Bem Viver: como eu entendo

Educação e Bem Viver
8 min readJul 28, 2019

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Bem Viver é a tradução para o português de Buen Vivir, que por sua vez é a tradução espanhola do quéchua Sumak Kawsay (Sumak” significaria plenitude e “Kawsay”, viver) ou do aymara Suma Qamaña, que tem o mesmo sentido. O conceito é discutido na cena política do Equador e da Bolívia, e nestes dois países tornou-se preceito constitucional. Antes disso, era filosofia e cosmovisão de cada um desses dois povos ameríndios.

Traduzir um conceito de um povo indígena é ato complexo — temos toda uma ciência, a antropologia, para nos ajudar a fazê-lo, inclusive. Mas comecemos dizendo que, ao traduzir um conceito para outra cultura, ele necessariamente muda, é adaptado, incorpora novos elementos.

O Buen Vivir quéchua no Equador

De acordo com o site do Ministério da Educação equatoriano, (tradução livre minha abaixo)

O Buen Vivir é um princípio constitucional baseado no Sumak Kawsay, que captura uma visão do mundo centrada no ser humano como parte de um entorno natural e social.

Em concreto, o Bem Viver é:

“A satisfação das necessidades, a conquista de uma qualidade de vida e morte digna, o amar e ser amado, o florescimento saudável de todos e todas, a paz e harmonia com a natureza e a prolongação indefinida das culturas humanas. O Buen Vivir supõe ter tempo livre para a contemplação e a emancipação, e que as liberdade, oportunidades, capacidades e potencialidades reais dos indivíduos se ampliem e floresçam de modo que permitam conseguir simultaneamente aquilo que a sociedade, os territórios, as diversas identidades coletivas e como um — visto como ser humano universal e particular ao mesmo tempo — valora como objetivo de vida desejável (tanto material como subjetivamente e sem produzir nenhum tipo de dominação ao outro). Plano Nacional para o Buen Vivir, Equador, 2009–2013.

Imagem de Planeta Holístico

Na Constituição de 2008 do Equador, o Buen Vivir é refletido em direitos sobre água e alimentação, ambiente, comunicação e informação, cultura e ciência, educação, habitat e moradia, saúde, trabalho e seguridade social.

O Buen Vivir aymara na Bolívia

De acordo com o chanceler da Bolívia David Choquehuanca (fonte),

Para os que pertencemos à cultura da vida, o mais importante não é a prata nem ouro, nem o homem, porque ele está em último lugar. O mais importante são os rios, o ar, as montanhas, as estrelas, as formigas, as mariposas (…). O homem está em último lugar, para nós o mais importante é a vida.

No site do Ministério das Relações Exteriores do Estado Plurinacional da Bolívia, há toda uma aba sobre o Buen Viver. Nela, define-se:

Viver Bem ou Buen Vivir é a vida em plenitude. É saber viver em harmonia e equilíbrio, em harmonia com todos os ciclos da Mãe Terra, do cosmos, da vida e da história, e em equilíbrio com toda forma de existência. E esse justamente é o caminho e o horizonte da comunidade; implica primeiro saber viver e logo conviver. Não se pode Bem Viver se os demais vivem mal, ou se se causa dano à Mãe Natureza. Bem Viver significa compreender que a deterioração de uma espécie é a deterioração do conjunto.

Imagem de Brujula

Neste link está um texto criado a partir do pronunciamento de Evo Morales sobre o Bem Viver, no qual são descritos diversos princípios que derivam do conceito, como proteger as sementes e as mulheres, respeitar a água e os mais velhos. E no próprio site do Ministério são explicados 13 princípios do Bem Viver: saber comer, saber beber, saber dançar, saber dormir, saber trabalhar, saber meditar, saber pensar, saber amar e ser amado, saber escutar, falar bem, saber sonhar, saber caminhar e saber dar e receber.

As críticas a esses projetos nacionais de Buen Vivir

É importante ressaltar que esses conceitos, como eu disse, já haviam sido traduzidos desde o seu original para conceitos jurídicos e políticos, e que há ainda outra enorme diferença entre a proposição de um conceito e a realidade. Na prática, ambos Equador e Bolívia são muito criticados por não implementarem o decrescimento e o respeito à natureza como em tese defendem, continuando por exemplo suas políticas de extrativismo predatório.

Um desses críticos, Alberto Acosta, era do partido de Rafael Correa e dele saiu. Em seguida, passou a escrever sobre o Bem Viver e tem livros lançados no Brasil pela Editora Elefante.

O nhandereko Guarani

Ao definir o Bem Viver, muitos citam como uma de suas bases o nhandereko Guarani. Este, no entanto, não tem o significado direto de “Bem Viver”, sendo algo como “nosso modo de viver”. E tampouco embasou princípios constitucionais ou ganhou parte relevante da discussão política em outros países (eles estão presentes no Brasil, Paraguai, Argentina e Bolívia).

Assim, esta seção abordará um pouco sobe o que é o nhandereko.

Nhandereko é como nós, Guarani Mbya, chamamos o que o jurua chama de cultura. Mas nhandereko para nós é mais do que isso. É todo o nosso modo de ser, o nosso modo de viver, o jeito como nós educamos nossos filhos e nossas filhas, como enxergamos o mundo, como nos relacionamos com a nossa espiritualidade. É impossível para o jurua entender o que é o nhandereko, porque somente vivendo é que se compreende o que ele é.
(Comissão Guarani Yvyrupa)

De acordo com Aurora Carvalho, Guarani do Espírito Santo, aldeia da Boa Esperança, em depoimento colhido por Lília Vale, em 1982, e citado por Ladeira e Azanha, tekoá porã, terra boa Guarani, é

mato, que possam plantar, que seja distante do branco, que não haja conflitos […] o tekoa não é apenas a terra.

Foto de desenho de criança Guarani Mbyá, da dissertação de mestrado de Maria Inês Ladeira

O mundo Guarani, como o de muitos povos indígenas (provavelmente todos), é um mundo encantado. Isso, para mim, tem dois significados: tanto há encantamento e vida onde nós não o vemos (vida nos rios, nas folhas, alma nos animais), quanto há sentido para tudo. A cosmovisão Guarani é religiosa e determina uma forma de viver que seria a sagrada.

Essa sua forma de viver, o nhandereko, pressupõe a integralidade do mundo, em harmonia e equilíbrio. Naturaliza os ciclos da natureza e a perecibilidade dos elementos da Terra.

O perspectivismo e multinaturalismo de Viveiros de Castro não são teorias formadas a partir dos Guarani, mas entendê-los nos ajudam muito a entender as cosmovisões ameríndias em geral. Explico um pouco delas no texto Perspectivismo e multinaturalismo: outras epistemologias.

O que é, então, o Bem Viver?

Como vimos, são distintas as definições de Bem Viver, e ainda mais distintas as maneiras de colocá-lo em prática. Se eu for resumir o conceito, eu diria que é uma filosofia inspirada em cosmovisões ameríndias e que propõe a integralidade do mundo e uma vivência em harmonia com a natureza.

E de que serve generalizar essas diferentes filosofias indígenas e traduzi-las para a nossa língua e cultura?

Essa é a chave da pergunta, eu diria. Mais do que “o que é Bem Viver?”, faz sentido para nós perguntar em seguida (ou logo antes) “por que você está falando disso?”.

Em tempos da criação de diversos apostos ao desenvolvimento, Alberto Acosta revisa a história política e econômica para explicar que o Bem Viver não se trata de mais uma alternativa de desenvolvimento — não é mais um “sobrenome” do desenvolvimento, tal qual “desenvolvimento humano”, “desenvolvimento sustentável” ou “etnodesenvolvimento”. “É uma alternativa ao desenvolvimento. Uma fuga ao desenvolvimento.” (O Bem Viver — Uma oportunidade para imaginar outros mundos)

Foto de Atanas Dzhingarov em Unsplash

Propõem-se uma fuga ao desenvolvimento pois ele des-envolve.

Ele é fruto do iluminismo, um pensamento hegemônico do homem que está no centro do universo, pode e deve conquistar tudo. A ideia é que o homem cria seu mundo, ao invés de buscar viver no mundo que existe.

Desenvolvimento e industrialização são movimentos irmãos gêmeos.

Começam juntos e se reforçam. O homem passa a ter mais controle da natureza, a precisar menos dela, e portanto o homem médio passa a conhecê-la menos e a se des-envolver dela. Desenvolvimentismo, hoje, é sinônimo de proposta política de industrialização, e caminha junto com extrativismo e exploração predatória da natureza.

Falar de Bem Viver nesse contexto é falar de uma proposta que faz frente a esse desenvolvimentismo.

A ideia é propor que ao invés de tentarmos crescer até o infinito, com foco no lucro, propondo que viver bem seria nos distanciar cada vez mais da natureza, olhemos para a sabedoria ancestral dos povos ameríndios e aprendamos a nos reenvolver, a nos relacionar com a vida de outra maneira.

Reenvolver-se com o Bem Viver nada tem a ver com uma negação da tecnologia ou de outros aspectos da modernidade.

Porém significa que não precisamos mudar de carro, celular ou computador a cada ano, e que se faz sentido ter grandes empresas mundiais para produzir alguns elementos tecnológicos complexos, não faz sentido tomar café e comer pão de uma multinacional.

Foto de paul mocan emUnsplash

Reenvolver-se com o Bem Viver é conhecer e encontrar sentido em cada ação e aspecto do cotidiano, um pouco como os Guarani.

É saber de onde vêm o que você consome, e ter a certeza de que eles foram produzidos por pessoas em condições dignas (produção digna e por pessoas que vivem de forma digna). É reconhecer que a Terra é um organismo único, e que a doença de uma parte é a doença do todo.

Falamos de Bem Viver e é importante falar de Bem Viver não como uma proposta etnológica de compreender a cosmovisão de outros povos, mas sim como uma proposta para impedir o fim do mundo (nas palavras de Ailton Krenak) ou a queda do céu (nas palavras de Davi Kopenawa Yanomami). Propondo o fim do extrativismo predatório, o decrescimento sereno e a igualdade, o reconhecimento dos direitos da natureza.

E qual a relação do Bem Viver com as propostas políticas “tradicionais” como socialismo e anarquismo?

O socialismo e mesmo o ecossocialismo são teorias marxistas, que se lidas conforme o materialismo histórico são adaptáveis a nossa realidade latinoamericana. O ecossocialismo, em específico, leva em conta a ecologia e a integralidade da terra, mas a partir do socialismo marxista.

O anarquismo é um conceito por si só complexo, pois abarca filosofias drasticamente distintas entre si como o anarcocomunismo e o anarcocapitalismo. No entanto, vale o mesmo ponto que o socialismo: é uma teoria que, ainda que viva e em movimento, nasce de uma epistemologia europeia, e é uma teoria que se propõe realidade e ação.

A Sabrina Fernandes fala neste vídeo sobre o ecossocialismo:

Por outro lado, o Bem Viver é um conceito que têm origem nos povos ameríndios e em sua cosmovisão: que é, sim, filosofia, mas é filosofia vivida, é vivência. Não nasce em livros, é parte da realidade desses povos. E, agora, torna-se filosofia e teoria para mudança da nossa sociedade.

Assim, podemos dizer que, dentro do ecossocialismo ou na anarquia propomos o Bem Viver, mas são conceitos diferentes e independentes.

Leia também Por que eu acredito no que eu acredito? As bases das minhas crenças.

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Educação e Bem Viver

Educadora e mestre em educação. Ecossocialista e defensora do bem viver.