Ponta de Areia, 3
3. A Jornada até Caraíva
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3. A Jornada até Caraíva
Ainda não completamos 48hs de viagem e já estamos em Trancoso; cansaço é visível em nossos semblantes. De mim, posso dizer que já embarquei exausto pra Porto Seguro; vindo de uma semana que foi um misto de ansiedade e sono ruim, somados ao desgaste físico de ficar dias resolvendo milhares de micro-pepinos.
Depois desse batidão todo, vivemos dias calmos em Trancoso. Não interessava muito a nenhum de nós dois aquele clima turistão e isso era uma deixa perfeita pra não fazer nada e desacelerar um pouco. Outros fatores contribuíram: os preços caríssimos e a praia deprê-show, infestada de “lounges” com som alto, estilo eletrônico genérico-wannabe-Ibiza, por toda parte; cada área com um line up diferente, todos deploráveis.
Me inquietava muito imaginar o processo de urbanização e gentrificação dali; pensava por horas sobre a agressividade com que o turismo de massa chega e transforma as dinâmicas de convívio; a interação do visitante com o nativo vira uma coisa estritamente comercial e rasa. O turismo tóxico de Trancoso me fazia filosofar sobre o sentido de viajar e me trazia um panorama de que tipo de viajante eu não queria ser. Lembro dos meus pais e seus círculos de amizades e penso que gostariam dali -mas não sei se acho isso bom ou ruim… O tédio sempre mobiliza grandes reflexões. Passam-se três dias.
Ainda é cedo e já estamos na estrada. Somos dois cariocas assustados -especialmente eu-, e, assim, os rumores de criminalidade nas periferias de Trancoso produzem uma grande ansiedade na nossa jornada. Conseguimos sair do perímetro urbano e começamos a sentir alívio por isso. Eis então que vozes, gritando, vêm se aproximando. Percebemos um carro chegando perto e sinto o pavor de que algo terrível vai acontecer; estamos numa estrada deserta. Nada acontece: são apenas nossos amigos do Rio, que encontramos em Trancoso; estão seguindo viagem na mesma direção que a gente.
Nossos planos estão em aberto para essa etapa: queremos conhecer bem a Praia do Espelho, mas não sabemos se vamos achar hospedagem; muita gente disse que “só tem coisa de rico lá”, de forma que, a despeito do desejo, pensamos que um camping lá seria improvável. O pessoal do carro está indo pra lá, num esquema chic-família que não pode nos hospedar.
Está um sol brutal e a estrada segue num grande pasto cheio de búfalos; que é uma paisagem engraçada de se ver, meu imaginário sempre associou esses bichos a terras estrangeiras.
Depois de umas três ou quatro horas por uma estrada esburacada e cheia de sobe e desce, chegamos em uma ladeira que mira o mar. Já na areia, concordamos que aquilo não encaixa com a imagem que construíramos da Praia do Espelho. O tempo fecha -periga chover- mas vamos zanzando por ali pra entender melhor o que há pra ser conhecido.
O sol volta, desviamos do propósito de procurar saber de hospedagem e aproveitamos a praia. Vamos ficando, pegamos uma cerveja e paramos para comer num restaurante japonês — luxo que advém da ilusão do dinheiro no bolso em começo de viagem (lembremo-nos que quando se tem 500 reais para dez dias, o inconsciente marca muito mais a quantia do que o tempo que pra ela é designado; e que essa viagem foi em 2014 e fazia sentido andar com dinheiro em espécie).
Já está escurecendo e não tomamos providência de nada então, optamos por seguir em direção a Caraíva e ver se aparece algo no caminho. Pedalamos pela areia firme até um ponto em que a praia parece acabar, dando lugar a uma falésia grandona. Há marcas de trilha subindo -o caminho parece ser por ali- mas já é quase noite e não parece uma boa idéia desbravar matos e barrancos no escuro. Do cansaço somado com o iminente perrengue, vem uma idéia que soa heterodoxa demais pra ser boa: por que não acampar ali mesmo, na reentrância da falésia? Examinando, percebemos que há uma parte mais alta e entocada, e especulamos que a maré alta não alcançaria. Analisamos o terreno e decidimos pernoitar ali mesmo.
É a primeira vez que acampo “selvagem” (clandestino/sem ser em camping). Temo mais um possível assaltante e Carol, teme mais que a maré nos alcance. A lua está cheia e faz um clarão, então, consigo ler um pouco antes de ir dormir. Não consigo pregar o sono ainda; estou muito agitado com a viagem e a barriga de horas dormidas em Trancoso vem me cobrar. Boto uma música nos fones e caminho pela areia, numa catarse. Choro um bocado e sinto uma imensa alegria de estar ali. Na barraca, Carol está completamente apagada; invejo pessoas que dormem fácil; quero aprender a ser uma pessoa que dorme fácil também. Começo a pensar nessas coisas e, sem perceber, já estou dormindo.
Amanhece um horizonte laranja e vou correndo pro mar que nem uma tartaruga saindo do ovo. Carol não entende nada -ainda na leseira do sono- mas adere. São sete da manhã e estamos papeando no mar morninho, vendo nuvens lá no horizonte; parece chover em alto mar. Digo que pegar dez minutos de chuva seria a perfeição; tirar o sal do corpo antes de seguir viagem. “Cuidado com o que você deseja” -retruca Carol. As nuvens vêm chegando na nossa direção e parece que vai chover por bem mais que meus dez minutos. Desmontamos a barraca correndo, eu pedindo desculpas por ter ansiado chuva. Já com tudo arrumado, cai um toró por cinco minutos.
Depois dessa providência divina, partimos subindo uma trilha mais ou menos demarcada pela falésia acima de onde acampamos e vamos achando o caminho no olho. Adentramos uma mata e perdemos o mar de vista. De repente, estamos em um platô com duas casinhas e gramados, com o mar visível no lado oposto. A jornada nesse ambiente ermo e onírico é uma delícia, mas não temos mapas nem referências, então sempre paira ao fundo uma tensão de errar o caminho. Chegamos a um mirante de onde se vê uma nova praia bem abaixo e seguimos o caminho com a vertigem de quem fica numa varanda alta.
Há um imenso barranco na descida à frente e seria preciso desmontar as bagagens pra passar, mas, teimoso, proponho da gente se ajudar e levar as bicicletas de dois em dois. Demora, mas dá certo e, logo em seguida, chegamos à beira do mar. Estou tão eufórico que pulo no mar sem tirar o tênis nem nada. Minha cabeça boia, e, então, percebo que nem o capacete eu tirei. Pedalamos ainda um trecho de praia com areia preta e rios desaguando em pequenos lagos; eu, muito impressionado com a exuberância de tudo.
Chegamos no Rio Caraíva, travessamos com um barqueiro e chegamos ao destino do dia. Em menos de cinco minutos, trombamos com gente que conhecemos do Rio (de Janeiro) -um choque intenso de realidades- e já pegamos indicação de camping.
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