A Dramaturgia de Sartre

Retratos e Leituras
6 min readJul 12, 2017

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Jean-Paul Sartre — o romancista de La Nausée, L’Âge de Raison, Le Sursis; o contista de Le Mur; o dramaturgo de Les Mouches e Huis-clos; o filósofo de L’Imagination e L’être et le Néant; o porta-voz combativo da littérature engagée — Sartre é hoje uma das primeiras figuras, senão a primeira figura da literatura francesa. Nós, contemporâneos, mal somos juízes competentes dos valores permanentes que haja porventura na obra desse escritor de quarenta anos em plena evolução. Mas já se pode considerar o valor da sua atitude, restituindo ao lettré o direito — e a obrigação — de intervir nos destinos espirituais e políticos da nação. No seu teatro, perante o público materialmente presente, é que as duas atividades de Sartre, a literatura e a política, se encontram; e da sua dramaturgia já possível constatar o êxito.

O êxito de uma peça como Huis-clos está fora de dúvida — assim como o êxito de Les Mouches em 1943 — ao ponto de escandalizar os críticos conservadores. Porque Huis-clos é uma peça de espécie inédita.

Entram três mortos — Garcin, Inez, Estelle; não haverá outros personagens — na cena que não se mudará nem se interromperá até o fim. Um desertor, uma mulher lésbica, outra infanticida. Sabem de que estão culpados e que, juntos, o inferno os espera. Mas onde estão os diabos? Será que os próprios homens são diabos um para o outro? E que aquele “ficar juntos” constitui o próprio inferno? É isso mesmo. Garcin, de início, resolve ignorar as duas mulheres: ficando sozinho, escapará das torturas infernais. Elas, sim, entregam-se ao jogo. Inez conquistará Estelle? Mas esta precisa do homem, e com isso começam as torturas de Inez. E as de Estelle, à qual o covarde se nega. Afinal, Garcin parece ceder: assim como as duas mulheres precisam uma da outra para assegurar-se, pelo reflexo, da própria existência, assim ele precisa de quem não o considere covarde; mas é isso, a fé, que Estelle não lhe pode dar — quer amá-lo mesmo se aquilo fosse verdade. E aí começam para Garcin também as torturas do inferno. Assim recomeça, para todos os três, a vida, e é o inferno. Não — seria preferível o próprio Inferno, o de Dante, do mito, da superstição. E já se abrem, largamente, as portas pelas quais se entra no fogo eterno. É natural que Garcin se assuste, mas não porque é covarde: entrando, ele aceitaria o seu destino de ser o que ele é. Antes, alguém devia acreditar nele, fosse mesmo a outra, Inez. Mas esta não pode (ninguém pode) — mesmo se Estelle, desesperada, a quisesse matar por isso. Matar? Morrer? Mas já estão mortos! Condenados ao inferno, condenados a ficar no inferno de ser o que são.

A dramaturgia de Huis-clos é tão inédita que não podia deixar de escandalizar a crítica conservadora. Enumeraram três componentes da prática dramatúrgica: o enredo representado pela ação dos caracteres; os caracteres, movidos por motivos psicológicos compreensíveis; e esses motivos mesmo, engendrando a ação. Ora, os motivos de Huis-clos não são de natureza psicológica, geralmente compreensíveis. Nas entrelinhas do diálogo reconhecem-se teses como: “Ma liaison fondamentale avec austrui-sujet doit pouvoir se ramener à ma possililité permanente d’être vu par autrui” e “Nous choisir, c’est nous néantiser , c’est-à-dire faire qu’un futur vienne nous annoncer ce que nous sommes en conférant un sens à notre passé” — axiomas da filosofia existencialista de L’Être et le Néant que críticos filosoficamente competentes afirmam não compreender. Muito de acordo com isso, os três personagens de Huis-clos, pretensos representantes da Humanidade presa no inferno por incapacidade de choisir a liberdade existencial, não são caracteres e sim tipos alegóricos da consciência perturbada. Envolvidos eles numa ação dramática, resultaria um melodrama retumbante — mas em Huis-clos não há ação alguma. Seria um drama?

Sartre parece dizer: Não sabiam choisir, e por isso nenhum futuro dará um sentido ao passado daqueles personagens. Por isso, continuarão eternamente a serem torturados pelas mouches, as imaginações da consciência perturbada, habitantes do inferno, que é a vida Huis-clos. Como a vida poderia ser, portas abertas, isso Sartre já o mostrara em Les Mouches.

Nessa outra peça havia muita ação, moldada na mesma Oréstia esquiliana que fornecera os enredos para Mourning Becomes Electra de O’Neill e Élèctre de Giraudoux. O Orestes de Sartre é um rapaz jovem, culto, cético, que viveu, como fainéant elegante, em viagens, ignorando o destino da sua família. A paixão vingadora de Electra o assusta, revelando-lhe que ele não tem paixão nem vive na realidade: “Mal existo!” De início, recusa-se a choisir, pretende fugir com Electra para conservar a sua liberdade ilusória. Já não pode. “A minha liberdade está naquela ação”. Precisa matar Egisto. Mas a sua consciência está perturbada. Tem ele o direito de assassinar Egisto? Sim, porque o próprio Egisto é assassino. Mas tem alguém o direito de responder a um crime infame por outro crime infame? Egisto não é um criminoso comum. Pelo crime comum conquistou o trono, mas mantém-se no trono pelo crime maior de sujeitar o povo a uma ideologia obsoleta, o absurdo “culto dos mortos”. Enquanto o povo continua a acreditar naquilo, a liberdade do jovem cético Orestes continuará ilusão no espaço vazio fora da realidade. Orestes não será livre até cair Egisto ou qualquer sucessor semelhante dele, qualquer representante daquela “ideologia das classes dirigentes”. Aí se separam caminhos: a Oréstia de O’Neill foi uma tragédia da vida particular, doméstica; a de Sartre será um drama político. Orestes, para libertar-se, precisa libertar o povo. A vingança transforma-se em revolução. Orestes fará a revolução, não para matar este ou aquele “rei”, mas para dissipar definitivamente os enxames de “moscas” das falsas imaginations mitológicas que perturbam as consciências. Assim foi a peça entendida — e aplaudida — quando Charles Dullin a encenou no Théâtre Sarah Bernhardt em 1943, em plena ocupação alemã. Foi a peça de Résistance. Mas enquanto os espectadores saíram do teatro resolvidos a continuar a Resistência em cuja vitória acreditavam — o existencialista Sartre “resistiu” mesmo sem acreditar: Ago quia absurdum. Novamente separam-se os caminhos. A Élèctre de Giraudox, em 1937, terminara: “Comment cela s’appelle-t-il quand le jour se lève comme aujourd’hui et que tout est gâché, saccagé?… Cela s’appelle l’Aurore”. Sartre, em 1943, já foi menos otimista: Orestes mata o rei, mas o povo continua fiel ao “culto dos mortos” e das moscas. Só agora começa a batalha decisiva, e antes de sabermos a decisão cai o pano.

O melhor crítico de Jean-Paul Sartre é Jean-Paul Sartre. Criticou a ação de Mouches, continuando-a na inação de Huis-clos. Como explicar, dramaturgicamente, a desilusão? Os motivos de Orestes não eram bastante fortes: menos resolução do que retórica. Orestes é menos representante do que porta-voz da revolução. Retórica a serviço de uma idéia com conclusões práticas, da idéia principalmente literária de s’engager. Às imaginações mitológicas, Orestes-Sartre opôs a ação existencial, seja mesmo absurda. A Resistência venceu, apesar de “ser absurda”, e Sartre, apresentando a sua revista Temps Modernes, expôs o programa da littérature engagée, programa tão honesto quão vago, mistura de conceitos socialistas e liberais com resíduos da “ação absurda”, quand-même, dum existencialismo inconfundivelmente fascista — mouches do futuro, substituindo o “culto do passado”. Um Rimbaud que pretende fugir da “literatura” para não perder a vida mas continua a fazer literatura, se bem que engagée, porque nasceu para isso. “Fuir l’existence, c’est encore exister”. A morte não tem sentido, sobretudo, para os que já estão mortos. A morte é tão absurda como a vida, e esta é o inferno. Deste modo, o dramaturgo da Resistência escreveu Huis-clos.

Orestes-Sartre foi ele mesmo. Os personagens de Huis-clos são “outros”. “Seul existe pour moi le corps d’autrui”, não a alma. A fala desses “outros” não é ouvida; ou então não tem importância o que dizem. Desaparece a retórica. Os oradores revolucionários são substituídos pelos sofredores passivos. Em Huis-clos não há ação.

Quando o pano caiu no fim de Mouches, não se sabia se Orestes iria vencer ou cair. Na verdade, não venceu nem caiu. A vida absurda continua, em Huis-clos, no infinito duma morte absurda. Onde encontrar o motivo psicológico desse desfecho de desilusão profunda senão no Temps Modernes? No público que aplaude Huis-clos assim como aplaudiu Les Mouches? E no próprio autor? Sartre ainda não deu a última palavra da sua dramaturgia. Em compensação, ofereceu-nos a ideologia vaga, indecisa, nebulosa dos Temps Modernes. As mouches continuam; apenas mudaram de nome.

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos (1946–1971) Volume II. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 2005. (p. 69–72). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).