A inteligência artificial e o novo papel do designer na sociedade em rede. (Parte 1 de 4)

Bruno Lorenz
6 min readJan 3, 2019

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por Bruno Lorenz e Carlo Franzato

Essa é a primeira parte de um artigo que busca refletir sobre o impacto da Inteligência Artificial no processo de design. Você pode ler a introdução sobre o assunto clicando aqui.

A Sociedade em Rede.

Qualquer tentativa de definir com precisão a sociedade em rede se mostra infrutífera, ainda mais quando se compreende que uma de suas características essenciais é a complexidade que permeia suas manifestações. Propõe-se aqui, então, apresentar algumas facetas particulares do fenômeno que ajudam a vislumbrar, mesmo que de forma efêmera, fragmentada e parcial, no que consiste tal paradigma.

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Castells (2010) adota as tecnologias da informação como base material em sua análise sobre as transformações sociais, políticas e econômicas pelas quais a sociedade vem passando nos últimos anos. Para o autor, a tecnologia é a sociedade, e a sociedade não pode ser entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas (Castells, 2010, p.43). Inovações em microeletrônica, telecomunicações e a emergência da Internet desempenham um papel central nesse contexto, representando materialmente as tecnologias que moldam o que o autor chama da sociedade informacional. Sociedade essa, que, por sua vez, molda essas mesmas tecnologias em um relacionamento de reciprocidade e continuidade. Castells (2010, p.108–9) argumenta que tal revolução tecnológica apresenta cinco características próprias que a distinguem das revoluções anteriores.

A primeira delas diz respeito ao (i) entendimento da informação como matéria prima. Ao contrário das revoluções anteriores, onde a informação servia apenas para agir sobre as novas tecnologias, neste novo cenário as tecnologias agem sobre a informação. As (ii) interfaces que medeiam a comunicação entre diferentes campos tecnológicos permitem que toda informação gerada pela humanidade possa ser armazenada, recuperada, processada e transmitida, em um ciclo de crescimento exponencial nunca antes imaginado. Para o autor, ao levar em consideração que “a informação é parte integral de toda atividade humana”, é inevitável que “todos os processos de nossa existência individual e coletiva” (Castells, 2010, p.108) sejam diretamente moldados pelas novas tecnologias, o que confere uma qualidade de penetrabilidade à todas as tecnologias informacionais. Tal capacidade nos leva às próximas duas características: a (iii) lógica das redes e a (iv) flexibilidade.

As tecnologias informacionais permitem o crescimento de conexões e interações entre todos aqueles que se utilizam dessas interfaces. A contingência e a complexidade características dessas relações só florescem dentro de uma lógica de redes: uma morfologia que permite a estruturação do não-estruturado, sem prescindir da flexibilidade que todos os movimentos e processos que buscam a inovação necessitam. Essa flexibilidade preconiza, também, a reorganização dos componentes de uma estrutura, alterando-a completamente sem destruí-la, visto que um dos pressupostos desse novo paradigma é a constante mudança e fluidez organizacional.

Por fim, chega-se ao (v) fenômeno da convergência. Aos poucos, desvanecem as fronteiras entre hardware e software; entre estratégias particulares e alianças de cooperação entre empresas. Fica cada vez mais difícil distinguir as trajetórias particulares de cada tecnologia, tendo em vista que existe um movimento de convergência que se volta para a formação de sistemas altamente integrados e dependentes para lidar com o volume de informação anteriormente citado.

Dado este panorama, cria-se um contexto produtivo para reflexões sobre a maneira como o designer se percebe e se adapta a tal sociedade informacional.

Veja: o designer é um agente tradutor, que absorve o mundo como ele se apresenta, compreende o cenário atual e imagina cenários futuros e, finalmente, opera na realidade para alterá-la. Pela manipulação da artificialidade, ele possibilita que indivíduos possam experimentar o mundo de maneiras mais ricas, virtuosas e inspiradoras (Giaccardi; Fischer, 2008).

Na sociedade informacional, no entanto, as dinâmicas de cada um desses movimentos — absorção, compreensão, imaginação e operação — são radicalmente afetadas, seja pelo volume de informações disponíveis, seja pela perenidade de tais informações. Mais do que nunca, o designer não pode se dar ao luxo de isolar-se e projetar na solidão de sua torre de marfim — ou seja, preso à ilusão modernista de que pertence à uma casta de iluminados que guardam somente para si a responsabilidade de projetar a realidade. Escapa das mãos de qualquer indivíduo o controle total sobre os movimentos possíveis.

Pelas características propostas por Castells (2010), é possível discernir um vislumbre reticular e fragmentado — mas essencial, acreditamos — do que seriam as raízes da sociedade em rede. Para contribuir com a construção de uma imagem mais clara e definida, discutimos a seguir o Espaço do Saber e a Inteligência Coletiva de Lévy (2014), conceitos intimamente relacionados com os apresentados até o momento.

Lévy (2014) introduz o Espaço do Saber como um espaço antropológico, que coexiste com outros três espaços de mesma natureza: da Terra, do Território e das Mercadorias. Para ele, um espaço antropológico “é um sistema de proximidade (espaço) próprio do mundo humano […], dependente de técnicas, de significações, da linguagem, da cultura, das convenções, das representações e das emoções humanas” (Lévy, 2014, p.22). O Espaço do Saber se caracteriza pela manifestação de três diferentes fenômenos: (i) a hegemonia da velocidade, (ii) massas como geradoras de conhecimento e o (iii) uso de interfaces para lidar com a realidade.

A hegemonia da velocidade conversa com a valorização da informação como matéria-prima, onde a rapidez das ciências e das técnicas se reflete tanto na grande quantidade de informações produzidas quanto na maneira como essas informações são captadas, armazenadas, analisadas e, posteriormente, reutilizadas. Segundo Lévy (2014, p.25) “tornou-se impossível reservar o conhecimento, até mesmo seu movimento, a classes de especialistas”. O indivíduo, então, precisa adaptar-se a complexidade e se integrar à rede para aprender a viver — e, principalmente, a criar — nesse novo universo salpicado pelo caos. Por fim, a importância do desenvolvimento de ferramentas e interfaces para lidar com o que é gerado a partir dos dois fenômenos anteriores. Para o autor é preciso “dotar-se dos instrumentos institucionais, técnicos e conceituais para tornar a informação “navegável”, para que cada um possa orientar-se e reconhecer os outros […]” (ibid.).

É também nesse espaço que se manifesta outra característica muito particular da sociedade em rede: a Inteligência Coletiva. Lévy (2014, p.29) a define como “uma inteligência distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta em uma mobilização efetiva das competências.” Para o autor, “a base e o objetivo da inteligência coletiva são o reconhecimento e o enriquecimento mútuo das pessoas […] Ninguém sabe tudo, todos sabem alguma coisa, todo saber está na humanidade” (Lévy, 2014, p.29). Ou seja, mesmo que ainda exista um protagonismo do indivíduo, ele só alcança a plenitude quando abraça a causa da rede e entende a importância de todos aqueles na qual se liga.

Ao apresentar os conceitos de ambos autores, é possível apreender o que se entende no presente trabalho sobre o conceito de sociedade em rede e o cenário na qual se desenvolverá a discussão das próximas sessões. Em síntese, configura-se aqui um contexto contingente, dialógico e generativo, em que o volume exponencial de informações geradas nas infinitas dinâmicas que se dão entre atores humanos e não humanos, acaba por nos presentear com uma dupla revolução: tecnológica e epistemológica. Mas o que esse paradigma significa, então, para a atividade projetual?

Ao retornar a Lévy (2014), podemos traçar um paralelo dessas questões com a importância dada pelo autor no desenvolvimento de interfaces para lidar com todas as informações geradas dentro da Sociedade em Rede, facilitando a compreensão e a manipulação dessas informações por todos os indivíduos que fazem parte dessa sociedade. O que acontece quando as próprias interfaces desenvolvidas dentro dessa revolução tem um papel ativo nos processos de atividade projetual? Retomamos Castells (2010, p.69):

[…] encaramos uma revolução tecnológica onde centralidade de conhecimentos e informação não é a sua principal característica. Sua verdadeira força está na forma como esses conhecimentos e essa informação são aplicados no desenvolvimento de novos dispositivos que processam e comunicam um número ainda maior de dados, em um ciclo que se retroalimenta a partir das inovações e dos usos que florescem dessas dinâmicas.

Tais características apontadas pelo autor nos levam a uma discussão sobre o papel e a influência da Inteligência Artificial na atividade de projeto. Para evoluir nessa discussão, no entanto, é pertinente delimitar o que entendemos pelos termos “Inteligência Artificial” e “Atividade Projetual”, o que faremos na segunda parte desse texto.

Referências

Castells, M. A Sociedade em Rede. São Paulo: Paz & Terra, 2010.

Krippendorff, K. The Semantic Turn: a new foundation for design. CRC Press, 2006.

Lévy, P. A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. São Paulo: Loyola, 2014.

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Bruno Lorenz

Designer, Mestre em Design Estratégico e entusiasta de futuros possíveis.