Como desistir do exame mais importante da sua vida em 5 simples passos (2 de 5 — As Reacções)

Maria João Brito
6 min readAug 13, 2018

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(este texto é parte integrante de uma série de crónicas autobiográficas, sendo precedido por este e antecedendo este.)

Levantei a minha cabeça daquele mapa de possibilidades.

Gostaria de poder dizer que fiz uma decisão imediata, cheia de determinação — um acto de coragem semi-heróica feito a sangue frio e sem hesitações adornaria melhor esta história. Mas tal não aconteceu. Aquando da sua materialização na minha cabeça o “vou desistir do Harrison” pouco mais era do que uma possibilidade remota, um daydream. Dei por mim a necessitar de muito mais validação externa do que gosto de admitir — precisaria de usar a ajuda do público nesta questão. Estava ainda o fluxograma a nascer das minhas mãos indecisas e já enviava fotos dele ao meu círculo mais chegado.

As reacções variavam. Desde os “acho bem, isto não te estava a fazer bem nenhum” “és nova, podes tirar um ano ou dois para teres a certeza” “podes sempre ir fazer o exame depois” aos “hum, tens a certeza?” “não estarás só cansada?” “pensa bem nisso” “olha que o próximo exame não vai ser mais fácil”, de tudo um pouco ouvi.

À semelhança daquelas ocasiões em que se atira a moeda ao ar e no segundo antes de aterrar se torce por uma determinada face, cada obstáculo que me era colocado não debelava a minha intenção, pelo contrário: eu torcia ferozmente por uma saída da prisão em que se tinham tornado os meus dias.

À medida que fui ficando mais convicta da viabilidade da ideia, pesquisei um pouco — afinal os médicos também usam (e muito!) o Dr. Google.

Que opções haveria para uma médica… além de ser médica? Os resultados tinham tanto de reconfortante como de desanimador. Se por um lado, ao pesquisar em inglês encontrei imensa gente, de todo o globo, a passar pelo mesmo que eu e a ter sucesso noutros ramos, a sentirem-se finalmente realizados… por outro, em Portugal o único caso que encontrei foi o de um interno de Medicina Geral e Familiar que em 2005 perguntava qual a melhor faculdade para realizar o seu sonho de ser programador — e recebia como resposta “mais te vale ficares pela Medicina, que de um curso desses sais a ganhar 800€/mês se tiveres sorte”.

E aqui reconheço que não seria capaz de continuar sem uma certa presunção, sem a desfaçatez de acreditar que eu poderia fazer melhor. E isto não foi nada fácil. Dizem-nos que somos a nata da nata, para depois passarmos seis anos a sentir que nada valemos, afundados em demasiados detalhes teóricos de demasiadas cadeiras desinspiradas. Tudo é demasiado para quem tem outros interesses (das simples séries até ao associativismo) que deseja cultivar para além do curso. Quem tenta, acaba a duvidar se estes não serão ervas daninhas. Para mim, foram flores. E agora era a sua vez de serem regados, de coexistirem em pleno direito com aquela que é, e sempre será, a minha formação-tronco: a Medicina. Mesmo que eu me sinta um cepo.

Esta decisão não se consolidou antes de uma conversa decisiva. Passara menos de um mês desde que me mudara para junto de uma grande amiga que voltado a estudar o Harrison, para tentar pela segunda vez o exame. Temia que ao contar-lhe a reacção dela fosse tentar motivar-me a insistir como ela estava a fazer, ou pior ainda, desmotivá-la eu de continuar a fazê-lo. Não podia ter estado mais enganada. O que recebi dela foi nada mais do que a compreensão de alguém que, com um temperamento similar ao meu, tinha passado pelo mesmo. “Quem me dera ter tido a coragem de desistir o ano passado. Andei a cansar-me em vão. Mas agora vou fazer isto, e se tu o quiseres fazer depois, estou certa que consegues.”.

Não direi que nunca pairou em mim a dúvida de se não seria eu apenas cobarde, a desistir face a um mero obstáculo mais exigente. Continua a pairar. Mas depois disto a decisão era definitiva — não iria continuar a insistir, por medo do desconhecido, em algo que não me tinha até então trazido felicidade. Se naquele momento “deitar fora” 6 anos (que na verdade, não foram deitados fora) era assustador, não conseguia imaginar o quão avassalador seria, daqui a 20, 30, 40 anos, olhar para trás e ver uma vida “deitada fora”, dedicada a uma profissão que não me enchia as medidas, por muito boa que pudesse ser a vida por ela patrocinada. Particularmente arrasador seria caso chegasse a esse ponto por nunca ter tido coragem para parar. Para pensar melhor. Para me atrever a explorar caminhos alternativos, principalmente quando até o caminho já traçado toleraria alguns desvios.

E qual a melhor forma de levar uma decisão de vida inconvencional para um test-drive? Transmiti-la aos nossos pais.

Isto poderia ter corrido muito mal, não tivessem os meus pais sido bastante respeitadores das minhas liberdades individuais desde que me tornei adulta e o mereci. Não posso dizer que deles colhi apoio incondicional, suporte emocional e compreensão infinita — nem podia esperar isso. Eu própria imagino que enquanto mãe/pai seja aterrador ver uma filha idealista (quiçá iludida) com um caminho rectilíneo e confortavelmente previsível, qual auto-estrada, a fazer um drift em direcção a um caminho mal iluminado, de terra batida. Obtive deles, isso sim, respeito pela minha decisão e a liberdade para fazer, com a vida que minha é, aquilo que entendesse. Isto sem deixar de realçar, como sempre, que da liberdade nasce também responsabilidade. Eu estava pronta para ela.

Passei algumas noites mal dormidas depois disto, não por medo ou incerteza como seria de esperar, mas sim por um entusiasmo quase febril com o qual o sono não era compatível. De uma dessas noites saiu, de rajada, o capítulo anterior desta série de textos.

Foi libertador escrevê-lo, ainda mais publicá-lo. Fi-lo meio a medo, confesso, de me expor demasiado nas redes sociais. Mas depois pensei que por aí haveria gente a sentir e a passar pelo mesmo que eu, alguns deles a culpabilizarem-se por isso. A intenção foi a de tentar normalizar, de fazer alguém sentir-se menos sozinho nos sentimentos de inadequação e de frustração que a Medicina pode gerar.

Nem por um momento pensei que pudesse vir a ter o alcance que teve.

De repente, somavam-se comentários, mensagens privadas, pedidos de amizade, partilhas. Pessoas que eu não conhecia de lado nenhum a partilharem o texto entre si. A virem falar comigo. A darem-me os parabéns pela coragem, pela escrita, pela partilha. A demonstrar empatia, “sempre senti o mesmo que tu”. Inadvertidamente, tinha transposto para texto os sentimentos de tantas outras pessoas. Mesmo aquelas que gostando de Medicina tiveram em si a dúvida se era mesmo aquilo que queriam para o resto da vida, em lugar de qualquer um dos seus outros talentos e interesses mais prazerosos. Mesmo as que adorando Medicina acima de tudo tinham os seus momentos de incerteza quanto às vertentes menos bonitas desta.

Recebi muitas mensagens extremamente positivas, pelas quais não poderia estar mais grata. Fiz questão de responder a cada uma delas. Em cada uma, por muito singela, encontrava mais um motivo para perseverar na minha busca de alternativas.

Contudo, e apesar deste alarido todo, de tanto apoio, de tantas opiniões sobre a minha decisão, conservo com especial carinho uma em particular. A da minha avó, que do alto dos seus anos e com a simplicidade de outros tempos, me disse:

Estás cansada não é, filha? Vá, descansa, já muito fizeste tu.

(to be continued)

Parte 3 aqui.

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Maria João Brito

I still want to change the world, one person at a time if needed.