Algumas Palavras Sobre a Inglaterra

Retratos e Leituras
11 min readJul 19, 2017

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Detesto sinceramente Rudyard Kipling. Sua mandíbula de buldogue é a expressão fisionômica da educação tanto no jângal como para o jângal, e a brutalidade simplista dos seus contos indianos representa o estado de espírito de certos gentlemen, que se comportam perfeitamente em sua casa, mas, no estrangeiro, procedem como no jângal dos selvagens. Não suporto esta raça kiplinguiana de comerciantes violentos, dissimulados em suboficiais, que tagarelam nos Barrack-Room Ballads e zombam dos nomes incompreendidos das cidades subjugadas:

“My name is O’Kelly, I’ve heard the Revelly
From Birr to Barelly, from Leeds to Lahore,
Hong-Kong and Peshawur,
And fifty-five more, all endin’ in ‘pore’.”

Deus prometeu-lhes, a eles, a soberania das Índias, com as suas “cinqüenta e cinco cidades, todas terminando em pore”, e a soberania do mundo, que ouviu, espantado, o grito orgulhoso: “God save the King!”

Uma só vez Rudyard Kipling exprimiu uma emoção profundamente humana: foi quando compôs, por ocasião do jubileu da velha rainha Victoria, o seu poema Recessional, à maneira das ladainhas de procissão da Igreja Anglicana. A Inglaterra de então estava na culminância da glória, da força, da riqueza, e a assembléia dos Lordes e dos Bispos e dos Comuns na Abadia de Westminster, à sombra dos túmulos dos grandes mortos da nação, e sob a cúpula da ruidosa Aleluia de Haendel, era a reunião mais gloriosa, mais poderosa, mais rica do mundo, e quando gritava, com orgulho incrível: “God save the Queen”, então Rudyard Kipling lhe lançava o desafio contrito do seu Recessional:

“Lo, all our pomp of yesterday
Is one with Nineveh and Tyre!
Judge of the Nations, spare us yet,
Lest we forget — lest we forget!”

Toda esta glória será de ontem, e perecerá como a glória de Nínive e de Tiro, das cidades malditas: ó Juiz das Nações, poupa-nos, para não esquecermos, para não esquecermos!

“Lord God of Hosts, be with us yet,
Lest we forget — lest we forget!”

Como um profeta, o poeta se assusta do dia da catástrofe: — Que o Deus dos Exércitos nos assista, para não esquecermos, para não esquecermos!

“Thy mercy on Thy people, Lord! Amen.”

Para não esquecer, para não esquecer! Eu o tinha esquecido, ao brutal mercenário Kipling, com a sua loquacidade orgulhosa e suas “cinqüenta e cinco cidades, todas terminando em pore”. A sua figura anônima me ocorreu à lembrança — foi ontem — quando um aparelho de rádio distante tocava o Malbrough s’en va-t-en guerre, como uma marcha fúnebre, e os sinos da Abadia de Westminster ressoavam uma Aleluia abafada e um muito longínquo God save the King. Era a hora de uma cidade terminando em pore.

Pensava nesta imensa herança, pensava na grandeza viril dos estóicos da Antiguidade, no verso amado de Lucano:

“Victrix causa diis placuit, sed victa Catoni.”

A causa vitoriosa agradou aos deuses, mas a Catão a vencida. E as cinqüenta e cinco cidades todas terminando em pore submergiam-se nas águas tenebrosas do Oceano longínquo, como um grande navio incendiado, e do mar visionário ante os meus olhos subiam os cem condados ingleses, todos terminando em shire, esta paisagem a que Katherine Mansfield chamou “um jardim longínquo, visto pelas janelas da alma”: a Inglaterra.

Uma floresta de gruas e de mastros, fantasma na bruma, o porto; uma floresta de pedras, Londres; uma floresta de pequenas casas uniformes, os subúrbios; catedrais enormes dominando pequenas cidades medievais; a luz amarela da tarde de inverno sobre as capelas e os colégios, em que a raça dos fellows e dos tutors guarda, como os monges da Idade Média, o nosso último tesouro; chaminés e chaminés, praias e praias, frias na bruma de uma chuva fina e incessante. Fantasma de um castelo irreal: a ilha no mar setentrional, a ilha que governa o mundo.

Um poeta chamou-a “o castelo do império e do tédio”, e seu spleen acrescentava: “Uma ilha da danação, vomitando fumaça negra, uma máquina barulhenta, essa hipócrita e ébria Inglaterra; Deus até ficou desolado quando criou o inglês e viu que não lhe dera voz para cantar, nem sentidos para gozar da vida, mas um livro de contos, em vez de coração; e para compensar essas borralheiras da criação, concedeu-lhes Deus um pouco de domínio mundial, e, para merecê-lo, três coisas preciosas: a liberdade civil; o conforto; e o William Shakespeare.” Assim é.

Evidentemente, o nome de William Shakespeare não figura lá senão como uma metáfora, um “pars pro toto”, um mot-clef para indicar a literatura inglesa, a maior, a mais rica, a mais profunda literatura do mundo, um “jardim visto pelas janelas da alma”; Shakespeare, o mestre, cuja vara mágica de Próspero evoca todos os espíritos do céu e do inferno, Shakespeare representa aí o senhor feudal, o lorde do castelo, cujo prado, “cuidado há trezentos anos”, é guardado aristocraticamente pelas sebes clássicas da poesia de Alexander Pope. Não o imagineis como um jardim muito regular, ao gosto de Versalhes; de Marlowe e de Chapman a Keats e Swinburne, as ninfas, os sátiros e as mênades da Hélade não cessaram de vaguear orgiasticamente pelos seus prados; no alto, a literatura inglesa sempre teve profetas, os Milton para atear as revoluções, e os Carlyle para exorcizar; em baixo, um riso inextinguível, homérico, ressoa através dos séculos da literatura inglesa, o riso alegre de Chaucer, o riso mordaz de Ben Jonson, o riso maligno de Swift, o riso espirituoso de Congreve, o riso melancólico de Sterne, o riso ruidoso de Fielding, o riso irônico de Jane Austen, o riso bonhomme de Dickens. E quando este riso ameaça tornar-se em pequenez mesquinha da média, o espírito inglês sempre lhe sabe opor o seu taedium, seu spleen: os terrores da noite de Thomson, as visões infernais de Blake, o vento horroroso sobre os Wuthering Heights de Emily Brontë, o “wait in unhope” de Thomas Hardy. Estes sonhos diabólicos da vida, que são eles senão as alegorias dos terrores que o marinheiro inglês arrostou, Robinson sobre a sua ilha deserta, o marinheiro de Coleridge sobre o seu navio maldito, o marinheiro Joseph Conrad sobre os sete mares e o Oceano ardente do Sul? Não há recanto sobre a terra onde não cintile a lâmpada solitária dum marinheiro inglês, e à sua luz responde a lâmpada solitária dos humanistas Matthew Arnold ou Walter Pater em suas células monacais de Oxford ou de Cambridge. Lá fora, os furacões devastam; mas at home, o doce luar sobre os jardins da Inglaterra faz cantar os rouxinóis de Shelley e dançar as fadas de Spenser. E perto da célula do colégio, onde o espírito evoca os demônios, está a igreja, onde o dia, que expulsa os demônios, é saudado, em nome do “Lord Almighty”, pelos cantos piedosos de John Donne, de Cowper e Wordsworth.

O nome de William Shakespeare não é senão uma cifra: resume-os todos, é o mestre desta floresta encantada da literatura inglesa, de que o velho filistino Macaulay, tão feliz em suas fórmulas, disse: “Quando nosso último navio de guerra descer ao fundo do mar, quando a tempestade quebrar o último rochedo cretáceo desta ilha, haverá sempre um monumento imperecível da nossa nação: a literatura inglesa.”

É uma literatura de fidalgotes, caçadores, esportistas, marinheiros: uma literatura ao ar livre. A atmosfera, livre, fresca, pura, é o incomparável nas obras da literatura inglesa, que mais do que outra é apaixonada da Natureza, e cujo monumento mais velho é uma canção de verão:

“Summer is y-comen in!
Sing cuckoo! cuckoo!”

Mas o verão inglês é uma coisa singular. Byron sustentou que o inverno inglês acaba em julho, para recomeçar em agosto, e muita gente nunca percebeu um verão inglês. É preciso ter bons nervos para senti-lo. Mas, de uma vez por todas, Deus disse aos ingleses: “Make the best of it!”; e das inclemências do tempo fizeram eles o conforto.

Não é em toda parte que se gosta dos ingleses. Mas não há quem não se admire da virtude poderosa de instalar-se em todos os continentes, de transplantar para sob todos os céus as mesmas casas inglesas, os mesmos clubes ingleses, os mesmos lugares de esportes ingleses, a capacidade de dedicar-se, em toda parte e sempre, imperturbavelmente, à pescaria à linha e ao golf, ao tênis e ao cricket, ao comércio e aos estudos gregos. O grande manual da pesca à linha, o Compleat Angler de Izaak Walton, é ao mesmo tempo o grande manual do perfeito gentleman, no qual se aprende o sangue-frio dos nervos, a tranqüilidade da alma, o fair play da competição. O inglês é o amigo mais frio, o vizinho mais seguro, o inimigo mais generoso.

A Inglaterra teve muita glória: “Lord God of Hosts, be with us yet, lest we forget.” Mas a maior glória da Inglaterra é o fair play. É um método de negociar, de executar os esportes e de fazer a guerra. É sobretudo o espírito da liberdade civil.

A Constituição inglesa não está escrita, o Direito inglês não está codificado. É difícil a gente entender-se entre os mil “casos de precedência”, cujos efeitos incríveis, a tenacidade de certos usos seculares já desprovidos de sentido, têm divertido a muitos. Cada dia de Ano-Novo, os deputados da City de Londres apresentam a Sua Majestade Britânica um pedaço de madeira, lembrança do arrendamento de uma floresta que um rei da Idade Média concedia a seus vassalos mui leais, floresta que já não existe há muitos séculos; e seus vassalos mui leais forçariam seu rei a aceitar esse pobre feixe de lenha, porque ele lhes garantiu o privilégio de isenção de certos outros impostos. Não pagar — dir-se-á — constitui naturalmente sua virtude tradicional. Mas escutai a história do cidadão Joseph Hume:

Ao tempo de Canning e da reforma parlamentar, havia na Câmara dos Comuns o deputado escocês Joseph Hume, homem grosseiro, de cabelos ruivos, extremamente antipático, o livro de contas personificado, e que não podia dizer três palavras sem referir números, sem falar de dinheiro. O orçamento era a sua especialidade. Sob todos os ministérios, o seu lugar era sempre nos bancos da oposição. Era o terror dos ministros. Canning não ousava nunca em sua presença pronunciar um número, sem primeiro consultar o Tesoureiro: “How much?” Todo o mundo o temia e o detestava. Um dia, porém, porque o rei e os lordes não cumpriram a palavra empenhada na reforma do Parlamento, Joseph Hume ergueu-se e pediu a palavra, para falar, com surpresa de todos, sobre um assunto fora do orçamento, e a sua voz de bolsista embotado se tornou estrepitosa como os sinos da Abadia de Westminster; e, porque o seu coração estava em sua bolsa, propõe a moção de não pagar impostos. Ah, o velho bolsista revolucionário! Mas, nove anos depois, estando a guerra às portas e o tesouro esgotado, o referido Joseph Hume ergueu-se e declarou querer pagar voluntariamente os impostos do ano seguinte, porque “recusar os impostos é privilégio da Câmara dos Comuns e pagar os impostos é privilégio do cidadão inglês”.

Esta palavra privilégio é o mot-clef da liberdade inglesa. Os privilégios são herdados por tradição, e atestados e garantidos pelos “casos de precedência”, e este sistema simples e complicado substitui todos os códigos e todas as constituições escritas, até as situações mais irregulares e ameaçantes; porque a própria revolução é um privilégio.

Notai bem como difere, em relação à língua inglesa, a significação da palavra privilégio em outros idiomas, em francês por exemplo. Na França os privilégios são abusos abominados e detestados, fazem-se revoluções para aboli-los. Na Inglaterra os privilégios são liberdades tradicionais e veneradas, e fazem-se revoluções para restaurá-los. Sai-se da legalidade somente para reparar a legalidade violada; nada além disso. Um passo a mais, e o privilégio real se dirigiria contra os revolucionários, e nenhum gentleman se prestaria a tal violação da ordem legal, que é conexa à liberdade inglesa. A ordem e a liberdade inglesas estão sempre em equilíbrio, e a arte do fair play político está em equilibrar honestamente, sem violência, as forças opostas. Eis porque a oposição é, na Inglaterra, uma instituição do Estado, necessária à manutenção do equilíbrio chamado “sistema dos partidos”, e regulada pela lei do fair play.

Isto não se escreveu em nenhuma Constituição. É a força duma tradição multissecular e venerada, fruto duma educação de todo um povo, para o fair play. O fair play, totalmente independente de parágrafos jurídicos e convicções de partido, não é nem liberal, nem conservador, nem sequer uma lei. Nem um sistema político. É o método — o último método — de uma honesta vida comum de pessoas honestas. Daí o motivo por que chamei ao fair play a maior glória inglesa — “lest we forget — lest we forget!”

A Constituição inglesa não se escreveu. É só uma tradição, a tradição da liberdade. Algumas leis, em vigor ainda mas já obsoletas, a famosa Magna Charta, a Declaration of Rights, não constituem mais do que símbolos, símbolos jurídicos da política do fair play. Toda a vida inglesa está cheia de tais símbolos, que regem sem força exterior, somente pela convenção tácita do fair play. O policial, na rua, levanta o seu bastão muito inocente — e o inglês mais individualista e mais obstinado logo pára, pois que o bastão policial é também um símbolo, símbolo do poder real, instituído para proteger as liberdades individuais e obstinadas de todos os ingleses. O mais poderoso desses símbolos é o que reúne em si todos os aspectos da vida pública inglesa: é a famosa “procissão de Westminster”, a festa real e eclesiástica por ocasião da inauguração e do encerramento dos Parlamentos, das coroações e dos enterros dos reis. Foi num desses momentos solenes que se escreveu a prece “lest we forget — lest we forget!” Então, as duas Câmaras, a dos Lordes e a dos Comuns, saem da Casa do Parlamento, edifício que reúne ao aspecto gótico da tradição medieval todas as instalações do conforto inglês. O cortejo é conduzido pelo primeiro ministro e pelo chefe da oposição, um ao lado do outro, símbolo do fair play político, do equilíbrio entre a ordem legal e a liberdade civil. Assim, o primeiro ministro e o chefe da oposição, os lordes e o povo, entram na Abadia de Westminster, cujos túmulos e pedras formam uma revista shakespeariana da história inglesa; no meio dos reis e dos nobres lordes, estão enterrados os poetas; todas as glórias desta instituição nacional que é a literatura inglesa: a estátua de Shakespeare saúda o túmulo de Henrique VII. E o símbolo supremo desta unidade de tradição, de liberdade e de honestidade é o primeiro gentleman do país, o rei, que aí reside no meio de seus lordes e de seus comuns: é em sua honra que os sinos da Abadia de Westminster oferecem sua Aleluia, e todo o povo o seu God save the King.

Pensei nisso quando os sons longínquos do Malbrough s’en va-t-en guerre e dos sinos fúnebres fendiam meu coração. Tive a visão desta grande história inglesa, história duma conquista da liberdade, e estava enfim reconciliado com este soldado inglês, com suas “cinqüenta e cinco cidades, todas terminando em pore”, ele também um soldado anônimo da liberdade pela Inglaterra, por nós todos:

“Judge of the Nations, spare us yet,
Lest we forget — lest we forget!”

Os sinos de Westminster dobram. É por uma “cidade terminando em pore”. Só? Ocorrem-me as palavras do velho e grande poeta John Donne, que se prestaram a título de uma obra de nossos dias, resumo terrível das nossas angústias:

“For whom the bell tolls?
He tolls for you.”

“Por quem dobram os sinos? Dobram por vós.” Por vós, por nós todos. Não esqueçamos, não esqueçamos nunca! God save the King.

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Texto Fonte: CARPEAUX, Otto Maria. Ensaios Reunidos 1942–1978, Volume I, De A Cinza do Purgatório até Livros na Mesa. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora/Topbooks, 1999. (p. 192–198). Editado por: Pedro G. Segato.

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Retratos e Leituras

Ensaios literários do escritor austríaco Otto Maria Carpeaux (1900–1978).