A Copa consagrou o que Zidane havia sugerido

O torneio mais importante do futebol reafirmou a característica central das últimas equipes vencedoras: a capacidade de adaptação

Arthur Menezes
5 min readAug 8, 2018

Em 2010, a fotografia da equipe da Espanha era muito parecida com a da equipe do Barcelona. Em 2014, o Bayern foi quem entregou a base do time que chegaria ao tetra alemão. Nos dois casos, a influência de Pep Guardiola foi quase irrefutável. Nos dois casos, consagrou-se o futebol propositivo. Mas os tempos mudaram.

Nas duas últimas Copas, as peças dentro de campo deixaram evidente a influência dos times sobre as seleções. Mas isso nunca se deu apenas por conta dos jogadores. Em 2018, a história, ainda que em outra intensidade, se repete. Só que, dessa vez, a influência não ficou clara nos nomes, mas nas ideias. Mais uma vez a Copa do Mundo consagrou uma tendência: dessa vez, trata-se da adaptação.

Em Três fases de uma década: os pensamentos hegemônicos no futebol contemporâneo, comecei a discussão que retomei em A Copa do Mundo como reflexo das três fases do futebol na década e que pretendo continuar aqui, complementando com o segundo texto algumas ideias lançadas no primeiro. Por isso, sugiro a leitura deles, mas isso não é pré-requisito para esta leitura.

Ao final da segunda rodada da primeira fase da Copa do Mundo, analisei algumas equipes que me chamavam a atenção, sugerindo que a competição confirmava em algum grau as posturas táticas pelas quais já havia transcorrido. Basicamente, reforcei o fato de que muitos times de ponta podem ser classificados entre propositivos e reativos, e que isso é um reflexo do futebol na última década.

Mas a reflexão sobre aquele momento do torneio ficou incompleta, pois eu queria ter mais subsídios para entender se poderia, enfim, começar a classificar algumas equipes como capazes de fazer um futebol de adaptação. Esse esforço requer uma análise mais criteriosa ainda do que aquela feita em relação às equipes propositivas ou reativas. E, para a minha sorte, as equipes finalistas vão bem ao encontro do modelo que venho propondo como a síntese do vitorioso Real Madrid de Zidane.

A personificação em Luka Modrić

Um time que se adapta é um time capaz, necessariamente, de defender e atacar com muito vigor. É capaz de fazer e furar linhas defensivas mais baixas. É capaz de criar situações de gol quando controla o jogo e impedir que o adversário chegue à sua baliza quando ele tem a posse. Um time que se adapta tem a versatilidade de um Modrić.

Luka foi o camisa 10 da Croácia e teve o merecido destaque na campanha da Copa, sendo eleito o melhor jogador da competição. O desempenho, porém, não é surpresa para quem acompanha a carreira do atleta. No Tottenham, ele já conseguia destaque jogando, inclusive, muitas vezes na última posição antes do ataque, como meia avançado. No Real Madrid, em 2014, venceu a Champions jogando algumas vezes logo à frente dos zagueiros, na primeira linha do meio. Luka pode fazer de tudo no meio de campo.

Modrić sabe marcar posicionado, sufocar na pressão alta e conter contra-ataques, sabe participar de construções com muitos toques e também construir jogadas absolutamente verticais. E essas características são a síntese de como funciona o meio de campo de um time nos moldes que aqui detalhamos: sabe jogar sem a bola, passar por momentos de domínio do adversário e ainda assim chegar ao resultado, tanto quanto sabe se impôr e construir várias oportunidades. Ou seja, times desse modelo dependem de jogadores completos no meio.

No caso da seleção croata, Ivan Rakitić também foi muito bem na Copa e se encaixa perfeitamente nessa ideia de resiliência e versatilidade no miolo do campo. Na França, Pogba foi tudo aquilo que dele se espera, e Matuidi, ainda que não tenha o status dos outros mencionados, foi fundamental para dar equilíbrio ao time campeão. Equipes como o Real Madrid, a França e a Croácia dependem de jogadores multifuncionais no meio. Jogadores como a imagem e semelhança de Modrić.

Números de posse variáveis

Como venho dizendo, o time que se adapta não tem um padrão de propor ou reagir desde o começo do jogo. E, mais do que mudar de uma partida para a outra, esses times são capazes de fazer adequações dentro da mesma partida. E isso é o que mais impressiona.

Times como Alemanha e Espanha terminaram a primeira fase tendo sempre mais do que 60% de posse de bola ao final dos jogos. Já a Rússia não passou de 46% e o Irã, dos 37%. Exitosos ou não, esses quatro times passaram pelos primeiros três jogos tendo atuações com números relativamente parecidos em relação a posse e passe. Seus padrões estão bem claros. Já nos casos de Croácia e França, a posse de bola foi variável. Essa questão era só mais um elemento do jogo, não o pilar central.

França e Croácia oscilaram no quesito posse de bola durante a competição.

No PRIMOROSO gráfico que vemos acima, podemos notar que, de fato, não houve um padrão na posse de bola dessas equipes ao longo do campeonato. Mas há outro ponto que chama a atenção: é o fato de que os números mais expressivos das duas equipes se deram quando ambas se enfrentaram. Na final da Copa do Mundo ficou mais claro do que nunca que ter mais ou menos a bola no pé não seria o fator decisivo. Nesse jogo, justamente, foi quando a Croácia mais teve a bola; e a França, menos.

O enfraquecimento da dicotomia Defesa/Ataque

É cada vez mais comum vermos treinadores falando: “Minha defesa começa no meu centroavante”, sobretudo quando saem em defesa de seus zagueiros. A frase é justa e faz todo o sentido. Ela amplia, inclusive, os horizontes em relação ao que se pensou por muito tempo sobre a marcação no futebol. Mas ela é uma frase ainda incompleta. É básica. E isso deveria ser óbvio.

O aprimoramento tático das equipes me sugere com ainda mais força algo que sempre acreditei: separar ataque e defesa por setores é uma aberração no entendimento do futebol. Mas, o que não se nota, é que separar ataque e defesa enquanto analisamos as jogadas é também um deslize na compreensão do esporte. Para mim, nenhum jogador pode, em qualquer momento que seja, fazer algo que só signifique ataque, ou que só signifique defesa. Em cada movimento há uma parte das duas coisas.

Assumindo essa premissa, nos chocamos com o velho ditado que diz que “a melhor defesa é o ataque”. Poderíamos dizer, em alguma medida, que “o melhor ataque é a defesa”, não é? Resumindo a discussão ao óbvio ignorado, enquanto faço um gol, por exemplo, não posso sofrer um gol. Mas deixando o que qualquer um pode pensar sobre o jogo, cabe pensar sobre como esses times que atingem agora níveis táticos impressionantes começam a estruturar sistematicamente seus ataques enquanto defendem — e, da mesma forma, como iniciam um processo de defender enquanto atacam.

O jogador, faça o que fizer, sempre defende e ataca ao mesmo tempo. E isso sempre esteve presente. Mas, então, o que é novo? Os movimentos dentro de campo atendem a essa agenda cada vez mais. Se ao longo do tempo se pode ignorar a multiplicidade de funções de um mesmo jogador, e até mesmo de uma única jogada, hoje, isso não é mais aceitável. Com isso, ninguém pode ficar companhando a jogada, torcendo pelo companheiro, sem se envolver. Todos têm de estar sempre jogando. E assim se faz o futebol em sua plenitude.

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