Kosovo: por que após 10 anos da declaração de independência sua soberania ainda é limitada?

Mesmo após dez anos da declaração de sua independência, o Kosovo ainda não é reconhecido por todos os países da comunidade internacional.

Devlin Biezus
7 min readFeb 16, 2018

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Em 17 de fevereiro de 2008 a Assembleia do Kosovo declarava sua independência em relação à Sérvia. A escolha das palavras "declaração de independência" e não apenas "independência" é feita de maneira proposital no título desse texto, uma vez que o país possui reconhecimento internacional limitado — o que afeta profundamente sua soberania.

A luta kosovar por autonomia e independência não começou há dez anos. Durante a existência da República Socialista Federativa da Iugoslávia (1945–1992) o Kosovo possuía status de província autônoma dentro da República da Sérvia. Isso significava que o território usufruía de uma liberdade limitada, podendo escolher a maneira de como sua administração e assembleia funcionasse, por exemplo. No entanto, essa autonomia foi estritamente diminuída, em 1989.

O Kosovo

A população do Kosovo é formada principalmente pelas etnias albanesa (92,9%), bosníaca (1,6%) e sérvia (1,5%). Mas, essas estimativas podem ser menores do que a representação real da população sérvia, já que o censo nacional (feito em 2011) excluiu uma região ao norte de maioria sérvia, além de ser parcialmente boicotado pelos sérvios na região ao sul.

O panorama demográfico do país já explica, em grande parte, o principal impasse político para sua independência. De maneira simples: a população albanesa deseja a independência e a população sérvia deseja continuar como parte da Sérvia.

O contexto histórico

Escrever sobre o Kosovo sem tocar no contexto histórico da dissolução iugoslava seria uma tarefa incompleta. Já foram abordados tanto a questão da dissolução da Iugoslávia e da Guerra da Bósnia nesse texto e nesse. Dessa forma, o foco dessa contextualização será na província do Kosovo.

Mapa da região dos Bálcãs. Fonte.

A Iugoslávia, durante o final da década de 1980, foi palco de diversas ideologias e políticas nacionalistas. Entre elas estava o desejo do então presidente sérvio, Slobodan Milosevic, de obter um maior controle da Federação. Para isso, Milosevic e o parlamento sérvio removeram a autonomia da província do Kosovo, em fevereiro de 1989. Questões como policiamento e o sistema judiciário foram passados inteiramente para o controle da Sérvia.

Durante a década de 1990 — enquanto os principais interesses sérvios estavam nas guerras da Croácia e da Bósnia — os albaneses estabeleceram uma espécie de governo paralelo no Kosovo: passando a recolher os impostos, construindo hospitais e criando um sistema de ensino próprio. O Kosovo não foi atingido pelas guerras da Croácia ou da Bósnia. Contudo, a população albanesa tentou colocar a questão do Kosovo em pauta nas negociações de paz da ex-Iugoslávia, o Acordo de Dayton. O problema do Kosovo não foi discutido, deixando-o para ser o centro das atenções da comunidade internacional apenas quando um novo conflito fosse iniciado.

A Guerra

A independência do Kosovo passou a ser defendida com armas pelo grupo radical albanês denominado Exército de Libertação do Kosovo (ELK).Em 1998, o conflito na província se intensificou com ataques entre as forças do ELK contra policiais e autoridades sérvias. A retaliação veio em grande escala: ataques a civis e a expulsão de albaneses da província. O conflito durou de março de 1998 a junho de 1999 e esteve repleto por crimes de guerras. Civis foram atacados por ambos os lados. As forças sérvias responderam aos ataques de maneira desproporcional, vilas albanesas foram destruídas o que gerou um grande fluxo de refugiados.

Diferentemente do que havia acontecido na Bósnia, a comunidade internacional agiu rapidamente. As forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), lideradas pelos Estados Unidos, decidiram que iriam intervir no conflito para "prevenir crimes humanitários". Contudo, os Estados Unidos não apresentaram uma resolução ao Conselho de Segurança das Nações Unidas para que sua intervenção fosse aprovada legalmente. Sabia-se que a Rússia e a China rejeitariam o uso da força contra os sérvios e vetariam qualquer resolução sobre esse tema. Assim, a intervenção da OTAN não obteve o aval na ONU — sendo vista como ilegal perante o direito internacional.

O Conselho de Segurança da ONU é o único órgão internacional que decide quando o uso militar pode ser empregado pelos Estados. A Guerra do Golfo, em 1991, foi autorizada pelos membros do Conselho e a intervenção na Bósnia também. Portanto, ao adentrar no conflito do Kosovo sem a permissão da ONU, os Estados Unidos mostravam que estavam acima de qualquer lei internacional. O mesmo ato se repetiria com a invasão ao Iraque, em 2003.

A intervenção da OTAN dependeria se a Sérvia e as forças kosovares conseguissem assinar um acordo de paz. As negociações desse acordo — conhecidas como Conferência Rambouillet — foram intermediadas pelos EUA, Rússia, Reino Unido, Itália, França e Alemanha. Caso não houvesse um consenso, a OTAN teria um controle completo nas relações civis e militares da província e direito irrestrito de circulação dentro da Iugoslávia — que a essa época era formada apenas por Sérvia e Montenegro.

Os acordos negociados em Rambouillet são considerados como formulados para falhar. O acordo previa uma substancial autonomia ao Kosovo, a qual seria garantida pelas forças da OTAN. Argumenta-se que essa cláusula havia sido colocada propositalmente para que Slobodan Milosevic não aceitasse o acordo. De fato, o líder sérvio rejeitou os acordos em nome da integridade da soberania da Sérvia. A invasão da OTAN estava justificada.

A OTAN iniciou pesados bombardeios ao território sérvio. Os principais alvos eram fábricas, rodovias, pontes e usinas elétricas. Contudo, a OTAN frequentemente errava seus alvos, resultando na morte de civis. Isso contribuiu para que a opinião pública estadunidense se sensibilizasse com os ataques. Após dois meses de bombardeios, a OTAN não havia conseguido alguma grande vantagem frente às forças iugoslavas e também não havia conseguido enfraquecer o regime de Milosevic. A fim de pressionar o líder sérvio, o Tribunal Internacional Penal para Crimes na ex-Iugoslávia indiciou Milosevic como responsável por uma campanha de limpeza étnica no Kosovo. A partir disso, Milosevic aceitou a presença internacional no território, porém essa deveria ser realizada também pela ONU. Assim, os ataques a ex-Iugoslávia cessaram.

O pós-Guerra

Os acordos de paz previam a retirada de todas as forças iugoslavas do Kosovo e o estabelecimento da presença internacional no território. A ONU foi responsável pela administração internacional provisória que asseguraria uma substancial autonomia ao Kosovo, mas o acordo não faz qualquer menção de qual seria o futuro status da província. O exército iugoslavo foi retirado do local e forças internacionais denominadas Kosovo Forcers (KFOR) — lideradas pela OTAN — foram implementadas. Assim, a província se tornou autônoma e um protetorado provisório das Nações Unidas, mas ainda sob soberania da Sérvia.

Em 2001, a missão da ONU promoveu a primeira eleição no Kosovo. A província possui poder de eleger sua própria assembleia, Presidente e Primeiro-ministro. As eleições marcam o início da transferência da administração e poder político da ONU às instituições do Kosovo, porém, a Missão das Nações Unidas no Kosovo (UNMIK) segue até atualmente. As principais atividades da Missão são promover segurança, estabilidade e respeito aos Direitos Humanos. Além de contar com o papel de mediação entre Kosovo e Sérvia.

A Declaração de Independência

A independência do Kosovo foi declarada em 2008 de maneira unilateral, ou seja, sem negociações com a Sérvia. Em sua declaração é alegado que o Kosovo é uma república democrática, secular e multiétnica. Assim, o país será guiado pelos princípios da não-discriminação e do direito igualitário.

A Sérvia declarou que a independência da província violava o Direito Internacional e sua soberania, portanto, não reconheceria o Kosovo como Estado independente. A Rússia, que também possui movimentos separatistas dentro do seu território e é uma antiga aliada da Sérvia, também não reconhece a independência do país.

Até então, 116 dos 193 Estados membros da ONU reconhecem a independência do Kosovo. Entre alguns dos países que não reconheceram a província como Estado independente estão: Espanha, Argentina, Bósnia, Grécia, Irã, Iraque, Israel e Brasil. O Brasil declarou que não apoiaria a independência do Kosovo por essa ter ocorrido sem um acordo político com a Sérvia e fora do âmbito das Nações Unidas.

As relações entre Kosovo e Sérvia ainda são complicadas, porém já obtiveram algum progresso desde 2008. Em 2013, as relações entre os dois países foram normalizadas. As negociações foram mediadas pela União Europeia — conhecido como Acordo de Bruxelas — e apesar de contar como uma forte carga simbólica para a melhoria entre as relações de ambos os países, a Sérvia não ratificou o acordo. Assim, não o tornando legalmente obrigatório. O acordo tratava questões pertinentes à população e municípios, por exemplo, a mobilidade transfronteiriça.

Mas afinal, o que faz um país ser independente, ou não?

Questões separatistas usualmente são sensíveis. No Kosovo isso é ainda mais evidente devido ao seu histórico que envolve o desmembramento da Iugoslávia, crimes contra a humanidade, a limpeza étnica que ocorreu durante a guerra e a administração internacional feita pela ONU na ex-província.

A região do Kosovo tem uma grande importância na cultura e no imaginário sérvio — o que dificulta o reconhecimento da independência. Para que o reconhecimento aconteça, a Sérvia exige o controle da parte norte do Kosovo, onde se encontra uma grande população sérvia.

Quando algum país declara sua independência, a maneira de endossá-la é obtendo o reconhecimento da comunidade internacional. O Kosovo tem um reconhecimento relativamente grande entre os países membros da ONU, mas sem um acordo com a Sérvia sua soberania seguirá limitada. O reconhecimento internacional, ou não reconhecimento, muitas vezes está relacionado a motivos políticos, por exemplo, o fato da Rússia e da Espanha não reconhecerem o Kosovo por enfrentarem movimentos separatistas dentro de seus Estados.

Feridas da guerra tanto entre os sérvios quanto os albaneses ainda não estão completamente cicatrizadas, o que dificulta o processo de independência e as negociações. O impasse é grande, porém, há de ser resolvido pela via do diálogo e respeito aos direitos humanos. Apenas assim as lembranças da guerra serão lentamente superadas a ponto de não assombrarem mais a região balcânica toda vez que um desacordo ocorra.

Fontes:
American Society of International Law
Declaração de Independência do Kosovo
Acordo de Paz e Autonomia do Kosovo
Missão das Nações Unidas no Kosovo
Países que reconhecem o Kosovo

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Devlin Biezus

Mestranda em Ciência Política, graduada em Relações Internacionais, projeto de pesquisadora, bookworm. Gosta de política, mas também de batata.