Construindo uma universidade livre: uma experiência japonesa (parte 2)

Alex Bretas
6 min readJun 17, 2016
Foto: Shure University.

A jornada rumo à consolidação de uma universidade livre continua. Estive na Finlândia para participar da IDEC@EUDEC 2016 e conheci mais a fundo um dos projetos mais inspiradores neste sentido: a Universidade Shure, no Japão.

Por Alex Bretas

Aqui vamos nós para a parte 2 da entrevista que fiz com o Kageki Asakura, um dos idealizadores da Universidade Shure no Japão. Se você curte a ideia de uma universidade onde todos têm liberdade para aprender, te convido a apoiar o financiamento coletivo do Desaprender, um programa de 4 meses do UnCollege Brasil que se inspira muito no que o pessoal da Shure tem feito.

Perdeu as outras partes da entrevista? Acesse-as nos links abaixo:

Abaixo segue a parte 2 do papo que tive com o Kageki.

Alex: Queria te perguntar algumas coisas mais específicas sobre como a universidade funciona hoje. Você poderia me descrever o fluxo de um estudante desde que ele decidiu se matricular na Shure? O que acontece primeiro, e quais são as possibilidades que a universidade oferece para cada um na medida em que eles progridem?

Foto: Shure University.

Kageki: Em primeiro lugar, nós pedimos à pessoa para experimentar uma semana na universidade, de modo que ela possa decidir com segurança se ela quer estar lá ou não. Assim, cada novo estudante após a primeira semana pode tomar sua decisão a respeito de permanecer estudando na Shure ou não. Isso é importante porque nossa universidade é muito diferente das outras universidades japonesas. Muitas coisas são diferentes, então geralmente é muito difícil que as pessoas compreendam apenas por meio de palavras. Experimentar é muito mais fácil e permite ao estudante se analisar e então decidir se quer entrar na Shure. Mesmo se os pais de alguém quiserem que eles estudem na nossa universidade, se a própria pessoa não quiser, não faz sentido. Depois dessa primeira semana nós fazemos uma entrevista com a pessoa e perguntamos a ela como foi essa experiência. Se a pessoa então decide por se juntar à Shure, então nós lhe damos as boas-vindas. Não há condições ou restrições de entrada, exceto uma: os novos alunos precisam ter ao menos 18 anos. A condição essencial é a pessoa querer viver a experiência.

Se ela decidir que quer entrar, o primeiro passo é a pessoa criar seu plano de aprendizado. Isso ocorre geralmente no início do ano letivo, que no Japão é em abril. Assim, cada estudante faz um plano de estudos para o ano, e para isso eles podem pedir ajuda a um professor.

No início do ano, todos os estudantes trazem suas ideias e nós as discutimos com o objetivo de montar o cronograma da universidade para aquele ano. Isso acontece nas reuniões gerais. Desse modo, alguns estudantes podem querer por exemplo ter aulas de filosofia, enquanto outros querem ter aulas de história, ao passo que um outro grupo pode querer criar um projeto de construção de um carro, e todos eles são bem-vindos para trazer qualquer ideia que tiverem. Depois de escutar todas as ideias, nós montamos o cronograma. Geralmente nós temos todo ano por volta de 20 a 30 atividades na agenda, mas não há qualquer obrigação. Talvez um aluno se envolva em 10 a 15 dessas atividades, ao passo que outra pessoa pode se envolver em apenas uma ou duas. A decisão é de cada um. Se a pessoa preferir criar um projeto individual, talvez essa pessoa não vá se envolver em nenhuma das aulas ou projetos do cronograma. É claro que, ao fazer isso, ele ou ela pode contar com o apoio dos professores ou um de nossos mentores.

Nós temos 50 mentores e cada um deles tem sua especialidade: um é advogado, outro é filósofo e assim vai. Além disso, temos quatro professores para 40 estudantes, e nós professores também podemos apoiá-los se eles quiserem.

No início de outubro, um semestre depois do início do ano letivo, nós temos com cada estudante uma sessão de acompanhamento individual, e nessa conversa nós podemos ajudá-lo a ajustar o seu plano de aprendizado para o ano, se for preciso.

E depois, no fim do ano letivo, todos os alunos fazem uma apresentação direcionada aos outros estudantes. Não há um formato específico para essa apresentação: se a pessoa quiser dançar, ela pode dançar, se ela quiser tocar uma música ou fazer uma fala com o auxílio do Powerpoint, se ela quiser escrever e apresentar um artigo, ela pode. Não há um formato obrigatório. E os outros alunos podem reagir à apresentação, de modo que cada estudante seja levado a refletir sobre o ano que passou. Um mês depois começa o próximo ano letivo, e assim os alunos que permanecerem começarão uma nova jornada. É um ciclo.

Quanto aos projetos, na Shure atualmente há um tema muito popular: cinema. Há algum tempo um grupo de estudantes começou um festival de cinema internacional. O que eles fizeram foi uma chamada aberta para filmes de todos os lugares, nacionais e internacionais. Os alunos, com a ajuda de um diretor de cinema experiente, escolheram os filmes a serem exibidos no festival. Eles também fizeram um filme. Isso foi em agosto.

Em outubro há uma sessão de estudos autodirigidos. Geralmente no Japão, assim como em outros países como o Brasil, não é permitido usar o sujeito “eu” ao escrever artigos acadêmicos. Não é permitido escrever coisas como “eu gosto disso” ou “eu penso assim”.

Alex: Sim, isso é muito comum mesmo. Na academia somos impelidos a usar “nós” ou então até mesmo esconder o sujeito e fingir que ninguém está escrevendo aquilo.

Kageki: Sim, mas na universidade Shure, muitas pessoas estudam o Eu. Elas buscam investigar e ressignificar o que aconteceu com elas mesmas no passado. Por exemplo: uma aluna começou a se aprofundar no seu complexo de inferioridade relacionado à sua percepção corporal. Ao interpretar algo que aconteceu consigo mesma, ela usou muito o sujeito “eu” em seus textos. Logo, todos são livres para escrever “eu” em seus artigos. Nós temos muitas pessoas cujos estudos estão mais voltados para o Eu do que para a sociedade em que estão inseridas.

Em setembro, os estudantes escrevem um ensaio. Em outubro, eles também fazem uma apresentação pública sobre seus estudos, e nesse momento um filósofo faz um comentário crítico sobre a produção dos alunos.

Em dezembro nós temos um festival de teatro. No ano passado, convidamos uma escola democrática da Rússia para vir ao festival, e eles encenaram algumas peças de teatro russas para nós, e nós encenamos peças japonesas para eles.

Em fevereiro, um grupo de estudantes organiza uma exposição de arte. Temos esse tipo de evento aberto ao público umas 4 ou 5 vezes por ano.

Alex: Bom, deixa eu ver se eu entendi direito. Vocês têm um calendário anual que começa em abril e conversas individuais de acompanhamento na metade do ano. E vocês têm vários tipos de eventos diferentes acontecendo durante o ano como apresentações de teatro e festivais de cinema. É isso?

Kageki: Sim.

Alex: É muita coisa! E como essas decisões a respeito das atividades e eventos foram tomadas?

Kageki: Sim, é importante falarmos disso. Nós temos reuniões gerais duas vezes por ano organizadas pelos próprios estudantes. O facilitador da reunião é um aluno, a pessoa que registra o que foi decidido também é um aluno, então são eles que conduzem as reuniões. Todas as decisões relevantes são feitas nessas reuniões.

Alex: Vocês usam algum método de tomada de decisão?

Kageki: A maior parte das coisas realmente importantes são decididas via consenso. Contudo, coisas pequenas podem ser decididas por voto. Por exemplo: alguns estudantes decidem criar um acampamento de verão, e então eles se organizam em um comitê para fazer isso e criam opções de local para o acampamento acontecer — na praia, nas montanhas ou no lago. A partir disso os alunos discutem e tomam a decisão por meio do voto. Coisas assim podem ser decididas pelo voto da maioria sem problemas. No entanto, decisões relacionadas ao orçamento da universidade, ao preço da mensalidade, enfim, tudo isso é decidido por meio de consenso.

Em breve postarei as demais partes da entrevista aqui. Continue acompanhando!

  • Leia a parte 1 da entrevista aqui.

Apoie a criação de uma universidade livre brasileira! Contribua com o financiamento coletivo do Desaprender.

Assista nosso vídeo abaixo:

--

--

Alex Bretas

Alex Bretas é escritor, palestrante e fundador do Mol, a maior comunidade de aprendizagem autodirigida do Brasil. Saiba mais em www.alexbretas.com.