Como desistir do exame mais importante da sua vida em 5 simples passos (3 de 5 — E Agora?)

Maria João Brito
4 min readSep 18, 2018

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(este texto é parte integrante de uma série de crónicas autobiográficas, sendo precedido por este e este.)

Nas notícias: “Medicina fora do top 5 das médias mais altas pela primeira vez”.

Lembro-me de, ainda em 2012, ter sido convidada para um jantar no Casino da Figueira onde o então bastonário da Ordem dos Médicos, dirigindo-se a um grupo de bons alunos que me incluía, disse: “Neste momento já não compensa estudar Medicina pela qualidade de vida nem pela remuneração, já nem o emprego é garantido.” e “Venham apenas se realmente quiserem ser médicos, mais que tudo.”. Não posso dizer que ninguém me avisou. No entanto, voltei para casa a achar que o que me tinha sido dito não tinha outra intenção que não a de defender os interesses de uma classe. Estava enganada.

Por um lado, fico feliz ao saber que os jovens nascidos em 2000 (2000! já na faculdade!) tiveram a clarividência que eu não tive: perceberam que a Medicina já não é a galinha de ovos de ouro que os nossos pais nos prometiam. Por outro, não me apraz ver o curso que eu (e boa parte daqueles que preenchem a minha vida) escolhi a perder valor.

Afinal já não somos a nata da nata. E as últimas semanas da minha vida não têm feito mais que corroborar esta amarga conclusão.

Infelizmente, o ensino da Medicina em Portugal foi deixado à mercê da falta de planeamento racional que miseravelmente infecta quase tudo aquilo que neste rectângulo à beira-mar plantado acontece. Uma profunda trama de interesses dos ministérios, das universidades, das faculdades, dos departamentos, das regências, seus egos e suas vistas de fraco alcance, acaba por ditar que um jovem que estuda Medicina pouco mais possa ser que médico, num país onde há médicos a mais e vagas pós-graduadas a menos.

Resta ao jovem estudante, de 17/18 anos à entrada, a seguinte decisão: equipar-se de umas palas bem opacas e relegar os seus outros interesses para quarto ou quinto plano para ser um excelente memorizador de inserções musculares, segundos mensageiros, valores de referência, guidelines, e quiçá ainda um ou dois nomes extravagantes da área em que o regente trabalha; ou, num acto de audácia desencorajado pela vasta maioria dos seus professores, descurar essa insípida tarefa para traçar um caminho alternativo, na penumbra de uma candeia que só ele tenta acender, sabendo que nada do que dele fizer contará para o ingresso na carreira médica.

Não é uma decisão fácil, e tendo optado pela segunda, sinto frequentemente que estou a cometer um erro ao tentar nadar contra a corrente.

Medicina tem uma saída profissional: ser médico. Não se encontrará em nenhuma das faculdades uma daquelas feiras de emprego. Não precisamos, vamos todos ser médicos. Não haverá career counseling, ninguém precisa de ajuda a escolher de um cardápio com um prato apenas. O almoço é sempre arroz, e convenientemente olvidamos que o tacho já não tem espaço para albergar tanto baguinho de bata branca. Transborda, e que se queime quem fez algo que não estudar.

E agora?

Não fiquei quieta. Já perdi a conta aos formulários de candidatura enviados. Do outro lado, ora um e-mail automático (“Obrigada pelo seu interesse!”), ora um silêncio ensurdecedor. Saber doenças já não me vale de nada, e no meu CV não cabem as minhas ilustrações mordazes, nem aquela noite em que me mantive calma estando perdida e sem telemóvel nos subúrbios de Berlim, nem os artigos lidos, nem os escritos inflamatórios com muitos likes, nem aquela vez em que aprendi a receber oradores e a fazer conversa sofisticada, nem os mil cartazes e horas em reuniões, nem os congressos, workshops e outros que tais, nem sequer as soft-skills que tanto pedem mas que nunca aferem. A inteligência que me muniu de uma média que bastaria para qualquer curso deixou de contar no malfadado momento em que escolhi passar 6 anos a embrutecer-me com detalhes teóricos, colados com cuspo e regurgitados para quadrículas de escolha múltipla.

E agora?

Talvez emigre e leve comigo a avultada soma que o contribuinte investiu neste projecto inconcretizado de médica. Talvez fique e seja obrigada a subjugar-me a um trabalho desinspirado que sustente uma vida mediana. Talvez de repente se acenda em mim uma centelha empreendedora, abafada pelas circunstâncias até então. Talvez acorde amanhã e mude de ideias. Talvez faça alguma coisa de jeito. Talvez alguém acredite em mim. Talvez não.

E agora?

Danço atrevidamente numa corda bamba, sem pais abastados a servir-me de rede de segurança. Mesmo tendo medo das alturas. O caminho não está desbravado e eu vim pouco agasalhada contudo pesada de tanta bagagem.

E agora?

Continuarei a tentar. A tentar melhorar-me como puder.

E agora?

Logo se vê.
(to be continued.)

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Maria João Brito

I still want to change the world, one person at a time if needed.