Procura-se uma lei para biometria facial_Parte 3

Uma grande oportunidade que virou uma calça de retalhos

Eliéser de Freitas Ribeiro
7 min readJan 3, 2023

Por Eliéser Ribeiro I Sociólogo de Dados

Era uma vez uma mãe muito trabalhadora e dedicada que tinha um filho adolescente. O garoto gostava de fazer coisas que exigiam muito das suas calças, como andar de bicicleta, subir em muros ou escalar árvores. Isso fazia com que as calças dele rasgassem com muita frequência. Ela costurava os rasgos com retalhos de tecidos de diferentes cores e texturas, criando uma calça estranha, mas que ainda servia para o uso. Essa calça serve como metáfora para o projeto de lei de biometria facial, que foi criado para atender a uma necessidade urgente, mas foi costurado com vários retalhos e acabou não sendo suficiente para resolver todos os problemas.

Calça de retalhos. Roupa velha.
Calça usada com retalhos

Em 2015, o Brasil enfrentava uma grave crise política e econômica, e havia uma grande necessidade de uma legislação para regular o uso da biometria facial. Sem ela, havia problemas de privacidade, falta de transparência e questões éticas, além de possíveis abusos e discriminações. Em meio a essa crise, Dilma Rousseff começou seu segundo mandato como presidente, mas enfrentou forte oposição e foi afastada do cargo em 2016 devido ao processo de impeachment. Seu vice-presidente, Michel Temer, assumiu a presidência em seu lugar.

No início de 2015, num tumultuado contexto político, foi proposto o Projeto de Lei 12/2015, que visava regulamentar a utilização de sistemas de verificação biométrica no Brasil, estabelecendo normas gerais para o seu uso e protegendo os direitos das pessoas que os utilizam. O projeto estabelecia condições e critérios para o uso desses sistemas, incluindo a obrigatoriedade de autorização prévia e o respeito à privacidade das pessoas. Além disso, estabelecia regras para o armazenamento e compartilhamento de dados coletados por esses sistemas, incluindo a necessidade de consentimento prévio e a possibilidade de exclusão de dados pelas pessoas interessadas.

Golpe contra Dilma Rousseff
17 de abril de 2016: Câmara dos Deputados abre o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff (PT) — Evaristo Sá-AFP

O PL 12/2015 também estabelecia medidas de segurança para garantir a integridade e confidencialidade dos dados coletados, bem como medidas disciplinares para punir os responsáveis por eventuais violações das regras estabelecidas. O projeto foi proposto pelo parlamentar Lucas Vergílio SD e baseou-se no Projeto de Lei nº 3.558, de 2012. O PL 12/2015, teve intensa tramitação no ano de 2015 e estava sendo analisado pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados. Você pode acompanhar neste link a ficha de tramitação do projeto que foi perdendo força nos anos seguintes e precisou ser modificado tempos depois.

A tecnologia de reconhecimento facial e também emocional se dissemina rapidamente no Brasil e no mundo e vem sendo usada em diversas áreas, como comércio, transporte, saúde e assistência social. As tecnologias são úteis, mas também podem ser usadas de maneira abusiva ou discriminatória, violando a privacidade das pessoas e suas liberdades individuais. É mais que urgente criar um marco regulatório para garantir o uso legítimo dessas tecnologias e proteger os cidadãos contra possíveis abusos. É necessário estabelecer medidas para garantir que a tecnologia de reconhecimento facial e emocional seja utilizada de maneira responsável e ética enquanto ela continua a se desenvolver.

Considerando a urgência em 2019, foi elaborada a proposta com mais detalhes para regulamentar as tecnologias de reconhecimento facial. O deputado Bibo Nunes PSL/RS propôs o projeto de lei 4612/2019, que faz um apensado do projeto anterior (PL 12/2015) e propõe novas diretrizes.

Congresso nacional brasileiro
Congresso Nacional Brasileiro

O novo projeto contou com 6 capítulos com os seguintes conteúdos:

O Capítulo I: Disposições gerais do Projeto de Lei n. 4612/2019 estabelece as regras gerais que regem o desenvolvimento, aplicação e uso de tecnologias de reconhecimento facial e emocional, bem como outras tecnologias digitais voltadas à identificação de indivíduos e à predição ou análise de comportamentos. As atividades da cadeia de suprimento dessas tecnologias, incluindo a concepção de produto ou serviço, origem e uso de dados, dispositivos e aplicações desenvolvidos para uso da tecnologia, também são abrangidas pela lei. Além disso, as tecnologias de reconhecimento emocional visam a identificar características como personalidade, sentimentos e saúde mental.

O Capítulo II: Uso e aplicação das tecnologias de reconhecimento facial. Define o que são dados pessoais sensíveis e que serão regidos pela Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD). Atribui à Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) a responsabilidade de estabelecer um cronograma e acompanhar a implementação da lei. A Seção I trata dos direitos e obrigações dos desenvolvedores e usuários dessas tecnologias. A Seção II trata dos direitos dos cidadãos afetados.

O Capítulo III: trata do compartilhamento de dados para o desenvolvimento, aplicação e uso das tecnologias digitais. O capítulo trata do uso compartilhado de dados por entidades públicas e privadas. Proíbe a comunicação ou uso compartilhado de dados pessoais sensíveis entre controladores com o objetivo de obter vantagem econômica. Atribui à ANPD a responsabilidade de regulamentar os critérios para a comunicação ou compartilhamento de dados após ouvir os órgãos setoriais do Poder Público.

O Capítulo IV trata da segurança e das boas práticas na utilização das tecnologias de reconhecimento facial. Um dos artigos estabelece que os agentes envolvidos nessas tecnologias devem seguir os padrões de segurança definidos pela LGPD e pela regulamentação da ANPD. Outra parte estabelece que os agentes devem seguir altos padrões técnicos e éticos, que podem incluir o uso de equipes externas independentes de consultoria e monitoramento e regras e sistemas que permitam ampla transparência sobre a infraestrutura utilizada nas atividades relacionadas à tecnologia.

O Capítulo V: trata da criação do Banco Nacional de Reconhecimento Facial e Emocional, responsável por armazenar dados biométricos faciais e emocionais de pessoas que têm mandados de prisão cumpridos ou não. Este banco de dados é mantido pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e tem como objetivo ajudar nas investigações criminais e na captura de foragidos da justiça. Ele pode ser integrado a outros bancos de dados através de acordos ou convênios, mas a comercialização de sua base de dados é proibida. A autoridade policial e o Ministério Público podem solicitar ao juiz o acesso ao banco em caso de inquérito ou ação penal. A formação, gestão e acesso ao banco são regulamentados pelo Poder Executivo Federal, e o uso indevido dos dados contidos no banco é responsabilizado civil, penal e administrativamente.

O Capítulo VI: trata de disposições finais. Estabelece que o descumprimento da lei sujeita o infrator às sanções previstas na LGPD e suas alterações. Os recursos financeiros resultantes das multas serão destinados ao Fundo Nacional de Segurança Pública.

Projeto de lei engavetado

O projeto de lei 4612/2019 tem gerado controvérsias e debate, com argumentos a favor e contra sua implementação. Um exemplo é o Capítulo V, que propunha criar um banco nacional controverso para armazenar dados biométricos faciais e emocionais de pessoas com mandados de prisão já cumpridos ou não. Este banco, a ser mantido pelo Ministério da Justiça, teria como objetivo auxiliar nas investigações criminais e na captura de foragidos da justiça. Alguns defendem que ele é necessário para garantir a segurança e a ordem pública, enquanto outros afirmam que ele pode ser utilizado de forma abusiva, violar os direitos de privacidade das pessoas e gerar vieses de raça e gênero.

Jovem engavetando num arquivo.

O projeto de lei em questão possui muitas emendas ou alterações feitas por diferentes parlamentares ou grupos políticos, o que resultou em uma grande “árvore de apensados”. No Brasil, uma lei com uma grande árvore de apensados é uma lei que contém muitas emendas ou alterações adicionadas à lei original, formando uma espécie de conjunto complexo e extenso de alterações. O termo “apensados” se refere ao fato de que essas emendas são anexadas à lei original e devem ser votadas e aprovadas junto com ela. Isso pode ser comum em leis que tratam de assuntos polêmicos ou de grande importância para a sociedade.

De todo modo, o projeto de lei 4612/2019 foi interrompido e não teve continuidade. Durante o período de 2015 a 2019, outras leis e diretrizes foram aprovadas para atender às necessidades da sociedade, incluindo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e as diretrizes da ANPD, estabelecidas em 2018, que serão discutidas em um próximo texto.

Desfecho da história

A calça do garoto ficou tão velha e remendada que ele não quis mais usá-la. Ela estava tão desengonçada que o garoto não se sentia confortável usando-a em público. A mãe, então, decidiu que era hora de comprar uma nova calça para o filho, mas infelizmente não tinha recurso suficiente para isso.

O garoto, então, sugeriu que voltasse a usar bermudas, que eram mais baratas e duravam mais tempo. A mãe, apesar de achar que as bermudas não eram a melhor opção para a idade do filho, acabou cedendo e permitindo que ele usasse bermudas novamente. Ela sabia que era o que servia para aquele momento e que o mais importante era o filho ficar bem. Com isso, o garoto teve que se conformar com suas bermudas e o Brasil adaptar-se com suas diretrizes.

Objetivo da série

Nesta série, nosso objetivo é acompanhar o processo de criação da lei de biometria facial, descrever as discussões e observar as melhores práticas internacionais. Com isso, esperamos poder contribuir para o debate sobre os conteúdos de uma lei que esperamos ver estabelecida nos próximos anos.

Venha com a gente nessa caminhada!

Acompanhe também a

Parte 1
Parte 2

Até mais.

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Eliéser de Freitas Ribeiro

Sou sociólogo de dados, mestre em Sociologia, especialista em IA, especialista em pesquisa e análise de dados. Trabalho com Python, R, SQL, Power BI, Tableau.