Como desistir do exame mais importante da sua vida em 5 simples passos (1 de 5 — A Decisão)

Maria João Brito
7 min readAug 5, 2018

--

(este texto é parte integrante de uma série de crónicas autobiográficas, sendo continuado por este e este.)

Despiste ou Fuga?

Corre o ano de 2012. Numa pequena cidade, uma rapariguinha de 17 anos candidata-se ao ensino superior. Nas suas escolhas, constam 6 pares instituição/curso, todos eles em Medicina.

Porquê?

Recuando um ano a partir deste momento, encontraríamos a mesmíssima garota a dizer que não gostava de hospitais, nem de lidar com gente doente. Que gostaria de contribuir para a descoberta, para a inovação. Que a fascinava a investigação científica, algo na área da farmacêutica, talvez(?).

Recuando ainda mais dois anitos, até 2009, daríamos conta de um pequeno debate, interno e não só: qual a área a seguir no secundário? Testes psicotécnicos para a frente e para trás, uma fortíssima propensão para a área artística (98/100), seguida pela áreas de empreendedorismo e literatura. A da saúde? Uns míseros 30/100.

Fast-forward. Estamos em 2018 e a tal rapariga sou agora eu: Mestre em Medicina. Sem saber bem como.

A minha história não é fácil de digerir. É algo que conto a medo de ser julgada por nunca ter tido a Medicina como objectivo, mas sim como algo que “me aconteceu”. Torna-se uma narrativa particularmente sensível quando contada a gente que tanto lutou para conseguir chegar aqui. É um quase-tabu na comunidade médica estudantil. É perfeitamente admissível discutir o quão aborrecido é o estudo, postar fotos de livros sublinhados #matemmejá, ou até (sempre jocosamente) dizer “ai, mais me valia ir servir às mesas” quando o estudo aperta. Mas uma declaração genuína de que ter enveredado por Medicina pode ter sido um erro não é vista com bons olhos.

Voltando a 2012, é difícil recordar-me do motivo que me levou a ignorar todos os 16 anos anteriores em que nunca quis (nem por um momento!) ser médica. Posso apenas elencar alguns dos ingredientes que compuseram o cocktail: notas que me permitiam entrar facilmente, um momento de fragilidade psicológica, a aliciante empregabilidade de 100%, a suposta remuneração choruda, alguma pressão (quiçá involuntária) da família e então namorado, bastante curiosidade pelo funcionamento do corpo humano e a falácia de que “é mais fácil ir para Medicina e mudar do que ir para outro curso e decidir que afinal quero Medicina”.

Não poderia ter estado mais longe da verdade. Assim que se entra em Medicina é muito difícil sair. Começando pela praxe, passando pelos próprios colegas e acabando nos docentes, somos desde cedo imbuídos da noção de que somos a “nata da nata”. Conseguimos entrar no curso mais desejado, à porta do qual fica a maioria dos candidatos. Os nossos familiares relatam com orgulho que estudamos para ser médicos. Temos sweatshirts amarelas para o mostrar a todos. Até os nossos amigos comentam “ah, mas estás em Medicina” com um misto de admiração e desdém — “por que é que raios te estás a queixar?”

Eu nunca me senti a nata de nada.

Lembro-me distintamente de na minha primeira época de exames ter querido desistir. “É o embate inicial”, “O primeiro semestre é sempre o mais difícil”, “Vais ver que isso passa, é do stresse”, “Quando chegares aos anos clínicos, valerá a pena” — disseram todos. E eu acreditei. Fui colhendo notas mais que satisfatórias como reforço positivo e lá me distraí — amigos novos e interessantes, associativismo, todo um mundo de possibilidades que a Medicina me tinha aberto. As cadeiras nem pareciam tão más assim. A curiosidade que sempre me moveu foi sendo suficiente para continuar.

Chegou então o ansiado 3º ano — ano de ir para o hospital, ano de vestir uma bata branca (com direito a cerimónia e tudo!). E eu não podia estar menos feliz: afinal nada daquilo valera a pena. As horas que passava no hospital eram um sacrifício. As cadeiras passaram a ser uma lista de sintomas, padrões histológicos, doenças e fármacos a decorar religiosamente. E nada disto fazia sentido para mim. A sensação de que não pertencia ali reemergiu, mais forte que nunca, prendendo-me a uma cama em que eu podia ignorar o estudo. Passei algumas semanas assim. Os meus pais, preocupados, chegaram-me a oferecer a possibilidade de desistir de Medicina e ir para outro curso.

Mas que outro curso? A ciência que outrora adorava já se evaporara do meu cérebro. Os desenhos que antes tanto me entretinham saiam toscos de uma mão destreinada. Tinha passado os últimos anos a dedicar-me em às anatomias, bioquímicas e outras que tal. E o medo de deitar fora essa dedicação e de abdicar de um futuro certo por um caminho que não conseguia definir levou-me a ficar.

Reorganizei-me. Mudei de um quarto particular para uma residência estudantil onde não seria aceitável passar os dias na cama. A perspectiva de Erasmus e um certo encantamento pela Psiquiatria foram a força motriz para continuar. Voltei a desenhar. Voltei a criar. Voltei a ser eu. As minhas notas, claro, desceram.

Iria acabar o curso, em piloto-automático e a contragosto, fazendo as cadeiras à base de horas em frente dos livros em que fazia tudo menos estudar e noites em claro nas vésperas dos exames “porque sim”, “porque tinha de”. O estágio, nada mais que as mesmas horas fastidiosas de hospital. À excepção da Psiquiatria, nada na prática clínica me interessava minimamente.

Entreguei-me à tese, na área que me interessava e com aroma a ciência. Pela primeira vez em anos empenhei-me de alma e coração em algo relacionado com o curso, e desse empenho genuíno nasceu um sucesso estrondoso e generosos elogios ao meu trabalho. Provei a mim mesma que assim querendo era perfeitamente capaz de criar algo excelente.

O problema era então principalmente da minha inadequação à Medicina, da natureza excessivamente teórica e de memorização desta, das suas hierarquias estanques e da aridez de pensamento criativo às quais eu nunca me soube adaptar. Foi finalmente claro para mim que os anos de desleixo não tinham sido somente fruto de preguiça minha, de incapacidade para estudar ou de problemas de concentração — tinham sido fruto, isso sim, de uma perfeita desmotivação e desinteresse pela matéria, de uma falta de identificação com o meio médico, da ausência um real propósito para me esforçar.

Eis que me vejo a braços com o temido Harrison, o exame para o qual milhares de recém-graduados passam um ano ou mais a estudar para terem acesso à especialidade que sempre quiseram, ou no mínimo para evitar a indiferenciação. 100 perguntas, muitas delas acerca de pormenores insignificantes tirados de um considerável volume de matéria. Nem uma delas remotamente associada à Psiquiatria. O exame que leva até o mais empenhado estudante de medicina aos limites da sua saúde mental. Não há para este exame um #amorquenãoseMe(r)d.

E eu, com o historial que até agora tinha tido, a tentar fazer isto. E tentei. Estudei como já não estudava há muito tempo. Fiz notas na borda dos slides. Tentei entender. Perdi horas infindas a sublinhar percentagens e genes. Dias bons, dias maus. Mas os dias bons não eram suficientes. Dei por mim em meados de Julho atrasada de tal forma no estudo que apenas a mais obstinada das dedicações seria capaz de compensar.

E em mim não existia tal dedicação. Não pela Medicina. De momento, nem pela Psiquiatria. Estava a estudar contrariada, com constantes pausas para tudo o resto. O meu cérebro borbulhava de ideias para se abster daquilo. E uma profunda sensação de absoluto falhanço invadiu-me. Eu já devia ter acabado a primeira volta. Eu devia conseguir levantar-me para estudar. Eu devia querer lutar para não deitar fora estes 6 anos de sacrifício. Eu devia conseguir aguentar esta recta final. Eu devia conseguir fazer isto.

Mas eu estava exausta. Do choro fácil à impaciência, à insónia, à intolerância, ao isolamento social, à completa perda de sentido para a vida. Até o corpo se ressentia: no espaço de dois meses contraí umas quatro infecções diferentes.

O Harrison exige uma anulação quase total dos outros interesses que possamos ter. Uma dedicação plena. Exige determinação praticamente inabalável, um verdadeiro sentido de propósito. Mais do que o estudo, traz em si uma pesadíssima carga emocional com a qual é difícil lidar sem uma admirável resiliência. A competição, as vagas que escasseiam, as notas que sobem todos os anos. Tudo coisas que criam em nós uma perniciosa culpa sempre que fazemos algo que não estudar, por muito exaustos ou incapazes de o fazer que estejamos.

Em mais uma das minhas lendárias procrastinações, sentei-me com uma folha branca à minha frente e tentei esboçar todos os diferentes caminhos que poderiam derivar daquele ponto na minha vida. Era suposto ser uma coisa rápida, antes de estudar a sério. Mas a reflexão tornou-se mais séria do que eu pretendia, e depois de várias horas a traçar linhas divergentes daquela que eu até aqui tinha julgado a única plausível, olhei para o papel que tinha à minha frente. Nele, imensas combinações de possibilidades tinham crescido. Subitamente sujeitar-me a mais 4 meses de intenso desgaste que muito provavelmente não iriam levar a nada deixou de ser a única saída.

Desisti do Harrison.

(to be continued.)

Parte 2 aqui.

--

--

Maria João Brito

I still want to change the world, one person at a time if needed.