos, quebraram juntos o escritório do big boss da gravadora.

Certo, porém, é que não podemos deixar de acreditar e creditar que Rita e Lúcia criaram juntas uma experiência sonora que foi ponte, ou melhor, catapulta, para uma Rita Lee compositora adquirir cada vez mais espaço e segurança naquele ambiente onde ter culhões era muito mais importante que talento, e também para Lúcia ganhar a relevância que a faz hoje ser reconhecida como uma das mulheres precursoras na guitarra elétrica.

Alguns vários rips do disco circulam pelo YouTube. O disco não se encontra nas plataformas de streaming.

Cilibrinas do Éden

O disco lançado pela Nosmokerecords possui uma capa em que, infelizmente, não consegui encontrar os devidos créditos. Mais um mistério dessa prensagem.

Ele abre com a primeira versão de “Mamãe Natureza” com os riffs de Lúcia, como já pontuei antes. É muito significativo essa música abrir esse trabalho, já que se trata da primeira composição depois do rompimento total de Rita com Sérgio Dias e Arnaldo Baptista e faz parte da primeira experiência “nua” em um palco com suas composições.

“E Você Ainda Duvida?” nos lembra muito o que viria depois em Fruto Proibido com “Esse tal de Roque Enrow”, tanto pela letra, uma ode ao rock, quanto pelo arranjo que marca bem o gênero através das guitarras, ritmo e progressões.

Temos também uma versão acelerada e com solo de bateria de “Minha Fama de Mau”, sucesso de Erasmo Carlos, considerado por Rita Lee o pai do rock nacional.

“Gente Fina é Outra Coisa” traz em tom irônico a verdade sobre os bons costumes da época: uma crítica que parece sutil, mas foi alvo de censura, assim como dezenas de canções de Rita ao longo da ditadura.

Na letra em exame, uma jovem insurge-se contra o pátrio-poder ao tentar persuadir um amigo a desacreditar de seu pai, para juntar-se a um grupo juvenil de comportamento duvidoso”, assinala o censor José do Carmo Andrade num documento de 30 de agosto de 1973.

Mais tarde, em 1977, Rita “reaproveitou a música e fez uma letra nova para ela, que foi gravada com o título de “Locomotivas” para a novela de mesmo nome da Rede Globo”.

Paixão da Minha Existência Atribulada” abre a porta para a psicodelia que rege, ora sutilmente, ora de maneira intensa, o resto do álbum. Nessa faixa ouvimos o theremin de Rita em meio aos solos de Lucinha.

“Festival Divino” é a minha favorita. Uma canção teatral. Rita narra um paraíso onde bichos falam e deus é cabeludo. Em uma introdução bastante marcada por uma linha de baixo que ajuda a voz de Rita a ser percebida, algo cada vez mais raro nos últimos registros com Os Mutantes, nos surpreendemos com uma virada na melodia e na harmonia que traz o inferno e seus anjos mal vestidos, com seus ternos, pastinhas, comprando almas e vendendo mentiras.

Em “Bad Trip”, as vozes das Cilibrinas harmonizam e cantam a depressão. Talvez, a mesma que Rita sentiu ao ser expulsa de sua primeira banda e se ver em um lugar de insegurança muito profundo. Depois da primeira parte, as camadas de guitarra e baixo anunciam um caótico solo de theremin e fecham a música com menos pessimismo. Elas cantam: “ainda bem que eu não desisto dessa vida louca”. Ainda bem! Essa faixa deu origem a outra música, “Shangrilá”, lançada em 1980 no álbum Lança Perfume.

“Nessas Alturas Dos Acontecimentos” é um rock mais intenso, parceria com Tutti Frutti e com uma letra direta, que conta com apenas uma estrofe de 5 versos:

Periga até pintar um disco

Tudo pode acontecer

Você vai ver

E quem fica parado é poste

Eu quero é me locomover

Já a letra de “Vamos Voltar ao Princípio Porque Lá é o Fim” parece uma continuação de “Festival Divino”, mas sem o inferno. Apenas o início dos tempos. O jardim do Éden e o desejo de Rita de voltar a ele para entender como tudo acaba.

Cilibrinas do Éden, mesmo antes da publicação pela Nosmokerecords, circulou entre o submundo dos colecionadores e fãs através de fitas cassetes. A única faixa aproveitada e lançada oficialmente foi “Mamãe Natureza”, no álbum oficial de estreia de Rita Lee com o Tutti Frutti, o Atrás do Porto Tem Uma Cidade, de 1974.

Depois da gravação desse disco, Lúcia deixa o Tutti Frutti e se aventura em outros palcos. Acompanhou Gilberto Gil e gravou os álbuns Refavela e Refestança, onde reencontraria Rita Lee no palco. Acompanhou também Moraes Moreira, Erasmo Carlos, Guilherme Arantes e Edgar Scandurra, entre outros trabalhos no teatro.

Em 1980, Lucinha gravou seu primeiro e único disco solo, batizado de Aroma, com uma música homônima composta por Gil especialmente para o álbum.

Rita Lee faria mais uma vez história com Fruto Proibido, lançado em 1975, considerado um marco na música brasileira e no rock nacional. Desse disco saíram sucessos como “Esse tal de Roque Enrow”, “Luz Del Fuego”, “Ovelha Negra” e por aí vai. O resto é história e bem viva.

Percebo a potência de Rita a cada página que leio a seu respeito, a cada performance que revejo, a cada ideia e palavra colocada no mundo. Percebo ainda mais ao escrever sobre um disco que nunca existiu aos olhos dos contratos fonográficos, mas que ainda assim ganhou importância enquanto obra relevante que é. Por sua sonoridade, verdade, ou por colocar duas mulheres, cada uma à sua maneira, transgredindo e abrindo caminhos para outras que vieram e virão. Cilibrinas do Éden, no submundo ou não, merece nossos ouvidos.

Dizem que, talvez por falha de comunicação, talvez por questões de direitos autorais, Lúcia e Rita nunca mais se falaram ou tocaram juntas. Se é lenda ou mais uma lembrança que foi “queimada por incêndios existenciais”, não saberei jamais.

O que sei é que “ainda bem” que Rita não desistiu de sua música, de sua expressão e arte. Ainda bem que se agarrou a seus ovários e útero para criar e segurar o microfone na ponta do palco.

Como diz Lucinha: o tempo passa, a música não.

Thabata Arruda iniciou sua carreira na música há dezoito anos como coralista e mais tarde transitando para as áreas de produção cultural e pesquisa musical. Radicada em Poços de Caldas (MG)desde 2020, passou por instituições como Centro Cultural da Penha, Movimento Cultural Penha e Sesc São Paulo. Também foi parte da startup de música 2DL, onde coordenou os setores de curadoria musical e CRM para a daleGig, premiada plataforma digital de gestão e construção de turnês musicais. Há dois anos dedica-se à curadoria e à pesquisa com foco em mercado, comportamento, hábito e identidade musical. Suas últimas pesquisas e artigos sobre mulheres na música foram publicadas pela revista Zumbido (Selo Sesc). É fundadora do hub criativo Yes, Tupi, focado em produção fonográfica, desenvolvimento de artistas, projetos musicais e conteúdo.

Este texto faz parte da série ÁLBUM — 10 ANOS: DISCOS PARA CONHECER promovida pelo Sesc Belenzinho no mês de abril de 2021 no ambiente digital. O ÁLBUM é um projeto que nasceu em 2011 e trouxe aos palcos da unidade a performance integral de discos importantes da história da música brasileira. Nesta edição virtual, 12 discos brasileiros de gêneros e épocas distintos foram selecionados para escrutínio de jornalistas, críticos e pesquisadores musicais. Confira o livreto com a série completa aqui neste link.

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